Depois de marcar e remarcar algumas vezes, encontrei Cavi Borges na sala da sua produtora no Humaitá, em uma quinta-feira à tarde. Depois de uma hora e meia de conversa, Cavi saiu correndo para encontrar sua mulher porque logo mais precisava estar no Festival do Rio como jurado e antes ainda tinha que dar uma passada na Locadora.
Sempre com projetos e várias atividades, Cavi fala tanto quanto produz. Gosta de contar sua história e tudo que realizou nesses 18 anos de locadora e agora 9 anos de produtora. Com 150 filmes realizados, a Cavídeo é um exemplo de parceria e diversidade, ideias que o cineasta leva na vida e cita como principais características da sua produção.
Na Parte 1 da entrevista, Cavi conta bastante do seu processo, de como se tornou cineasta, passando da locadora para a produtora. Conta da sua descoberta do cinema, dos vários eventos que apoiava, e como foram responsáveis por sua “formação cultural”, e explica a ideia de começar a fazer cinema a partir de um cineclube. Fala também como tem dividido a função de diretor e produtor e do incômodo em não ser reconhecido como artista nessa segunda função.
Já na Parte 2, falamos sobre o espírito coletivo de realização, lembrando do recente episódio de divisão do prêmio em Brasília, da diversidade de filmes que a Cavídeo produz e dos problemas de distribuição no Brasil, que Cavi apresenta possíveis soluções, mas perspectivas ruins. Cavi também contou como foi produzir Luiz Rosemberg Filho, um dos principais diretores do Cinema Marginal que após 30 anos voltou a filmar um longa-metragem, e falou de seu curta, A Distração de Ivan e a experiência de ir à Cannes com ele. Por fim, nos contou sobre cinco filmes brasileiros que foram marcantes em sua vida.
PARTE 1
USINA – Já é famosa a história da sua passagem de judoca pra cineasta, que aconteceu através da locadora. Mas como foi o seu processo pessoal de descoberta do cinema? Você não conhecia muitos filmes e foi através da demanda dos cinéfilos que começou a conhecê-los. Como era o estranhamento de certos filmes no início e como você passou a aprecia-los?
Cavi – Eu era atleta professional de judô e minha vida era basicamente treinar judô. Eu treinava oito horas por dia, quando não estava treinando, estava descansando pra treinar depois, ou viajando, competindo. Então cinema eu via de vez em quando e quando via era mais esses filmes blockbusters. Quando eu resolvi abrir uma locadora, eu não entendia nada, nem de locadora nem de filme. Eu já vendia coisas de judô nas competições, trazia quimono do Japão pra vender no Brasil, então eu sempre tive esse lado empreendedor. Mas quando eu me machuquei e não fui pra Olimpíada, acho que a minha mãe ficou um pouco com pena de mim e falou pra eu abrir uma loja de judô numa espaço que ela tinha no segundo andar da Cobal. Mas isso eu vendia mais nas competições, não sabia se abrir uma loja ia dar muito certo. Ai, meu professor de judô me falou que não existia no Brasil nenhuma locadora ou nenhum lugar que vendia filmes de luta, e deu a ideia de tentar isso, e me pareceu interessante realmente, era uma coisa diferente, que não tinha em nenhum lugar. Só que eu não sabia se ia dar certo ou não, então quando eu abri, ia ser metade loja de venda e metade locadora.
Mas aconteceu que eu não tinha dinheiro pra abrir a locadora. Tinha que pagar o alvará, tirar certidões, essas coisas burocráticas que, hoje em dia, se você for abrir uma empresa, custam dois, três mil reais, e eu não tinha esse dinheiro sobrando. Então eu paguei 200 reais pro contador me ensinar, pra eu fazer. Só que eu demorei um ano pra conseguir tirar toda essa documentação, enquanto um contador consegue tirar em um mês. Nesse ano que eu demorei pra abrir, a locadora já estava lá, eu não podia abrir, mas já tinha colocado o letreiro. Então as pessoas iam lá, curiosas, perguntando que filmes que iriam ter e começavam a falar dos diretores, Woody Allen, Tarkovsky, Fellini, e eu nunca tinha ouvido falar nesses diretores. Eu comecei a perceber que tinha muita gente interessada por esses filmes, todo dia, duas ou três pessoas iam lá enquanto eu estava arrumando a loja. Porque na verdade, a Cobal do Humaitá é muito frequentada por artistas, tem muitas produtoras em volta, muito artista mora por perto, pessoal de dança, teatro, que comemora na Cobal depois de estrear a peça. Então, a Cobal tem muita gente de arte e eram essas pessoas que iam lá perguntar, e eu comecei a perceber isso. Eu também sempre pensei o seguinte: eu tenho que me diferenciar, não posso ser uma locadora convencional. Qualquer coisa que eu faço eu sempre tento ser diferente, em algum aspecto.
Eu decidi que ia fazer uma locadora de filmes diferentes, mas pra isso eu também tinha que entender um pouco sobre os filmes. Não dá pra você alugar um filme sem saber indicar, não ter visto o filme. Então eu comecei a ter que ver esses filmes pra conseguir atender os clientes. E foi ai que começou o meu processo. Fui ver os filmes do Woody Allen, achava meio chato, outros legais. Comecei a ver os filmes do Truffaut, do Godard, tinha as retrospectivas que o Grupo Estação organizava na época. Ai eu aproveitava também pra fazer uma filipeta, chegar antes da sessão e colocar em cima de todas as cadeiras do cinema. Eu usei isso como minha estratégia de marketing, ia nessas sessões pra ver os filmes e pra colocar as filipetas também. As vezes eu ia até mais pra colocar filipeta, não pra ver o filme (risos), só que acabava vendo o filme também. Então eu acabava vendo esses filmes do Truffaut, do Godard, lembro que eu achava muito chato, mas porque você não está acostumado com aquele ritmo, está acostumado com o ritmo de TV, de filme americano. Ai você vê um filme que é bem mais lento, é preto e branco, é antigo…é francês. Então eu lembro que vários filmes, depois eu ia ler a crítica, ia estudar, até pra saber mais e poder falar pros clientes. E ai eu via “obra genial do Truffaut, ganhou prêmio em Cannes”, e pensava, “não é possível, como é que esse filme é genial, o que ele tem de genial que eu não consigo enxergar?”. Então além de ver o filme, eu também lia muito, lia crítica, revistas, e aos pouquinhos eu fui me acostumando. Mas isso não foi rápido, isso demorou.
