Raramente o nome de um artista esteve tão ligado a uma única façanha como no caso de Lucio Fontana. Em 1949, montou um quadrado, uma folha de papel branco de um metro por um metro, sobre uma tela. Em vez de desenhar ou pintar sobre esta, Fontana perfurou a folha pela parte de trás com vários buracos concentrados ao centro e estendendo-se pela folha em padrões circulares e espirais irregulares. O material ficava projetado acima da superfície do quadro nas margens dos buracos, o que lançava sombra sobre este. Em vez de tratar o papel como um plano bidimensional, Fontana via-o evidentemente como um material plástico cujos potenciais para criar uma sensação de profundidade valiam a pena ser explorados. Em retrospectiva, descreveria esse momento como a grande virada de sua carreira. Numa entrevista com a escritora e crítica de arte Carla Lonzi na década de 1960, declarou, com uma certa melancolia: “A minha descoberta foi o buraco, ponto final. E não teria mal se eu tivesse morrido após essa descoberta…”
Concetto Spaziale, 1955
Concetto Spaziale, 1956
CONTEXTO
Lucio Fontana foi um artista ítalo-argentino que, apesar das idas e vindas entre os dois continentes, armou sua carreira e seu atelier na Itália, sendo considerado mais um artista italiano do que argentino. Sua obra do período pré-guerra é de basicamente como escultor, tendo atingido um grande prestígio entre os críticos e a comunidade artística europeia. No final dos anos 40, Fontana, que nasceu na Argentina em 1889, poderia olhar para trás e enxergar uma carreira artística que já durava mais de 25 anos, na qual ele trabalhou principalmente como escultor, sendo seus trabalhos predominantemente figurativos. Com a destruição do seu atelier em um bombardeio em Milão durante a Segunda Guerra Mundial, Fontana teve que parar e reorientar sua atividade artística. “No que lhe dizia respeito, declara a curadora Sarah Whitfield, a história de sua carreira foi a história dos seus últimos 20 anos, de 1946 a 1966.” Nessa época, ele formou um novo movimento no norte da Itália chamado de Spazialismo.
Seu manifesto de 1946, intitulado de Manifiesto Blanco, e o movimento Spazialismo se agarraram às ideias e aos temas do Futurismo deixando de lado, no entanto, a retórica ultrapassada e agressiva, assim como a glorificação da guerra². Enquanto isso, compartilhava do entusiasmo por dinamismo, velocidade e tecnologia, como também do desejo deles de transcender o histórico artístico Italiano, como a perspectiva ilusionista da Renascença. Fontana começou, já no final de 1947, a propagar o Spazialismo como um movimento artístico que adotara e modificara as ideias futuristas.
Concetto Spaziale, 1957
CONCETTO SPAZIALE
A partir de 1949, Fontana produziu os primeiros trabalhos que agora apresentam o título Concetto Spaziale, um título que iria aplicar a quase toda a sua produção durante as duas décadas seguintes. Ele perfurou um pedaço de papel de um metro-quadrado montado sobre uma tela com vários buracos. Na sua formação irregular em circulo e espiral, o quadro remete a constelações e nebulosas. Tal como o historiador de arte Giovanni Lista apontou, o termo Concetto Spaziale provém do artista futurista Fillia, que aplicou essa designação em 1932 a uma pintura sua.
Em 1950, ainda como escultor, Fontana foi convidado a participar da prestigiosa Bienal de Veneza. Ele sempre entendeu sua obra de telas perfuradas e cortadas como uma continuidade do seu trabalho como escultor, orientadas pelo espaço. E então ele surpreendeu o júri da Bienal com a apresentação de 20 quadros perfurados: uma maneira inteligente de introduzir a sua técnica inovadora ao público, com seu efeito máximo. “Consegui participar da Bienal de Veneza de 50 e jogar areia nos olhos da comissão, porque na realidade eu tinha sido convidado com esculturas! Mas eu não disse nada, e fui para a Bienal com 20 telas perfuradas. Podem imaginar a reação: ‘Isso não é escultura, é pintura!’…Para mim, eram telas perfuradas que representavam a escultura, uma nova realidade de escultura.”
Antes de fazer um outro gesto pioneiro ao qual seu nome agora é associado – incisões na tela chamadas de Tagli – passara-se outro período de quase dez anos. Apesar da sua produção ininterrupta, Fontana escreveu, em outubro de 1958, ao artista italiano Tullio d’Albisola: “Neste momento não estou bom para nada. Estou à espera de uma inspiração sólida para iniciar meu trabalho enquanto artesão do espaço.” Essa passagem sugere tanto uma situação de estagnação quanto uma expectativa que aparentemente iria ser realizada cedo, e que daria título a um novo grupo de trabalhos. No outono de 1958, Fontana, continuando um trabalho anterior, produziu suas primeiras telas monocromáticas com cortes, série a que intitulou Attese, que se traduz como “expectativas”. Durante uma preparação para uma exposição na Gallerie Stadler em Paris no Inverno de 1958-59, Fontana cortou com raiva uma pintura que considerara fraca, descobrindo acidentalmente o potencial do seu gesto no processo. Ugo Mullas, que fotografou Fontana executando uma tela dessa série, encontrou uma explicação pragmática para o título Attese: ele via-o como uma descrição do momento de hesitação e concentração antes de Fontana cortar a tela com uma faca em um movimento rápido.
O espanto foi ainda maior para os contemporâneos de Fontana em relação a esse último gesto do que à sua “descoberta” de 1949. Não só porque cortar e furar a tela – mas especialmente a dedicação de Fontana a este único processo – representava um gesto radical, mas também porque muitos o viam como uma mudança para um outro meio e uma ruptura com a prática anterior do artista enquanto escultor. “Um riso que durou anos. – lembra Fontana – As pessoas perguntavam o que eu estava fazendo: ‘Você que acima de todos é um excelente escultor’ Para eles, antes eu era bom e depois um tolo.”
