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A arte, exercício de crueldade

outubro, 2014

O pintor está condenado a agradar. Não pode de nenhuma maneira transformar uma pintura num objeto de aversão. O propósito de um espantalho é espantar as aves do campo em que está plantado, mas a mais terrível pintura está lá para atrair visitantes. A tortura real pode até ser interessante, mas em geral isso não pode ser considerado como seu propósito. A tortura pode ocorrer por razões variadas. Em princípio, seu propósito não difere muito do espantalho: ao contrário da arte, ela é oferecida a vista para nos repelir do horror que coloca em exposição. A tortura pintada, por outro lado, não tenta nos reparar. A arte nunca toma para si o trabalho de julgar. Ela não nos interessa por algum horror para o seu próprio bem: isso nem é sequer imaginável. (É verdade que o imaginário religioso da Idade Média fez isso com o inferno, mas precisamente porque a arte era inseparável da educação). Quando o horror está sujeito à transfiguração de uma arte autêntica, transforma-se num prazer, um prazer intenso, mas ainda assim um prazer.

Ver nesse paradoxo o mero efeito de um vício sexual seria tolo.

É uma espécie de determinação inexplicável, muda e inevitável, como nos sonhos, onde o fascinante espectro da miséria e da dor sempre se esconde entre as figuras de um mundo em carnaval. Não há dúvida de que a arte não tenha o mesmo significado essencial do carnaval e ainda assim, em cada um, uma parte esteve sempre reservada para aquilo que parece o oposto do prazer e da diversão. A arte pode ter finalmente se libertado do servir à religião, mas mantém sua servidão ao horror. Ela continua aberta para representar o que repulsa.

Esse paradoxo do carnaval – que em sentido mais geral é o paradoxo da emoção, e em sentido específico é o paradoxo do sacrifício – deveria ser considerado com maior atenção crítica. Como crianças, todos nós suspeitamos: talvez estejamos todos nos movendo estranhamente sob o céu, vítimas de uma armadilha, uma brincadeira cujo segredo saberemos um dia. Essa reação é certamente infantil e nos afastamos dela, vivendo num mundo que nos é imposto como se fosse “perfeitamente natural”, bem diferente daquele que nos exasperou. Como crianças, não sabíamos se íamos rir ou chorar mas, como adultos, nós “possuímos” esse mundo, fazendo um uso interminável dele, feito de objetos inteligíveis e utilizáveis. Ele é feito de terra, pedras, madeira, plantas, animais. Trabalhamos a terra, construímos casas, comemos pão e vinho. Nós não esquecemos, por força de hábito, os nossos receios infantis. Em uma palavra, deixamos de nos desconfiar.

Apenas alguns de nós, no meio das grandes invenções sociais, apegam-se as reações realmente infantis, ainda nos perguntando ingenuamente o que estamos fazendo na terra e que tipo de brincadeira está jogada sobre nós. Queremos decifrar céus e pinturas, ir atrás desses fundos estrelados ou telas pintadas e, como crianças tentando encontrar uma brecha, tentar olhar por entre as fissuras do mundo. Uma delas é o costume cruel do sacrifício.
É verdade que o sacrifício não é mais uma instituição presente, embora permaneça um pouco como um traço numa janela entremeada. Mas é possível para experimentarmos a emoção que despertou, dos mitos de sacrifício como temas de tragédia e da crucificação que mantém a imagem do sacrifício diante de nós como um símbolo oferecido às reflexões mais elevadas, e também como a mais alta expressão divina da crueldade da arte.

No entanto, o sacrifício não é só essa imagem repetida que a civilização europeia tem dado soberano valor; é a resposta de uma obsessão secular entre todos os povos do globo. De fato, se há alguma verdade na ideia de que a vida humana é uma armadilha, podemos pensar – é estranho, mas e ai? – que, uma vez que a tortura é “universalmente oferecida a nós, como uma isca”, refletir sobre seu fascínio pode ajudar a descobrir o que somos e descobrir um mundo superior cujas perspectivas vão além da armadilha?

A imagem do sacrifício é colocada a nossa reflexão para que necessariamente, tendo passado o tempo em que a arte era mera diversão ou quando a religião respondeu sozinha ao desejo de entrar na profundidade das coisas, nós percebemos que a pintura moderna deixou de nos oferecer apenas imagens bonitas e indiferentes por uma ansiedade de fazer o mundo “transpirar” na tela.