Por exemplo, eu tinha medo de ver os filmes do Bergman, eu achava que não estava preparado ainda pra ver, que eu não ia gostar, que não ia entender, lógico que isso é besteira. Mas eu sempre via os filmes do Bergman na prateleira da minha locadora e pensava que um dia eu ia ver, que ainda não estava preparado, enquanto isso via uns diretores mais fáceis. Pra conhecer também o diretor, eu gosto de ver toda a obra do cara de uma vez. Eu peguei uma vez o Hitchcock e fiquei durante três meses vendo todo dia Hitchcock. Normalmente eu pego um livro e vou acompanhando, vejo um filme e vejo o que o livro fala. Eu peguei aquele livro em que o Truffaut entrevista o Hitchcock, então fui vendo os filmes e lendo o livro. Quando eu fui ver o Bergman, também foi a mesma coisa, comprei um livro e ia lendo junto com os filmes. E eu adorei! Isso já foi mais recente, eu vi tudo e pirei, achei genial e pensei como que eu demorei tanto tempo pra ver. Lógico que tem assuntos bem complexos, de psicanalise, mas é totalmente acessível.
E acho que o legal é que a Cavídeo foi abrindo a minha cabeça. E ao mesmo tempo aconteceu um processo muito interessante, que foi assim: eu queria divulgar a minha locadora e comecei a apoiar vários eventos em troca de colocar o logotipo e falar da Cavídeo. Então eu apoiava peça de teatro, evento de poesia, mostra de cinema, cineclubes. E apoiava de várias formas, emprestando filmes, as vezes emprestando meu projetor de vídeo, que eu tinha um projetor que na época ninguém tinha, ninguém emprestava, só alugava. Por exemplo, o CEP 20000 do Chacal, ali no Sérgio Porto, me chamou pra eu fazer projeções no início do CEP. Então eu comecei a frequentar esses eventos que eu também achava um saco. Poesia eu achava chato pra caralho, mas eu comecei a ir direto, e comecei a gostar, conhecer. Eu comecei a apoiar peça de teatro, por exemplo, Os Dezequilibrados, de uma companhia do Ivan Sugahara, eu fazia as projeções, eu filmava as peças, eu emprestava vídeo pra galera estudar os personagens, e ai eu ia nas peças também, e eu também não gostava. Mas é isso, eu comecei a frequentar teatro, evento de poesia, sarau de músicas, cineclube, tudo pra divulgar a Cavídeo, apoiando, patrocinando, e acabou que isso de uma certa forma foi me formando culturalmente.
Porque eu era um cara do esporte, eu não estava ligado em cultura. E isso tudo acabou me levando pra esse universo, mas sem querer, não foi uma coisa planejada, foi uma coisa meio que sem querer, aos poucos. E cinema a mesma coisa, até hoje estou aprendendo assim, tem muitos diretores, muitas cinematografias que eu ainda não conheço, mas hoje em dia como eu já trabalho com isso e vivo disso, é outra história. Mas é isso, é estar sempre conhecendo coisas novas e você vai acostumando. Hoje em dia eu adoro, eu fiz um longa agora, meu novo longa de ficção, chamado Um Filme Francês, que é todo inspirado no Godard e no Truffaut, é uma homenagem a eles inclusive, eu até crio cenas parecidas com a dos filmes deles. Hoje em dia eu sou fã e há 18 anos atrás eu odiava.
USINA – Falando sobre isso, a Cavídeo acabou exercendo um papel cultural muito importante. Como era naquela época o cenário no Rio de Janeiro, também nas outras áreas, mas principalmente no cinema? Qual a importância você acha que a Cavídeo teve?
Cavi – Foi assim: o movimento cineclubista nos anos 90 deu uma parada. Rolava nos anos 60 e 70, mas nos anos 80 e 90 deu uma parada, quase não tinha mais cineclube e também era a coisa da película ainda. Então quando chega em 2000, quando eu comecei a fazer mostras de vídeo na Cobal, eram as primeiras mostras de vídeo, ninguém ia pra mostra, cinéfilo ia no cinema, cinéfilo queria ver película, não queria ver digital, tinha esse preconceito muito forte ainda. E eu tinha uma sala do lado da Cavídeo que era do meu tio, Espírito das Artes, que era um espaço grande, multimídia, que podia fazer festa, show, teatro e podia fazer cinema. Colocava cadeiras de plástico, tinha um projetor digital, tinha caixa de som, só que era vídeo, era VHS inclusive. Eu sabia que nenhum cinéfilo ia vir assistir, então a minha ideia foi passar filmes que ninguém tinha, que era a única forma de conseguir atrair a galera. Ou a galera via daquele jeito ou não via.
Essa época era pré-internet, não tinha essa coisa de baixar filme ainda. Por exemplo, tinha uma série chamada Arquivo X. Eu lembro que passava nos Estados Unidos e um mês depois na televisão aqui no Rio. E eu tinha uma amiga minha que gravava lá o episódio e me mandava por Sedex, então eu conseguia o episódio antes de passar no Brasil. Ai eu fazia as mostras do Arquivo X na Cobal, os fãs ficavam loucos, eles queriam ver logo e eu passava com duas semanas de antecedência, do que a Fox, podia ser até preso. Mas esse foi o primeiro evento que eu fiz, lembro que lotava, depois eu chamava ufólogo pra falar, vendia broche, camisa, sempre remetia também pro lado comercial. Eu fazia tudo isso visando a grana, era pra divulgar a Cavídeo, a locadora, e pra ganhar dinheiro. Inicialmente não era uma coisa cultural, eu não pensava em fazer cultura, meu objetivo era divulgar a locadora e ganhar dinheiro.
