Não há contraste maior do que em pleno carnaval sair de um bloco de rua, tomar um banho para então entrar numa gélida sessão com seu devido lugar marcado em Ela, novo filme do diretor estadunidense Spike Jonze. Muito mais que um simples romance, o que vemos é a consagração de uma fantasia mecanicista com muitos séculos de história. Um homem que se apaixona por uma mulher que não tem corpo soa no mínimo absurdo para qualquer pessoa de uma cultura que abertamente não se reconhece na frieza dos países do norte. Por mais distante que possa parecer da nossa realidade, existe aí uma questão fundamental que orienta diversos aspectos da vida moderna, incluindo muita coisa da nossa geleia geral pós-carnavalesca.
A individualização do ser humano, a disposição espacial da cidade, a clássica divisão do trabalho e o saber biomédico, tudo isto reflete a separação dualista entre corpo e alma que compartilharmos em parte com a referida sociedade onde se passa o filme. Tratar o corpo como uma realidade acessória, como uma máquina que deve ser subjugada, significa na prática, passar uma vida num transporte público tentando abstrair nossa condição corporal, se submeter durante horas a fio, como na famosa cena de Chaplin, à apertar infindáveis parafusos, ou no caso da medicina, pensar num corpo totalmente dissociado do ser humano que nele “habita”. A própria ideia de ter um corpo ao invés de ser um corpo, pressupõe uma relação essencialmente diversa com os outros, com o mundo e consigo mesmo.
Em certo momento do filme, Samantha, a mulher que mora dentro do computador, subverte as noções não-ocidentais de correspondência entre corpo e mundo. Numa tentativa de se sentir melhor, ela a partir da física argumenta que “todos nós somos feitos de matéria […] e temos a mesma idade, isto é, 13 bilhões de anos”. A maioria das sociedades não-ocidentais também associa nossos corpos ao mundo que nos cerca. Mas ao contrário do que faz Samantha, tais analogias são efetivamente simbólicas, ou seja, propõem uma continuidade substancial. Não se trata da “matéria” de que somos feitos. As mesmas palavras que servem para designar partes do corpo humano também nomeiam o mundo orgânico. A natureza não é uma realidade à parte e o corpo não é fronteira, há uma profunda conexão entre as pessoas e seu meio-ambiente. Enquanto no Ocidente o indivíduo é visto como algo isolado, em outras sociedades o que se destaca é a participação ativa dos seres (não só humanos) na constituição do mundo e vice-versa.
David Le Breton, antropólogo francês e autor de “Antropologia do Corpo e Modernidade”, traça em seu livro a gênese e a perpetuação da ideia moderna de corpo ao longo dos séculos. Le Breton mostra que este conceito não possui equivalentes em diversas outras culturas. E vai além, a invenção do corpo tem data e lugar de origem, no caso a Europa do século XV. Foi com as primeiras dissecações oficiais que começa a surgir a ideia de um corpo em contraposição à sua pessoa (espírito ou mente). Antes, na Idade Média, era impensável violar a integridade humana ao abrir alguém depois de morto. Com o avanço do individualismo, Descartes consolida no século XVII a noção, aos poucos construída, de que o corpo serve pra ser dominado. A existência se dá através do “penso, logo existo”. O pensamento então flutua como uma categoria do espírito independente da “máquina corporal”. Não foi difícil passar do corpo como acidente para o corpo como estorvo. A partir daí o que restou foi anular ritualmente a existência corporal ao se criar uma rígida etiqueta em que excrementos, flatulências e arrotos por exemplo, são considerados impuros, vulgares e na sociedade de corte, características da plebe. Já no mundo ideal de Ela, com tudo isso já difundido e naturalizado, só faltava suprimir completamente a realidade corpórea.
