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Inferno, de Yael Bartana

janeiro, 2015

Destaque da 31a Bienal de São Paulo, gerando curiosidade do público e comentários da crítica, Inferno (2013) é um trabalho de videoarte de cerca de vinte minutos da artista israelense Yael Bartana. O vídeo narra a autoimplosão do Templo do Rei Salomão durante aquilo que seria sua inauguração. O Templo foi erguido no Braz em 2014 pela Igreja Universal do Reino de Deus. Neste breve texto, apresentaremos uma leitura da obra, fazendo emergir os questionamentos políticos que ela levanta: a função da imaginação filiativa com culturas da antiguidade para justificar a ascensão de grupos sociais, a ideia de decadência implicada em todos os movimentos utópicos, o embaralhamento da narrativa oficial do Estado de Israel e a crítica à homofobia promovida por determinados setores evangélicos. 

Inferno deve ser entendida dentro do contexto da obra de Yael Bartana, sobretudo em diálogo com os três vídeos que criou para o seu movimento, o JRMiP – Jewish Renaissance Mouvement in Poland (Movimento de Renascimento Judaico na Polônia), apresentado, entre outras exposição, na 29a da Bienal de São Paulo, o qual promovia a volta de três milhões e trezentos mil judeus à Polônia, em clara referência ao que foi o movimento sionista.

Na trilogia tratava-se de revisitar as visões de utopia envolvidas em diversos movimentos políticos durante o século XX, como o sionismo, o comunismo e o nazismo. Concentrando-se nos mitos criados para justificar as bases do Estado de Israel, Bartana propõe uma reflexão que transcende esse caso específico: questiona o caráter imaginativo não apenas do moderno Estado de Israel, mas de toda formação nacional e movimento utópico que acreditasse na construção do futuro como redentora.

Esses questionamentos extremamente centrados na recente história judaica na Europa e sua imigração para o Oriente Médio é deslocado a partir do projeto Inferno, realizado em 2013 no Brasil. O contexto é o dos movimentos neopentecostais no Brasil reivindicando determinados símbolos judaicos para justificar a narrativa que defendem como grupo. De certo modo, a imaginação coletiva e inventidade desses grupos apenas salientam a pertinência do procedimento utilizado pela trilogia do JRMiP para colocar em xeque os mitos e invenções envolvidos nas criações nacionais.

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), particularmente conhecida pela sua agressividade e conservadorismo, anunciou para o ano de 2014 a inauguração do Templo do Rei Salomão: uma réplica exata daquilo que seria o terceiro templo de Jerusalém, tal como previsto pelas profecias de Ezequiel.

A utopia aqui não é mais uma invenção de Bartana, um projeto artístico mirabolante. Aqui é a realidade da construção do Templo do Rei Salomão no Brasil que se apresenta como tão ficcional como o projeto de retorno dos judeus à Polônia. Em Inferno, o Templo é implodido no momento de sua inauguração.

A citação é, assim como na trilogia, a maneira pela qual Bartana opera: refere-se aos símbolos judaicos, ao modo como os neopentecostais se estão valendo de referências do antigo testamento para justificarem sua prática, subvertendo-os. No lugar do sumo sacerdote, uma drag queen. A importação dos bens judaicos realizados pela IURD é apresentada como um remake da cena inicial de La Dolce Vita: não mais uma estátua de Cristo chegando a Roma, com pessoas correndo atrás dela e atrapalhando o banho de sol de um grupo de mulheres, mas a arca sagrada e outros símbolos judaicos chegando por helicóptero em São Paulo.

Dois pontos desse trabalho receberão nossa atenção nos parágrafos que se seguem: a maneira como ele dialoga com questões fundamentais da história da arte, ao questionar o modo como uma cultura herdada da antiguidade (no caso a hebraica) é utilizada por um movimento específico; e o modo como a mise-en-scène da destruição propõe um embaralhamento dos fatos que se encontram na base da narrativa mítica que justifica o Estado de Israel, levando os questionamentos propostos pela trilogia do JRMiP a outros pontos.

Os neopentecostais e o judaísmo

Nos últimos anos, nomes e símbolos associados à tradição judaica, tais como a menorá (candelabro para nove velas), a mezuzá (proteção no batente da porta), o talit (vestimenta ritual) e a  kipá (indumentária ritual diária) têm se tornado cada vez mais presentes não apenas em Igrejas Evangélicas, favelas e zonas pobres das cidades brasileiras, mas também em casas de classe média e alta. Igrejas, shoppings centers e restaurantes recebem nomes como El Shaddai,  Adonai, Shalom. Estrelas de David são usadas por jogadores de futebol para atrair sorte. Réplicas da arca da aliança podem ser encontradas em igrejas ao redor do país.