Ai eu lembro que o Kubrick tinha morrido, em 99, e eu tinha os curtas e o primeiro longa dele, chamado Fear and Desire (1953), que ninguém tinha. Eu tinha conseguido numa viagem pra Nova Iorque, que eu fui pra lutar judô. Eu descobri uma locadora lá que tinha filmes piratas que ninguém tinha, ai eu copiava. Eu levei dois vídeos cassetes pra Nova Iorque, alugava o filme da locadora, copiava pra mim e devolvia, ficava copiando e trazia, então a Cavídeo tinha esses filmes que ninguém tinha. Também era uma boa forma de divulgar a locadora, porque não adianta você ter um produto de qualidade e que todo mundo quer, se você não divulga isso, vai ficar escondido, ninguém vai saber. Então eu resolvi fazer essas mostras de vídeo, de cineclube, pra divulgar o acervo da Cavídeo, pra atrair público pra locadora, porque a Cavídeo ficava no segundo andar, num mezanino na Cobal e as pessoas às vezes nem sabiam que tinha um segundo andar.
A primeira mostra que eu fiz foi a do Kubrick, passei os curtas e passei esse longa. Lembro que eu também fiz um mini doc do Kubrick, pra dar de brinde para as pessoas que fossem. Um cara que trabalhava comigo, o Miguel, preparou uma folha, tipo um artigozinho falando sobre o Kubrick e a obra dele. Então o cara chegava lá, ganhava um VHS com o documentário que a gente fez, ganhava um folder falando sobre o programa e assistia os filmes, e era três, quatro reais. Cara, eu lembro que saiu em todos os jornais essa mostra, foi capa do Segundo Caderno, capa da revista de domingo do JB, uma coisa que eu não esperava que fosse acontecer. Eu fui meio oportunista, aproveitei que o cara tava sendo falado, tinha acabado de morrer e eu tinha os filmes raros dele, que não existia em película e ninguém tinha passado ainda. Aquele final de semana deu mais de mil pessoas na Cobal. Eu tive que fazer sessões de 9h da manhã à 9h da noite pra dar vazão, porque a sala tinha 100 lugares só. A locadora naquele fim de semana triplicou o movimento de grana e triplicou o número de associados. Então era isso, decidi começar a fazer mostra direto, porque ninguém fazia mostra ainda, não tinha essa parada de cineclube ainda, de vez em quando no MAM rolava, CCBB pouca coisa, tinha o Curta Cinema, o Anima Mundi, mas não era igual hoje, que tem evento direto, de diretor.
Eu lembro também que o Guilherme Whitaker da Mostra do Filme Livre e uma galera mais alternativa, começou a fazer uma mostra na Fundição Progresso, chamado “O Q Neguinho Tá Fazendo”. Qualquer pessoa chegava lá com um filme, em qualquer bitola, Super 8, 16, VHS, e passava o filme lá. Era uma vez por mês. O grupo chamava Os Incinerastas, eles faziam um jornalzinho também e a Cavídeo patrocinava esse fanzine e ajudava também nesse cineclube. Esses foram os dois primeiros cineclubes que tiveram no Rio nesse volta do cineclubismo, nos anos 2000, eram Os Incinerastas na Fundição Progresso e a Cavídeo na Cobal do Humaitá. E depois de alguns anos, o Guilherme transformou esse cineclube na Mostra do Filme Livre. E na Cavídeo, os eventos eram de 2 em 2 meses, depois passou a ser de mês em mês, depois de 15 em 15 dias, depois semanalmente, depois passou a ser quase todo dia. Era muito doido, quase todo dia tinha um evento, nem sempre era na Cobal. E o que que aconteceu, foi que muitas pessoas que iam nesses eventos que eu fazia na Cobal, principalmente das favelas, perguntavam se eu não podia fazer uma projeção dessa na Cidade de Deus, na Rocinha, lá no Vidigal, eu falei: “maneiro, vamos lá”. Eu tinha meu projetor, que era portátil, uma caixa amplificada e um pano branco, a gente chegava lá, abria o pano na escola e exibia filme, no CIEP da rocinha, no Nós do Morro no Vidigal. E eu sempre levava filmes que tinham a ver com o lugar, pra atrair o público. Então, eu comecei também, sem querer, a ajudar a formar grupo nesse lugares. Por exemplo, veio o cineclube Mate Com Angu, que era em Duque de Caxias, a CUFA. Eu comecei a emprestar projetor pra todo mundo, comprei quatro projetores, emprestava pra vários cineclubes e deixava eles pegarem filme na locadora de graça. Inclusive entrava com dinheiro também, tudo em troca de falar da Cavídeo e divulgar a locadora. Até o Cachaça Cinema Clube teve alguns meses que eu ajudei. Então eu acho que olhando hoje em dia, vários cineclubes a Cavídeo ajudou um pouquinho lá no início. Não que seja a responsável pelo cineclube, mas eu colaborei.
Minha vida era muito doida, eu fazia evento todo dia, festa, fazia cineclube dentro de boate, tinha parceria com a Casa da Matriz, fazia o Cine Maldita. A festa Loud lá no Cine Íris, eu também fazia projeção. Tinha o Cine Buraco em Laranjeiras, que era um cineclube que virava uma boate depois, eu fazia eventos direto lá também. Mas quando a minha filha nasceu, em 2005, eu percebi que não dava mais pra ter uma vida assim tão desregrada, então eu dei uma pausa de cineclube e decidi que queria fazer cinema. Eu tinha que escolher uma coisa só, se não, não ia conseguir dar conta da minha filha. Então decidi parar de fazer tudo e fazer só filme, foi a partir daí que a Cavídeo também virou produtora.
USINA – Realmente, isso tudo já era um ensaio para a produtora. Mas como foi essa decisão e como funcionou essa nova fase?
Cavi – Eu já fazia filmes, comecei a fazer filme desde 2000, fazia um curta por ano, documentários, não levava muito a sério, era mais um hobby, não era algo que eu planejava viver disso. Na verdade, nesse momento eu era um produtor cultural, não era um cineasta, mas eu gostava de fazer filme. Então, em 2005 eu decidi que eu queria fazer filme, parei de fazer esses eventos todos, a Cavídeo já era conhecida e não precisava mais apoiar tudo que aparecesse, e resolvi começar a fazer filme mesmo, e pra isso eu me juntei a muitas dessas pessoas que eu ajudei. Por exemplo, eu me juntei com a galera do Nós do Morro, do Vidigal. Fiz até um evento chamado 4x Nós no Morro, que depois virou um documentário, que era exibir os filmes deles em quatro cineclubes da cidade.