Viver se torna um privilégio do pensamento. A razão, atributo do espírito, determina a existência de cada um. Nas palavras reveladoras de Samantha: “Eu costumava me preocupar tanto em não ter um corpo, mas agora eu adoro. Estou crescendo de uma forma que eu não poderia se tivesse uma forma física. Não sou limitada. Posso estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Não me prendo ao tempo e ao espaço como eu estaria se tivesse ligada a um corpo que inevitavelmente vai morrer”. A quantidade de contrassensos aqui presente poderia ser listada indefinidamente. Mas basta por ora destacar as implicações deste discurso. Acreditar que podemos nos dissociar de onde vivemos é o primeiro passo para a destruição do planeta no horizonte do progresso infinito. Negar a percepção do mundo pelos sentidos, ou por qualquer outra forma não-cartesiana de interpretação da realidade, relega à Medicina como saber oficial um imenso poder sobre os corpos. Medicina esta, por sua vez, totalmente insensível às pessoas, já que um corpo é apenas um corpo, pouco importando de quem seja. Pessoas ensimesmadas, ilimitadas em seus limites, sozinhas justamente por isso, são apenas outra face deste mundo. Vemos em Ela o resultado de uma sociedade que preconiza o eu em detrimento do todo, uma sociedade em que o contato corporal, os limites e barreiras entre uma pessoa e outra são claramente definidos. Esta solidão revestida do sentimento de ser único, singular dentre todos os outros desconhecidos, torna o fato de Samantha estar falando, ao mesmo tempo, com 8316 pessoas diferentes uma verdadeira loucura. As relações sociais são desprovidas de qualquer sensibilidade, perde-se o tato. Quando o protagonista tem um encontro com uma outra mulher, que rapidamente deixa de ser uma desconhecida para ele após uma simples pesquisa no Google, esta relação com o outro fica evidente: o envolvimento entre eles precisa ser racionalizado antes de acontecer. Para encostar seu corpo no dele, a mulher praticamente exige que um contrato seja feito. Ele precisa garantir que com o sexo ela não estará jogando fora o seu tempo. A relação corporal se torna uma medida de troca e não um fim em si mesmo.
Em contrapartida a tudo isso, ou como alternativa possível, há medicinas holísticas, a ecologia, o carnaval e várias outras formas de resistência. Mas talvez a primeira batalha a ser travada, o muro inicial a ser quebrado, seja romper com a separação de cada um consigo mesmo. A alienação do próprio corpo é sentida na pele por todos nós. O contraste fundamental entre ter um corpo em vez de ser o seu corpo fundamenta inúmeras violências presentes na vida cotidiana. A existência corporal só se anula, ou em outras palavras só pode ser ignorada, na medida em que seja esse o corpo certo, aquele ditado pelos padrões de beleza e humanidade do status quo. Qualquer desvio, deficiência, velhice, cria um mal-estar, uma violência muito inaudível que nega às diferenças o seu lugar no mundo. A reconquista da consciência corporal, o reconhecimento de que somos o nosso corpo, pode trazer grandes transformações para o ideal que fazemos de mundo. Este mesmo corpo tão diariamente abafado pelas condições humanas degradantes das grandes cidades “subdesenvolvidas”, onde seus habitantes sofrem a exigência de suprimir a todo o momento sua corporalidade latente. A falta de infraestrutura, numa irônica reviravolta, deixa claro tudo o que fica escondido no mundo higienizado de Ela: o fato da condição humana ser essencialmente corpórea. Por mais que a gente não se reconheça no universo retratado do filme, nós herdamos valores, reproduzimos estruturas e criamos uma forma de vida que se baseia nessa alienação de si mesmo, na negação do próprio corpo. Se gostamos tanto do carnaval, da dança, do contato com o outro, se nos identificamos com a ginga, o samba, o futebol, precisamos reconhecer a violenta inadequação da organização social à qual nos submetemos. A posição fundamental dada ao corpo em nosso ideário nacional não pode ser relegada a momentos de festa, localizados fora do cotidiano. A luta é por um mundo que potencialize, e não negue, a existência humana.