Talvez a mutilação da tela possa ser interpretada como uma fuga simbólica da premissa estética de estar aprisionado num estilo sobrecarregado. Essa inovação de cortar a tela andava a par com uma restrição monocromática da paleta da época que vinha junto à Yves Klein e Piero Manzoni. Na opinião de vários artistas e críticos – para não mencionar o mercado da arte –, a Art Informel européia estava evidentemente exausta no final de década de 1950. Essa circunstância foi agravada pela competição com a presença crescente em instituições européias de pinturas abstratas americanas de grandes dimensões. Então, na grande exposição internacional Documenta 2 em Kassel, na Alemanha, em 1959, que foi vista como um ponto da situação, Fontana participou com dois Tagli. O resultado foi passar a ser associado, aos olhos do público, como um artista empenhado em ultrapassar a Art Informel.
Ao ver de Fontana, o termo “decorativo” não tinha qualquer conotação negativa. Tal como uma vez explicou o seu uso “decorativo” da cor à Carla Lonzi: “Então usava cores, de fato com fins decorativos, nos quais não vejo nada de negativo; afinal, podemos decorar as paredes, e de fato Michelangelo decorou a Capela Sistina. Mais tarde ‘decorar’ passou a ter este significado pejorativo. Mas de que outra forma o podemos descrever? O que fez Michelangelo quando pintou a Capela Sistina? Ele decorou-a, pura e simplesmente. Pelo menos é como dizemos em italiano.” De fato, na década de 1950, era considerada prática de exposição, não apenas na Itália mas também internacionalmente, apresentar arte contemporânea juntamente com outros designs modernos, de forma a ilustrar o paralelismo estético.
Em 1958-59, surgiu um grande número de Tagli. A sua frequente entrada em coleções públicas e privadas internacionais e no comércio de arte – favorecida pela sua identificação imediata – é uma das razões pelas quais o nome de Fontana continua a ser primordialmente associado a esse tipo de trabalho até os dias de hoje. Ele descreveu com franqueza a sua reação à grande procura dos seus Tagli na década de 1960 à Carla Lonzi: “Agora também faço incisões como concessões para o mercado, do qual, infelizmente, dependemos, e porque os negociantes e colecionadores gostam delas, por isso as faço…” No início da década de 1970, quando os debates acerca da multiplicação dos trabalhos de arte atingiram um ponto culminante, o produtor alemão de vídeo Gerry Schum descreveu Fontana como um exemplo de como o sistema artístico levava os artistas a repetirem os seus conceitos: “O mercado de arte, ou seja, o financiador da arte, levou Fontana a repetir esse pacto de cortar telas repetidamente. Todas essas coisas, que não contribuem necessariamente para realçar as concepções, resultam em parte das limitações do mercado.”
O historiador de arte Yve-Alain Bois abordou a arte de Fontana – não só os Buchi e os Tagli como também os menos apreciados trabalhos iniciais anteriores a 1947 – com a ajuda de categorias psicanalíticas. Eram óbvio a ponto de ser clichê, de acordo com Bois, que a arte de Fontana, as perfurações e as incisões, eram de natureza sádica. Bois, baseando-se em considerações do filósofo francês Georges Bataille, via os trabalhos de Fontana como uma regressão ao vazio de forma e de conceito. Descreve-os como um movimento contraditório duplo entre ideia, conceito e amorfia, perpetuidade: “…uma vez mais recorremos à noção da sublimação da matéria, sublimação essa que, contudo, é negada pela obscenidade da escatologia policromada, a materiologia radical, e o ato de perfurar. As pinturas com cortes representam precisamente esse duplo movimento contraditório – o sinal de um fracasso inevitável. É errado considerá-las as melhores obras de Fontana, mas são, sim, o seu feito mais característico.”
Concetto Spaziale, Attesa, 1959
Quando Fontana começou a fazer os seus Tagli de forma mais sistemática, tratava primeiro a tela com várias camadas de têmpera aguada, até a ensopar.
Concetto Spaziale, Attesa, 1959
As incisões eram feitas na tela enquanto esta ainda estava úmida.
Concetto Spaziale, 1962
À medida que secava, a tela contraía-se gradualmente fazendo com que os rebordos do corte se enrolassem – para fora ou para dentro, dependendo se a incisão tinha sido feita pela frente ou por trás da pintura.
Concetto Spaziale, Attesa, 1966
Finalmente, Fontana alargava a abertura com os dedos e fixava gaze preta por trás da tela.
Concetto Spaziale, Attesa, 1967
“Eu procuro exprimir o vazio. A humanidade ao aceitar a ideia do Infinito, aceitou já a ideia do Nada.”
__________________________________________________________________________________________________
¹ – Título dado à essa organização e adaptação de parte de textos retirados dos livros Lucio Fontana [Taschen Basic Arts, Ed. Taschen, Lisboa] e Modern Art [p.440, Lucio Fontana, Ed. Taschen, London], ambos escritos por Barbara Hess, escritora de arte alemã especializada em Expressionismo Abstrato. Também publicou pela editora Taschen: William De Kooning, Jasper Johns, e Expressionismo Abstrato.
² Ao contrário do seu modelo histórico, o Spazialismo não enaltecia a violência e a destruição – principalmente da arte de eras anteriores – nos seus manifestos.
Verônica Villar é a tradutora de origem portuguesa do livro Lucio Fontana [Taschen Basic Arts, Ed. Taschen, Lisboa].