Então é isso, eu comecei a fazer filmes com essa galera dos cineclubes, porque eu acho o seguinte, até hoje em dia, quando eu dou meus cursos eu falo, que se você quiser fazer filme, começa com cineclube. Monta um cineclube e com as pessoas que vão frequentar, vão discutir de cinema, você vai montar um grupo, uma turma, e com essa turma você vai começar a fazer filme. Porque cinema é turma, cinema é coletivo. Então hoje em dia quando as pessoas me perguntam qual a melhor forma de começar a fazer filme, virar cineasta, eu falo que é montando um cineclube, a tendência é que o próximo passo seja estar fazendo filmes. Eu acho isso bem interessante.
USINA – No início você produzia muito e agora você está querendo se consolidar mais como diretor, não é? Mas continua produzindo. Como funciona isso, no que você se concentra mais?
Cavi – É, exatamente. O que que acontece: eu não me sentia muito seguro de ser diretor, porque eu não conhecia muito ainda. Então eu achava que produzir o filme de alguém era uma forma de aprender com aquela pessoa. Eu ajudo ela a fazer um filme e estou no set de filmagem, participo das reuniões, então é uma forma de entender como ele pensa o filme, como ele elabora. Então eu produzia como uma forma de aprender com aquela pessoa um pouco como fazer cinema.
Por exemplo, eu vou produzir agora um longa do Bruno Safadi, nunca trabalhei com ele, é legal que você aprenda o jeito que ele pensa, as facilidades. Fiz um longa do Luiz Rosemberg Filho, que é um diretor do Cinema Marginal, muitos anos sem filmar, então é uma outra onda, é um outro jeito de pensar cinema, de pensar os planos. Até quando eu dirijo, eu dirijo com outra pessoa, agora eu estou começando a dirigir sozinho, mas por exemplo, o Cidade de Deus (10 anos depois), eu dirigi com o Luciano Vidigal, o L.A.P.A., dirigi com o Emílio Domingues, é uma forma de aprender com o outro também.
Eu tenho uma coisa de sempre querer aprender mais, sempre achar que tenho que aprender mais. E a forma de aprender cinema era estar no set de filmagem, pra estar no set, era produzindo as pessoas, que é uma coisa que eu sempre tive jeito, eu sempre fui meio empreendedor, sempre fui meio produtor, desde criancinha. Então eu sempre tive esse lado produtor, sempre fui um cara muito falante, fico amigo de todo mundo rapidamente, características ideais pro produtor, ter muito contato, ter muito amigo, conhecer as pessoas, ser carismático. Você não pode ser um cara que não fala, um cara tímido, um cara que tem vergonha de pedir, ou que não é parceiro, egoísta, produtor tem que ser o contrário.
Então eu produzia o filme dos caras porque assim eu conseguia aprender, ver como o cara fazia, pra depois poder dirigir meus filmes. E fui dirigindo aos pouquinhos. Hoje em dia, o que eu faço: eu dirijo um longa meu e produzo seis de outras pessoas. Faço dois, três curtas por ano meus e produzo 15. Porque não dá também pra você fazer como diretor mais de um longa por ano, pra você dirigir, finalizar…Então eu me concentro em um por ano pra mim e vou fazendo o resto da galera.
O que eu acho também, que tem no Brasil, uma parada que me incomodava muito, é que produtor não é muito reconhecido, artisticamente falando. Parece que o produtor é só o cara que dá o dinheiro. No meu caso não é assim, no meu método de produção eu participo de tudo, eu estou na edição dando opinião, na finalização, no set de filmagem, em todas as etapas. Eu não sou aquele produtor de escritório, que nem vai no set, que resolve tudo por telefone, eu sou o contrário. Então eu me considerava artista, mesmo sendo produtor. Só que eu acho que existe uma coisa assim, de todo mundo achar que o produtor não é artista, de que ele é um negociante, o cara do dinheiro. Eu não vejo assim, me vejo como um produtor criativo, que na produção influencia no filme. Como no Faroeste (de Abelardo de Carvalho), a gente não tinha grana pra alugar a luz e resolvemos fazer à luz de velas. Isso influencia na qualidade do filme, é um conceito estético que veio a partir de problemas de produção e foi uma ideia que eu sugeri. Então no meu ponto de vista, o produtor é um criador também. Só que eu não queria parecer só o cara que dá o dinheiro, queria ser o artista e comecei a perceber que como diretor o pessoal me respeitava mais. Como produtor eu era o playboy que botava dinheiro no filme dos outros, o pessoal me via assim, o que nem era o caso, e nem era isso que eu queria, eu queria participar, queria entender, queria fazer, queria ser o realizador. Então eu comecei a dirigir filme por causa disso também.
PARTE 2
USINA – Uma coisa que ainda falta hoje em dia e que você parece ser um símbolo disso, é a parceria, de um cineasta ajudar o outro. Algo que inclusive acontece mais em outros estados, mas ainda falta muito no Rio. E a divisão do prêmio no Festival de Brasília, representa muito nesse sentido também.
Cavi – Total. Isso que eu percebo. Porque durante um tempo cinema era caro, e pra você conseguir fazer filme, nos anos 90, antes das novas tecnologias, era película, e pra fazer filme em película é muito caro. Então rolava uma competição muito grande, porque eram poucos editais pra premiar a galera que estava fazendo, ai rolava uma rivalidade grande, neguinho odiava o outro, era meio inimigo porque um podia ganhar o edital que era pro outro ganhar. Então, ainda mais aqui no Rio e em São Paulo que são grandes centros, as pessoas se viam como concorrentes, um ficava falando mal do filme do outro, eu sentia isso no ar. Quando veio o digital, as novas tecnologias, tudo ficou mais barato e democratizou. Muita gente começou a fazer filme, não tinha edital pra todo mundo, como ainda não tem hoje, mas eu senti que um começou a ajudar o outro. Essa geração de 2000 pra cá, que é a minha geração, que hoje tem 35, 38 anos, é uma geração que já nasce no cooperativismo, um ajudando no filme do outro, emprestando coisa pro outro, e eu passei isso o tempo todo, desde o cineclube, depois até como produtor também.