Apollinaire disse uma vez que o cubismo era uma grande arte religiosa, e seu sonho não se perdeu. A pintura moderna mantém a repetida obsessão com a imagem do sacrifício, em que a destruição dos objetos responde, de forma já meio-consciente, pelo papel duradouro da religião. Preso na armadilha da vida, o homem é movido por um campo de atração determinado por um ponto de inflamação, onde formas sólidas são destruídas, onde os vários objetos que constituem o mundo são consumidos como em um forno de luz. Na verdade, a característica da pintura atual – destruição, apocalipse de objetos – não é colocada claramente em relevo, não é realçada na linhagem do sacrifício. Mas, o que o pintor surrealista deseja ver na tela onde projeta suas imagens não difere fundamentalmente do que a multidão asteca viu na base de uma pirâmide onde o coração da vítima era arrancado. Em ambos os casos, o raio da destruição é antecipado. Sem dúvida, nós não vemos crueldade quando vislumbramos obras de arte moderna, mas no conjunto, os astecas não eram cruéis também. Ou o que nos deixa desnorteados é a ideia muito simples que temos da crueldade. Geralmente chamamos de crueldade o que não temos coragem de suportar, enquanto que o que suportamos facilmente, que é normal pra nós, não nos parece cruel. Assim, o que chamamos de crueldade é sempre dos outros, e se não somos capazes de nos abster da crueldade negamo-la assim que a encontramos em nós. Tais fraquezas nada suprimem mas constroem dificuldades para qualquer pessoa que busque, nestes caminhos, o movimento secreto do coração humano.

O vício sexual não simplifica essa tarefa. Com efeito, o vício coloca o senso comum de cabeça para baixo, e é ele que admite a si ser habitado pela perversão, estigmatizando modos de horror. Os astecas teriam negado a crueldade dos milhares de assassinatos sagrados cometidos. Por outro lado, o sádico deleita-se em dizer e repetir a si mesmo que a flagelação é cruel. Eu não tenho as mesmas razões para usar essa palavra, crueldade. Eu a uso para ser claro. Eu não desaprovo nada, mas estou ansioso para mostrar um significado subjacente. Em certo sentido, este significado não é cruel: se ele próprio tivesse acreditado que era cruel, teria deixado de sê-lo – a prática do sacrifício desapareceu na medida em que os homens se tornaram mais conscientes – embora ainda assim tenha permanecido um desejo de destruir.

Na verdade, é apenas um desejo contido. Como é nosso hábito (o nosso costume, a nossa força), só gostamos de destruir de maneira encoberta, nós contestamos as destruições terríveis e ruinosas, pelo menos aquelas que aparecem para nós como tal. Estamos contentes em sermos pouco conscientes da destruição.

***

Até aqui tenho demonstrado que o raio da destruição é, na armadilha da vida, a isca que não deixou de nos seduzir. Mas a armadilha não é redutível à isca. Ela supõe não só a mão de quem a colocou, mas a finalidade desejada. O que acontece com aquele que morde a isca? Quais são, para o indivíduo que se entrega a tal fascinação, as consequências de sua fraqueza?

Em princípio, isso nos leva a uma questão anterior, onde reside a essência de minha pesquisa. Não basta observar que estamos geralmente fascinados pela destruição que não apresenta um perigo grave. Em vez disso, quais as nossas razões para sermos seduzidos pela coisa que, de forma essencial, significa prejuízo para nós, a mesma coisa que tem ainda o poder de evocar a perda mais completa através da morte?

Esse prazer só nos leva ao ponto onde a destruição é compreendida. Entramos na armadilha apenas por nossa própria vontade. Mas poderíamos imaginar a priori que a isca deveria ter o efeito oposto, que não deveria ter nada que nos aterrorizasse.

Na verdade, a questão colocada pela natureza da isca não difere daquela da finalidade da armadilha. O enigma do sacrifício – o enigma decisivo – é atado ao nosso desejo de encontrar o que uma criança procura quando é tomada pelo sentido do absurdo. O que incomoda a criança e de repente a muda num turbilhão é o desejo de obter, para além do mundo das aparências, a resposta a uma pergunta que ela não seria capaz de formular. Ela acha que talvez seja a filha do rei, mas o filho do rei não é nada. Então pensa espertamente que talvez seja o próprio Deus: essa seria a resolução do enigma. A criança, evidentemente, não fala disso com ninguém. Ela se sentiria ridícula num mundo onde cada objeto reforça a imagem de seus próprios limites, em que ela se reconhece o quão pequena e “separada” é. Mas ela tem sede precisamente de já não estar “separada”, e só isso lhe daria a sensação de resolução sem o qual ela afunda. A prisão apertada de estar “separado” da existência, separada como um objeto, dá-lhe o sentimento do absurdo, o exílio, de estar sujeito a uma conspiração ridícula. A criança não ficaria surpresa ao acordar como Deus que, por um tempo, a colocasse a prova, de modo que a impostura de sua pequena posição fosse subitamente revelada. A partir de então, a criança, mesmo que apenas por um momento de fraqueza, permaneceria com a testa pressionada na janela, esperando seu momento de iluminação.

É a essa espera que a isca do sacrifício responde. O que temos esperado de todas as nossas vidas é essa desordenação da ordem que nos sufoca. Algum objeto deveria ser destruído nessa desordenação (destruído como um objeto e, se possível, como algo “separado’).