Em uma escala ainda mais espetacular, algumas igrejas importam pedras de Jerusalém ou constroem centros culturais inteiramente voltados à divulgação de Jerusalém e das práticas judaicas. O mais grandioso, faraônico, é também o que mais tem recebido atenção de todo esse movimento: a reconstrução do templo sagrado de Jerusalém, o Templo do Rei Salomão, no Braz, tradicional bairro da cidade de São Paulo, Brasil. Pode-se dizer que a Terra Santa está sendo transportada ao Brasil.

Estamos diante de um fenômeno social em que um grupo cria vinculações ”imaginárias” com outros. Tanto do passado (Israel bíblica) quanto do presente (moderno Estado de Israel), e passa a forjar símbolos para assegurar essa relação, como forma de justificar sua ascensão em tradições antiquíssimas, como se a volta a práticas do passado lhes pudesse libertar de uma corrupção do presente. Tal procedimento imaginativo de si a partir de referências distantes que são tornadas próximas foi analisado por Bartana de maneira extremamente refinada quando se valia do JRMiP para revisitar o sionismo, mas também todas as lógicas existente por trás de movimentos que tentam vincular uma cultura, povo, língua e nação.

A temática de reinvenção de um grupo a partir de referências antigas encontra-se na origem de importantes reflexões na história da arte. Como nos mostra Aby Warburg em seus belos ensaios, um olhar para a arte florentina do quattrocento pode nos permitir entender o modo como essa nova classe de comerciantes urbanos via a si mesma, e se valia de uma leitura particular da antiguidade clássica grega para justificar o seu novo papel: a identificação do chefe político, pela primeira vez na história, como comerciante urbano, na figura de Lourenço de Médici veio acompanhada de uma leitura singular da arte antiga que deu origem ao chamado Renascimento.1

Um estudo exemplar de Aby Warburg nesse sentido é aquele intitulado A arte do retrato e a burguesia florentina, de 1902, em que fica clara a tentativa de compreender a maneira como os artistas, poetas e pintores italianos não estão buscando uma reaproximação com a antiguidade, mas antes, deturpam-na para adaptá-la à nascente realidade dos comerciantes urbanos de Florença. Ou seja, de que maneira poetas e pintores florentinos exprimem uma nova realidade criando um vínculo com o passado.2

O modo como os evangélicos hoje imaginam suas afinidades com símbolos judaicos difere da maneira como o Renascimento reinterpreta a história clássica para pensar o seu papel único na história? Ou mesmo a maneira como nações se imaginaram na história europeia? Do mesmo modo que a nascente burguesia florentina se valia de uma leitura singular da antiguidade para justificar sua ascensão, do mesmo modo que as nações forjaram uma série de imaginários para dar sentido à unificação de diferentes povos sob a égide de um Estado, os neopentecostais propõe uma leitura inédita do Velho Testamento e práticas judaicas para afirmarem sua posição. Mitos e processos imaginativos encontram-se novamente no centro dos questionamentos levantados por Bartana.

O Templo de Salomão em São Paulo

O filme se inicia com um tom festivo, pessoas vestidas com túnicas brancas, flores e frutas, como se fosse uma mistura de oferendas a serem realizadas por ocasião da festa judaica de Shavuót, a festa da colheita, como ocorria na época do Segundo Templo, e a icônica figura tropical de Carmem Miranda. Caminham nas ruas, a sensação de entusiasmo e festividade se assemelha às cenas de trabalho coletivo da Trilogia, sobretudo em Muro e Torre: algo grandioso parecia estar sendo criado. Enquanto caminham em direção às festividades, helicópteros trazem de Israel objetos sagrados – uma menção ao fato de que as pedras do Templo do Rei Salomão construídas pela IURD venham todas de Israel.

Em entrevista inédita, a ser veiculada no making of do filme, Yael Bartana afirma que seu interesse era em deixar tudo ainda mais falso, mais irreal do que poderia aparentar. Para a artista, o seu filme tentava tocar na ideia de que em toda ”visão utópica já se pode pressagiar a destruição”.

No caso da trilogia, isso se dá no campo do fracasso inerente a todos os movimentos políticos utópicos. Em Inferno, estamos diante da utopia pessoal vendida pelas igrejas neopentecostais: a venda de uma certa teologia da superação pessoal, que se inspira em uma  narrativa que veria nos judeus e em Israel o sucesso de uma experiência de sucesso – e daí a importação dos símbolos judaicos.

Segundo essa pregação, os judeus, recém-saídos da catástrofe, teriam sabido superar as maiores adversidades já impostas pela história (o holocausto – extermínio dos judeus da Europa) para então criarem uma sociedade moderna. Tal percurso serviria de modelo para todos os evangélicos crerem em sua própria superação pessoal em meio às adversidades cotidianas de uma dura realidade social.