E lá nos outros estados isso era mais forte ainda, porque, por exemplo, em Pernambuco, no Nordeste, não tinha CTAv, não tinha finalizadora, não tinha as câmeras grandonas, tinha que pedir tudo pro Rio. Hoje já tem, é outro cenário, é até ao contrário, eles estão melhores que a gente. Mas naquela época eles não tinham nada, então se eles não fossem unidos, não fossem parceiros, eles não iam conseguir realizar. Então eu acho que essa mentalidade de coletivos, vem de fora dos grandes centros. No Ceará o Alumbramento, em Minas a Teia, em Pernambuco a Trincheira Filmes, o CinemaScópio, tem vários, hoje em dia são milhões de coletivos assim. No Rio também já tem, mas os coletivos aqui são da galera fudida de grana, não é pessoa com grana, é o Mate Com Angu, é o Nós do Morro. O movimento que tá tendo agora, Rio: Mais Cinema Menos Cenário, é a primeira vez que eu vejo realmente todo mundo junto, unido. Mas quem tá unido é a galera que tá sem grana, porque a galera que tem grana ainda continua competindo uma com a outra. Mas a grana não vai pra galera alternativa, então a galera alternativa resolveu se juntar e montar coletivo. E tem que ser assim, a Cavídeo foi desde sempre assim.
E Brasília foi o ápice disso, acho que no futuro vai ser um marco talvez. Porque lá só tinha diretor novo, só filmes de baixíssimo orçamento, filmes coletivos, Símio Filmes, Filmes de Plástico, o pessoal da Paraíba que eu até produzi o filme, Pingo d’Água.
E lá em Brasília rolou isso, o dinheiro sempre é bom, mas é ruim também. Tem os dois lados, o lado bom é que você tem mais estrutura, mas o lado ruim é que cria essa concorrência, essa competição, essa coisa de um querer ganhar mais que o outro. Dinheiro mexe com a cabeça de qualquer um. Então pra não acontecer isso, o pessoal resolveu dividir o prêmio, porque o festival de cinema é pra gerar encontros, gerar parceiros novos, pra pensar cinema, discutir, e não pra ficar competindo, quem vai ganhar mais, quem vai ganhar menos e acabar virando inimigo do outro cara. Então a ideia de dividir o prêmio era parar com essa competição e todo mundo ganhar.
A ideia inclusive, que não foi muito divulgada, foi pegar os 250 mil e todo mundo que entrar no festival já ganha 30 mil. São seis longas, então sobra 70, o cara que ganhar ganha os 30 mil mais os 70, ou seja, todo mundo que participou do festival merece ganhar grana. E isso é uma tentativa de mudar os outros festivais também, porque nenhum festival no Brasil paga pro seu filme passar, lá fora pagam, aqui não pagam, então de repente é uma primeira possibilidade de mudar.
USINA – E a Cavídeo, nesse espírito de colaboração, produz filmes de vários tipos diferentes.
Cavi – É isso. Porque normalmente cada coletivo desses tem um estilo, a Cavídeo é o samba do criolo doido. Tem favela (Copa Vidigal), pessoal de teatro (Paraíso, Aqui Vou Eu), interior de minas (Faroeste), galera aqui do Rio (Riscado), a diretora da Globo que me procurou (Setenta), pessoal das passeatas (Rio em Chamas). Eu trabalho com gente velha, nova, produzi o Jom Tob Azulay, o Luiz Carlos Lacerda, o bigode, o Rosemberg; produzo a galera que tá começando, primeiro longa, primeiro curta, produzo o cara que já tá fazendo, o cara da favela, o cara da zona sul, rico, pobre, aqui é diversidade.
São 150 filmes da Cavídeo, em nove anos. E é legal, porque na faculdade da Estácio eu não conseguia fazer filme, porque todo mundo queria ser o diretor. Quando eu fui filmar no Nós do Morro no Vidigal, todo mundo queria ajudar, não importava se era varrendo, carregando bolsa, parando o trânsito. Eu não sou da favela, sou classe média alta, mas eu me identifiquei muito mais com a galera da favela que não era a minha galera, porque a minha galera queria muito aparecer, ser o diretor, enquanto a galera do Vidigal queria filmar, queria fazer, então eu comecei a me envolver com eles. E eu sou um cara que me dou bem com todo mundo, isso é uma característica minha também, então a Cavídeo é um pouco isso. Se eu fosse pensar, como eu distinguiria a Cavídeo, eu falaria diversidade, aqui tem de tudo. Tem filme de tudo quanto é tipo, orçamento e lugar. Então meu objetivo é abrir. Quer fazer filme? Então vamos fazer em parceria. A nossa matéria prima é a parceria. O cara topa, gosta desse esquema, tâmo junto, vamos fazer.
USINA – Em relação a produção, há muitas alternativas independentes. Na distribuição também. Mas o cinema, que é o meio mais clássico, tem muitas burocracias que impedem que esses filmes menores cheguem às salas, ou se sustentem. Você ainda pensa em lutar por esse espaço, ou se concentra mais nas formas alternativas?
Cavi – Eu acho o seguinte, minha opinião. Eu até brinco com o Rosemberg, porque ele acha que a gente tem que lutar pelas salas, mas eu acho que cada vez mais o cinema, as salas de cinema, vão ser pros filmes eventos, os filmes grandiosos, tanto americanos, quanto brasileiros. Os filmes menores cada vez menos vão estar no cinema, porque o cinema é muito caro, o cara não vai querer pagar 25 reais pra ver um documentário, vai esperar pra ver em DVD, na televisão, em festival. É triste falar isso, mas pelo que eu observo (pode ser que mude), eu acho que os cinemas vão estar cada vez mais concentrados nos shoppings, vão ser cada vez mais caros, vão ser pra esse tipo de filme. Esses filmes que a gente faz aqui vão ter que procurar outros caminhos, e já tá rolando isso.