Nós gravitamos para a negação desse limite de morte, que fascina como a luz. Para a desordenação do objeto – a destruição – só vale a pena na medida em ele desordena a gente, na medida em que desordena o sujeito ao mesmo tempo.

Não podemos nós mesmos (os sujeitos) suspender o obstáculo que nos separa. Mas podemos, se suspendermos o obstáculo que separa o objeto (a vítima do sacrifício), participar da negação de toda separação. O que nos atrai no objeto destruído (no momento da destruição) é o seu poder de questionar – e enfraquecer – a solidez do sujeito. Assim, a finalidade da armadilha é nos destruir como um objeto (na medida em que continuamos fechados – e enganados – em nosso isolamento enigmático).

Assim, a nossa ruína, quando a armadilha é aberta (a ruína, pelo menos, da nossa existência separada, desta entidade isolada, negador de suas semelhanças), é exatamente o oposto de angústia, que incansavelmente e egoisticamente persegue os débitos e os créditos de qualquer entidade resolvida a perseverar em seu ser. Sob tais condições, emerge a contradição mais flagrante, interior de cada pessoa. Numa mão, essa pequena, ilimitada e inexplicável existência, em que nos sentimos como um exilado, alvo de tantas piadas e do imenso absurdo que é o mundo, sem poder desistir do jogo; na outra mão, atendendo a chamada urgente para esquecer dos limites. Em certo sentido, esta chamada é a própria armadilha, mas apenas na medida em que a vítima da piada insiste – como é comum, se não necessário – em permanecer vítima. Consequentemente, o que torna a situação difícil de esclarecer é que, em cada caso, uma armadilha está nos esperando (A armadilha, em outras palavras, é dobrada). Numa mão, os vários objetos do mundo se oferecem à angústia como isca, mas num sentido contrário ao do sacrifício: aqui estamos nós presos na armadilha de uma pequena e separada realidade, exilados da verdade (na medida em que a palavra não se refere a um horizonte estreito, mas à ausência de limites). Na outra mão, o sacrifício nos promete a armadilha da morte, a destruição prestada ao objeto não tem outro sentido senão o da ameaça para o sujeito. Se o sujeito não é realmente destruído, tudo permanece na ambiguidade. E se ele for destruído, a ambiguidade é resolvida, mas apenas em um nada que abole um tudo.

No entanto, é a partir deste dilema que o próprio significado da arte emerge – para a arte, o que nos coloca no caminho da destruição completa e nos suspende por um tempo, nos oferece um arrebatamento sem morte.

Naturalmente, este arrebatamento pode ser a armadilha mais inevitável – se conseguirmos alcançá-lo, embora falando estritamente isso nos escapa no instante exato em que o em que o alcançamos. Aqui ou lá, entramos na morte ou retornamos para nossos mundinhos. Mas o carnaval sem fim de obras de arte está aí para mostrar que um triunfo – apesar de uma vontade forte de não valorizar nada além do que perdura – está prometido para qualquer um que salta para fora da indecisão do instante. É por isso que é impossível apostar muito em embriaguez excessiva, penetrando na opacidade do mundo com aqueles flashes gratuitamente cruéis em que a sedução está ligada ao massacre, tortura e horror. Este não é um pedido de desculpas por coisas horríveis. Não é uma chamada para o seu regresso. Mas neste impasse inexplicável onde nos movemos em vão, essas irrupções – que são apenas aparentemente promessas de resolução, que, no final, nos prometem nada senão ser apanhado na armadilha – contém toda a verdade da emoção no instante do arrebatamento. Ou seja, a emoção, se o sentido da vida é nela inscrito, não pode ser subordinada a qualquer fim útil. Assim, o paradoxo da emoção é que ela quer ter muito mais sentido do que ele tem. A emoção não está ligada à abertura de um horizonte, mas a algum objeto próximo, a emoção dentro dos limites da razão só nos oferece uma vida comprimida. Sobrecarregados por nossa verdade perdida, o grito de emoção se levanta sobre a desordem, como pode ser imaginado pela criança contrastando a janela de seu quarto com as profundezas da noite. Arte, sem dúvida, não se restringe à representação de horror, mas o movimento do horror coloca a arte, sem danos, no grau mais alto do mau e, reciprocamente, a pintura de horror revela a abertura para qualquer possibilidade. É por isso que devemos permanecer nas sombras que a arte adquire na proximidade da morte.

Se é cruel, ao menos isso não nos convida a morrer em arrebatamento, a arte pelo menos tem a virtude de por um momento de nossa felicidade em um avião semelhante à morte.


“L’Art, exercise de la cruauté” foi originalmente publicado em Médicine de France (Junho 1949), reimpresso em Georges Bataille, Oeuvres Complètes, vol. XI, Paris: Gallimard, 1988. Tradução do inglês. Versão original disponível em: http://supervert.com/elibrary/georges_bataille/cruel_practice_of_art

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