O moderno ”sucesso judaico” já estaria prefigurado, segundo esta visão, em tempos bíblicos, durante a errância no deserto até o estabelecimento do povo hebreu na Judeia e a criação de Israel antiga. Assim, nesse paralelo traçado pelo Bispo Edir Macedo, isso que estamos livremente chamando de teologia da superação pessoal conecta diretamente a experiência árdua de sofrimentos cotidianos, experimentados pelas camadas populares nas grandes metrópoles brasileiras, com a possibilidade de superação inspirada em uma narrativa específica acerca da história judaica. Desse modo, nada mais simbólico do que o construir o templo do Rei Salomão (visto pelos cabalistas tradicionais como o símbolo máximo da reunificação e harmonia dos judeus) para os seus fiéis. Tudo se passa como os fiéis evangélicos também tivessem a sua Terra Santa se concretizando para eles.

No filme de Bartana, quando Cohen Gadol, o sacerdote supremo, inicia os rituais, o prédio começa a desabar, com fogo para todos os lados, e uma cena em câmera lenta retrata a destruição. A estética do filme, como a artista afirma, é inspirada em uma das tantas representações do Templo de Jerusalém existentes na história da arte, a pintura do século XIX de Francesco Haiyes: os corpos contorcidos, as quedas de abismos, as tentativas de fugas levando consigo o que poderia ser possível, são pontos presentes em ambas as obras.

Existe algo de extremamente pictórico no movimento das imagens. Sobretudo a dramaticidade dos movimentos (quase teatrais), bem como a maneira como a filmagem parece nos estar mostrando o mesmo momento da destruição de ângulos diversos, lentamente. Como se tivesse a pretensão de abarcar todos os mínimos detalhes da cena, como uma pintura, e não como um filme que apenas permite uma rápida visão do todo.

A escolha de uma drag queen para o papel do Sumo Sacerdote é um ponto relevante na obra, a ser mencionado, sobretudo pela atenção que os movimentos neopentecostais dão aos homossexuais, vistos pelos primeiros como uma doença a ser curada. Assim, Bartana seleciona alguém excluído dos sistemas religiosos (sejam eles judaicos, cristãos ou mesmo muçulmanos), para jogar o papel principal entre os atores. E não selecionou um homem gay ou uma mulher lésbica, mas precisamente uma drag queen, que exagera traços de ambos, tornando difíceis quaisquer distinções claras.

Inferno e a narrativa oficial israelense

Mas o que significa a construção desse templo no Brasil? Os debates ao redor da sua reconstrução do Templo em Jerusalém estão entre os pontos mais complexos do atual conflito israelo-palestino. Segundo a tradição ortodoxa judaica, o Segundo Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos nos primeiros anos da Era Comum, no evento que ficou conhecido como início da segunda diáspora judaica. Sua reconstrução ocorreria com a chegada do Messias, a volta de todos os judeus para Israel e a ressuscitação dos mortos. O sionismo moderno, ao propor o retorno dos judeus para a palestina, ignorou tais tradições religiosas, acreditando que o homem poderia voltar por si só à Palestina.

Existe muita controvérsia nos meios judaicos a respeito dessa empreitada levada a cabo pelo próprio homem, ou seja, o sionismo em sua versão laica. Alguns judeus ultraortodoxos se contrapõem ao moderno Estado de Israel, afirmando que a sua construção pelas mãos dos homens são contrárias aos preceitos de Deus. Outros grupos religiosos acreditam que o estabelecimento desse Estado seja uma forma de ”apressar” a vinda do Messias, existindo também aqueles que defendem a construção do Terceiro Templo em Jerusalém justamente para que o Messias chegue e traga a redenção para todos.

As implicações políticas de tais ideias fanáticas sobre a construção do Templo tocam diretamente o povo palestino e sua luta por autodeterminação.

Se lido em conjunto com os filmes que compõem a Trilogia, Inferno propõe um grande embaralhamento dos fatos que estruturam a narrativa oficial judaica e dos mitos que se encontram na base da moderna nação israelense. De um lado, o sionismo, ideologia laica que ignorou o mito do Templo promovendo o retorno dos judeus à Palestina, é vivido novamente, agora clamando o retorno dos judeus para a Polônia. De outro lado, o Templo de Jerusalém, cuja destruição em 70 D.C. teria dado origem à dispersão judaica pelo mundo e que deveria ser reconstruído em Israel para a congregação do povo Judeu na Terra Santa, é reconstruído (e então destruído) não em Israel, mas no Brasil!

Como defende Bartana a propósito de Inferno, comparando-o com a Trilogia ”novamente, estou tentando quebrar outro mito”.

 


1 Aby WARBURG. Essais florentins. Paris, Klincksieck, 2003. p. 114
2 Ver Philipe-Alain MICHAUD. Aby Warburg et l’image en mouvement, p. 91

Excerto da videoarte:

 

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