Vou dar um exemplo, o Cidade de Deus (10 anos depois), talvez eu não lance nos cinemas. Eu vou lançar ele no iTunes em 120 países simultaneamente. Eu nunca ia conseguir lançar o Cidade de Deus no cinema do Vietnã, da Austrália, do Japão, não tenho nem acesso, não conheço ninguém de lá e se conhecesse ia ser muito difícil. Pelo iTunes, pela internet, pelo streaming, eu consigo chegar nesses países sem custo nenhum. O cara paga cinco dólares pra ver e eu fico com dois. Então se bobear, com Cidade de Deus que já tem uma marca forte, por causa do primeiro filme, eu posso ganhar muito dinheiro pelo iTunes. Enquanto se eu colocar no cinema, vai acontecer o que aconteceu com o Setenta (de Emilia Silveira). A gente gastou 50 mil reais pra lançar o filme no cinema, a Globo Filmes apoiou, porque a diretora é da Globo, colocou anúncio, propaganda, conseguimos 10 salas de cinema no Brasil, com o Ademar, e deu 800 espectadores. Ridículo. Às vezes uma sessão no Odeon dá 800 pessoas.
Então eu fico pensando, é culpa de quem? Não foi culpa da divulgação, a Globo divulgou muito, levou a diretora em vários programas, fez tudo que podia fazer. A gente tinha 50 mil, não é muito, mas tínhamos um dinheirinho. A gente tinha o Ademar, que é dono do Arteplex. Então a gente tinha tudo pro filme ter espectadores e não teve. Por isso que eu estou falando, as pessoas não querem mais ver documentário no cinema.
USINA – E o ingresso, os gastos justificam o preço ser tão alto?
Cavi – Eu acho que não. É meio injusto, porque o cara que tá exibindo o filme ganha mais do que o que produziu. Uma coisa que poderia ser feita, que faria as pessoas voltarem a ver filme brasileiro no cinema, mas que nunca vai acontecer porque tem interesses financeiros por trás, é, por exemplo, a ANCINE pegar uma parte do dinheiro que patrocina a produção de filme, que já tem bastante, e patrocinar uma sala de cinema. Na Argentina tem isso, vários cinemas do INCAA que só passam filmes argentinos pela metade do preço. Vamos supor que a ANCINE compre um cinema, ou reforme algum, por exemplo o Cine Paissandu que tá fechado, alugue e transforme no cinema da ANCINE. Ou entre em um acordo com o Arteplex ou o Estação, e eles financiam. Por exemplo, o ingresso vai ser oito reais, e pra ninguém perder dinheiro, a ANCINE paga os outros oito reais.
Eu vou ser sincero, sou classe média alta e não tenho condição de ficar pagando 25 reais pra ver filme no cinema. Prefiro ver em festival, em DVD, na televisão, ou baixar o filme. Mas se o ingresso fosse oito reais eu iria ver, e como eu milhares de pessoas. Mas eu acho também, que tem uma parada dos distribuidores gringos, a Fox, a Warner, Columbia. Elas fazem uma mega pressão pra nunca permitir que isso aconteça. Isso em economia se chama dumping, é desleal, você colocar o preço abaixo do custo do outro. Então eles até inventaram uma lei de que não pode fazer isso, de que é contra a lei.
USINA – Um assunto que tem bastante a ver com você é a divisão que normalmente existe, entre cinema de arte/autoral e cinema comercial. Porque você tem o seu lado empreendedor, de querer ganhar dinheiro, mas também o lado artístico, de fazer o que quer e apoiar vários filmes, como o Pingo d’Água, por exemplo. Então, como você vê essa relação? Acha que que precisa ter essa oposição?
Cavi – Então, inclusive eu sou muito criticado. Às vezes eu chego em um festival de cinema cult, tipo Tiradentes, e quando eu falo em filme como produto, neguinho quase arrepia, fica desesperado. Esses caras, do cinema de arte, ficam putos quando eu chamo filme de um produto, de uma mercadoria, que no fundo é, também. E eu acho que precisa ter o cara empreendedor, pra conseguir ganhar dinheiro. Por exemplo, o Rosemberg, tem 60 curtas, seis longas, nunca foram lançados no cinema, nunca foram vendidos pra nenhum canal de televisão, nunca foram lançados em DVD. Eu estou começando a regularizar os filmes dele na ANCINE, tirar o CPB, porque ele tá perdendo dinheiro. E não só ele está perdendo dinheiro, como mais pessoas podiam estar vendo esses filmes. Falta essa coisa do empreendedorismo, às vezes o cara acha que porque ele é artista, ele não pode ser empreendedor. Eu sou o contrário, eu tento juntar as duas coisas. Eu vou lançar em DVD o filme do Rosemberg, vou colocar pra vender nas lojas, por que não? Eu acho que tem público, acho que tem gente interessada em comprar os filmes dele. Por exemplo, todos os filmes meus eu estou lançando em DVD, estou lançando um por mês. Tem DVD de curtas, todo mundo fala que não dá pra ganhar dinheiro com curtas, eu tô lançando uma coletânea de curtas, e tô ganhando dinheiro com isso, vendo para as televisões. Então eu acho que se o cara ficar muito assim, de que é artista e não pode ganhar dinheiro, não pode vender, transformar o filme dele em um produto, o cara vai ficar restrito, limitado, vai perder dinheiro que poderia ajudar ele a fazer mais filmes. Então eu acho que é uma cabeça meio fechada, tentar conciliar as duas coisas é o ideal.
Por exemplo, Pingo d’Água é um filme radical, conseguir ganhar dinheiro com ele vai ser bem difícil, mas é viável. O Canal Brasil talvez se interesse em comprar. Eles pagam 20 mil reais, quase o preço do filme. Vou lançar em DVD o filme dele, distribuir pros festivais, tentar vender pra fora do Brasil também, por que não? Eu duvido que tenha algum cineasta que faça um filme e que não queira que o máximo de pessoas possível veja. Eu acho que ele pode até fazer um filme radical, não abrir concessões, de não estar fazendo um filme pro público, mas um filme pra ele. Mas mesmo fazendo o filme pra ele, quando fica pronto ele quer que seja visto.
Então acho que é burrice o cara se trancar, não querer, dizer que não, achar que não pode, ele não vai deixar de ser menos artista por causa disso. Só que eu sei que tem pessoas radicais que veem isso com olhos maus, que acham que eu sou oportunista, que eu quero me dar bem em cima do Rosemberg, que acha que eu quero ganhar dinheiro em cima do pessoal da favela. Sempre tem uns caras que ficam vendo o lado ruim, com inveja. Mas também, foda-se. Não dá pra agradar todo mundo.
USINA – Você tem falado bastante dele, então conta um pouco como foi essa experiência de produzir o Rosemberg?
Cavi – Foi engraçado porque todo mundo falava pra mim que o Rosemberg era improduzível. Que ninguém conseguia produzir ele, porque ele é muito radical, muito difícil, e que eu não ia conseguir. E uma coisa que sempre me angustiou muito, é que eu ouvia muitas entrevistas, muita gente falando, de que estava há 10 anos sem filmar, por exemplo, o Rosemberg, 30 anos sem fazer um longa. Eu sempre achava aquilo uma coisa muito triste. Imagina, eu sou cineasta, quero viver de cinema, e fico trinta anos sem fazer um filme. Po, vou ter um câncer, vou morrer. Vou ser um cara muito infeliz, ser um cineasta que não faz filme. Então eu sempre tive esse pensamento de não ser uma pessoa como essa, de fazer muito filme. Posso até fazer filmes que não sejam tão bons, mas eu nunca vou querer passar mais de dois anos sem fazer um filme. Que nem eu falei no Profissão Repórter que teve comigo: eu não quero ficar quatro anos esperando pra fazer um filme, eu quero fazer quatro filmes em um ano.
E o Rosemberg era um cara que eu sentia isso, já estava mais velho, 70 anos, não ia conseguir nunca se adaptar a edital, se adaptar ao mercado. Então talvez eu fosse o único cara, nesse jeito cavidiano de filmar e produzir, que ia conseguir ajudar ele. E foi um dos filmes mais fáceis que eu produzi, mais tranquilos, indo contra todas as correntes, contra todas as pessoas que falavam. Ele aceitou nossas opiniões, a equipe era toda de gente nova, eu achei que ele fosse ficar desconfiado, porque a gente não era bom o suficiente, não tinha experiência suficiente, mas ele aceitou todo mundo. O Rosemberg é um cara velho, mas com alma de cara novo, ele parece um cara de 20 anos sendo um cara de 70.
E pra mim foi um desafio, eu decidi que ia produzir o Rosemberg custe o que custar. E eu fui vencendo, essa amargura que ele tem também, às vezes, ele sempre fala que é perseguido, gosta de reclamar, de falar mal da ANCINE, da política, do cinema comercial. Ele xinga todo mundo, é quase um personagem que ele criou. E meio negativado às vezes, achando que não vai dar, que o cinema morreu, que a ANCINE matou o cinema brasileiro, que ninguém quer mais ver os filmes dele. E eu fazia o movimento oposto, dizendo que dava sim, que todo mundo queria ver o filme. Meu trabalho de produção era basicamente colocar ele positivo, sempre dizendo que tava bom, que dava pra fazer.
Por exemplo, teve uma vez que eu tava passando por dificuldades, faltando uma semana pra filmar, com vários problemas pra resolver, tava sem grana, não sabia o que fazer, ai ele perguntava: “Cavi, tá tudo certo?”, e eu falava: “Tá. Tá tudo certo Rosemberg, vamos filmar”, e nem tava, mas se eu falasse pra ele que não tava ele poderia desistir de fazer, achar que não ia rolar mais. Então eu tentei ser o mais positivo possível pra vencer esse negativismo que ele tinha, por causa desses anos todos que ele foi renegado, todos os filmes dele foram censurados. Então ele criou essa amargura, isso de achar que não rola, que o Brasil não é o país pra ele. E eu juntei todo mundo da Cavídeo, foi um filme bem coletivo, todo mundo contribuiu muito, ajudou muito. Todo mundo topou fazer o filme ganhando quase nada, o cachê era mil reais, todo mundo ganhou mil reais. E rolou, foi um filme facílimo, a gente ia filmar em oito dias, filmou em sete. Editou em três semanas, não passou nem um ano e o filme já está pronto.
USINA – Sobre o seu curta, A Distração de Ivan, que acabou indo pra Cannes, como foi a ideia desse filme, a motivação?
Cavi – Eu trabalho com o pessoal do Nós do Morro e eu sou muito ruim em escrever roteiro, não tenho muitos roteiros. E lá no Vidigal, eles são ótimos atores e ótimos roteiristas, mas péssimos produtores. Então quando a gente se juntou foi ótimo porque as minhas falhas eles conseguiram resolver e as falhas deles eu consegui resolver, então foi uma ótima parceria. Eu comecei a ficar amigo da galera de lá, a produzir curtas deles. Produzi o Luciano Vidigal, “Neguinho e Kika”, produzi o Gustavo Melo, “Picolé, Pintinho e Pipa”, produzi vários. E ai rolou um edital da Petrobrás e eu perguntei pro Gustavo Melo, que é ótimo roteirista, se ele não tinha algum roteiro sobrando, porque eu não tenho nenhuma ideia pra escrever e ele escreve um roteiro por dia quase. Pedi pra ele me arranjar um roteiro dele pra eu escrever no meu nome e se eu ganhasse a gente fazia junto. Ai ele me deu esse roteiro que era baseado na vida dele inclusive, de infância. Ele era morador de Brás de Pina, morava no subúrbio, depois foi morar no Vidigal e começou a fazer cinema lá. E eu ganhei e nós fizemos o filme juntos. Mas foi assim, muito pela falta de um roteiro. Então esse roteiro é totalmente do Gustavo, baseado na vida do Gustavo, e eu entrei só como diretor.
USINA – E como foi a experiência de Cannes?
Cavi – Nossa, foi um filme que a gente não esperava por isso. Ele rodou muitos festivais no Brasil, mas quando ele entrou em Cannes, foi quase um acidente. Eu até conto essa história que é engraçada. Eu sempre mando os filmes pra Cannes, mas eu nunca consigo ganhar, é muito difícil, é quase uma loteria, são dois, três, quatro mil filmes pra entrar sete, dez. O Distração de Ivan já tinha rodado o Brasil inteiro e eu fui começar a tentar fora do Brasil. Fui ver no site qual era o próximo festival internacional aberto e era Cannes. Acabava as inscrições no dia seguinte e eu decidi tentar. Fui no correio e pro filme chegar no prazo pra inscrição eu tinha que pagar um super sedex que custou 150 reais. Voltei pra casa pensando que tinha sido o dinheiro mais mal investido do mundo, dinheiro jogado por água abaixo. Passaram dois, três meses e eu recebi um e-mail. Eu sempre recebo um e-mail de Cannes agradecendo a inscrição e dizendo que são muitos inscritos então não rolou. Então eu abri esse e-mail esperando isso, mas estava escrito: Parabéns! Seu filme foi selecionado pro festival de Cannes. Eu não acreditei, atualizei a página pra ver se era verdade. Chamei minha namorada pra ler, pra ver se aquilo tava certo, se eu estava entendendo direito mesmo. Então foi essa mega surpresa.
E quando o filme entra em Cannes ele ganha o mundo. Saí de lá com 70 convites pra festivais do mundo inteiro, o filme nunca parou de passar, até hoje ainda passa. Consegui uma distribuidora internacional, da Inglaterra, que distribui o filme, vende pros canais lá fora. Aqui no Brasil eu também vendi pra vários canais de televisão. E vários festivais que não tinham selecionado o filme aqui no Brasil, depois de Cannes resolveram selecionar. O filme que era ruim pra eles, passou a ser bom. Pra você ver como a marca Cannes é muito forte e influencia as pessoas. Então quando você entra no festival de Cannes, as portas abrem, porque é o maior festival do mundo. O que é bizarro, não devia ser assim, mas é.
USINA – Pra finalizar, gostaríamos de saber pelo menos cinco filmes brasileiros que você considera fundamentais.
Cavi – Tem um filme que marcou muito a minha vida. Eu fazia Economia e uma vez eu fui pego colando na prova, tirei zero e fiquei muito triste. Ai eu fui ver Central do Brasil (1998) e eu saí do filme bem melhor, o filme me deu uma força. Depois, uma vez eu briguei com a minha namorada, fui ver Central do Brasil de novo. Eu lembro que todo problema que eu tinha eu ia ver Central do Brasil, porque o filme me levantava. Então me marcou muito, é um filme que me emociona muito, apesar dele ser triste eu saio do filme com vontade de filmar, vontade de viver, de fazer coisas.
Outro filme que me marcou muito também, foi o Baile Perfumado (1997), do Lírio Ferreira e do Paulo Caldas. Foi interessante, eu lembro que quando eu abri a locadora todos os vendedores falavam que filme brasileiro não alugava, que ninguém gosta de filme brasileiro, isso em 97. Eu fui ver o Baile Perfumado no cinema e sai tão impactado, mas tão impactado, que pensei: não é possível que as pessoas não queiram ver um filme como esse, isso é burrice, é ignorância. E ai quando eu sai do cinema eu decidi que a Cavídeo ia ser especializada em filme brasileiro e eu tinha certeza de que ia alugar sim, porque tem muito filme foda só que as pessoas ou não conhecem ou tem preconceito. Ai o que que eu fiz? Montei na locadora uma seção de cinema brasileiro, de frente, na entrada, em destaque, e nunca parou de alugar. Então a parada é que o cara não sabia trabalhar o filme brasileiro, ele coloca junto com Bergman, junto com comédia. Ele não separa por diretor, por gênero, o que eu faço na cavídeo, indicar os filmes, falar deles. Aluga direto. Então o Baile Perfumado de uma certa forma me fez querer me dedicar a ter filme brasileiro na Cavídeo, foi muito importante pra Cavídeo e pra mim também.
O Cidade de Deus (2002) também foi um marco pra mim. É um filme que nasce nos anos 2000, 2002, e junto com ele traz muita coisa. Ele influenciou muito a galera das favelas pra fazer filme, depois do Cidade de Deus, a galera quis filmar também e era uma época que tava surgindo as câmeras digitais. Até no Cidade de Deus – 10 anos depois, eu coloco um texto no final, falando que depois do filme, o Fernando Meirelles abriu uma escola de audiovisual, que era o Nós do Cinema que depois virou Cinema Nosso, e a partir daí começaram a surgir novas escolas também e várias pessoas da favela começaram a querer fazer cinema. O Cidade de Deus foi um marco, se você perguntar pra qualquer diretor de favela, Cidade de Deus fez a diferença. E eu acabei de fazer um documentário dos 10 anos depois, então é um filme que eu sei de cor, já vi mais de 500 vezes. Dá pra fazer vários filmes sobre o Cidade de Deus, tem tanta história, tanta coisa que eu ouvi. E eu viajei pra vários lugares com o documentário e realmente é um filme que no mundo inteiro as pessoas amam, são fãs. Virou um filme cult, desde o Japão à Índia à França.
Outro filme que me marcou muito foi Vidas Secas (1963), do Nelson Pereira dos Santos. Até recentemente eu não tinha visto o filme ainda e quando eu fui ver fiquei impressionado, achei um filme muito moderno. E foi feito há 50 anos atrás, parece que foi um filme feito hoje, pelo Petrus Cariry no Ceará ou pelo pessoal do Alumbramento, ou pelo Taciano Valério da Paraíba. Um filme muito moderno, que quase não tem diálogo, que a imagem se resolve, luz estourada, não ator, tudo isso que você vê hoje no cinema contemporâneo, já tinha no Vidas Secas do Nelson nos anos 60. Então eu fiquei impressionado como ele é visionário, ele conseguiu alcançar uma sofisticação que eu acho que ainda vai passar muitos anos e ainda vai continuar novo.
O Deus e O Diabo na Terra do Sol (1964) não tinha me marcado tanto. Eu já tinha visto algumas vezes em DVD, mas eu vi agora em Brasília, teve uma cópia restaurada que abriu o festival. E ai eu vi realmente o que o filme é. Eu achava que era muito mais lenda, mas o filme é impressionante. Ele mistura musical, faroeste com filme religioso, trabalha com não ator também, a mise-en-scène, o jeito dele filmar, é genial! O jeito dele contar a história como se fosse um cordel, é muito foda. E pensar que um cara de 23 anos fez aquele filme, numa época também que tudo era caro, tudo era mais difícil, não era que nem hoje. Realmente é um filme impressionante.