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12 perguntas para Claudio Willer

janeiro, 2014

Foto Zé Naklem

Um dos expoentes do Surrealismo no Brasil, ao lado de nomes como Roberto Piva, Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Com livros importantes como Anotações para um Apocalipse  (Massao Ohno Editor, 1964)  e Jardins da Provocação (Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1981) Willer também foi um dos introdutores da literatura beat no país – traduzindo nomes como Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Formado em Psicologia e Ciência Sociais, obteve o título de Doutor com a tese “Um Obscuro Encanto: Gnose, Gnosticismo e a Poesia Moderna“. Presidiu a União Brasileira dos Escritores algumas vezes.

A revista USINA fez doze perguntas ao poeta.

USINA – Você se lembra do seu primeiro contato com poesia?

Claudio Willer – Escolar, colegial. Eu lia muito, porém mais prosa. Sou o garoto que leu Os irmãos Karamazov  – e muito mais – aos 15 anos de idade. Relação com poesia intensificou-se quando caí na vida e, interessado em ambientes que diferissem da mesmice burguesa, fui parar em um meio de poetas refinados, ligados ao lançamento da coleção Novíssimos, de Massao Ohno. Nele destacava-se, ou me parecia merecer maior interesse, Roberto Piva – intelectualmente consistente e o mais rebelde. Essa formação está bem relatada no livro de entrevistas (e fotos, e poemas) Os dentes da memória: Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia, por Camila Hungria e Renata D’Elia, Rio de Janeiro, Azougue editorial, 2011; e no vídeo Uma outra cidade, lançado em 2000 dirigido por Ugo Giorgetti, com Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo de Haro, Roberto Piva, Jorge Mautner e comigo, da TV Cultura de São Paulo e SP Filmes – entre outros lugares, inclusive entrevistas minhas anteriores.

USINA – No início da década de 1960 tínhamos a força do Concretismo por um lado e a militância (mais ligada ao CPC, da UNE) por outro. Ainda existiam os poetas canônicos vivos. Como foi o surgimento de um grupo surrealista no meio disso tudo? Havia alguma espécie de diálogo?

Claudio Willer – Não foi só por causa de surrealismo, mas, principalmente, pelo lançamento de Paranóia de Roberto Piva em 1963. Geração de 45, até então muito acessível, esfriou conosco. Cena cultural em São Paulo era ocupado por eles. Poesia concreta figurava como novidade polêmica, assim como outros construtivismos. Como relatei em meu recente Manifesto, editora Azougue, 2013, em 1960 fui a uma palestra de Décio Pignatari sobre poesia concreta – tive a impressão de estar de volta ao cursinho para a Politécnica, da qual havia desistido para entrar em psicologia e sociologia. Populismo, a linha do CPC da UNE, era forte – achava ingênua essa idéia, poesia como mensagem e sua veiculação como propaganda.

USINA – Por que o surrealismo foi/é marginalizado pela maioria dos poetas no Brasil (ver Mário de Andrade, João Cabral, o trio Concretista)? Você defende a idéia de que o surrealismo não é simplesmente uma corrente literária, mas sim um modo de enxergar a vida. Gostaria que você comentasse essa idéia.

Claudio Willer – Racionalismo. Cartesianismo poético, declarado em João Cabral, “a emoção não cria” etc. Projeto de um modernismo bem comportado, evitando o “irracionalismo”, claramente enunciado já em 1922 por Mário de Andrade. Catolicismo. Provincianismo.

Comentar o alcance do surrealismo? Octavio Paz: “o surrealismo é um movimento de liberação total, não uma escola poética”. Ou: “o surrealismo não é uma poesia, mas uma poética […] é, mais ainda, e sobretudo, uma visão de mundo”. Julio Cortázar: “Higiene prévia a toda redução classificatória: o surrealismo não é um novo movimento que sucede a tantos outros. Assimilá-lo a uma atitude e uma filiação literárias (melhor ainda, poéticas) seria cair na armadilha em que malogra boa parte da crítica contemporânea do surrealismo.” Do ensaísta português contemporâneo António Cândido Franco, em Notas para a compreensão do surrealismo em Portugal: “a ação poética, tal como a concebia o surrealismo, não tinha por fim a arte, mas antes a Gnose.’ Etc.

USINA – Octavio Paz diz que o “poema é linguagem erguida” – isto é, ao contrário da mera expressão poética, que está nas falas cotidianas, o poema transcende a linguagem. E, anterior a isso, há o poeta com a vontade criadora.  Como você pensaria a relação entre poeta e poema?

Claudio Willer – Exatamente assim. Essa imagem, “linguagem erguida”, é ótima. Está em O arco e a lira (reeditado pela Cosac Naify em 2012), livro que descobri, por indicação de Piva, no começo da década de 1960 – gostei tanto que fui lendo o restante da obra de Paz, ensaios e poesia; alguns, à medida que saiam.

USINA – Ainda nesse sentido, podemos fazer uma relação entre as dicotomias vida/obra e poesia/poema?

Claudio Willer – Acho que não. Para haver a dicotomia, primeiro tem que haver o poema, a obra.

USINA – A atual literatura brasileira é composta, majoritariamente, por poetas-acadêmicos, poetas-editores, etc. Há tempos você diz que é possível superar essa dicotomia entre poeta olímpico e poeta maldito – e cita Allen Ginsberg como um grande exemplo dessa síntese. Contudo, me parece que, ao menos nessa literatura contemporânea, “superar” essa dicotomia significa, cada vez mais, burocratizar a poética e deixar de lado a experiência/experimentação. Como aliar essas duas condições? Você se considera um uma síntese do poeta maldito e do poeta olímpico?

Claudio Willer – Mas “burocratizar a poética e deixar de lado a experiência/experimentação” não supera nada; apenas anula ou enfraquece os termos. Acho que literatura brasileira atual tem de tudo, inclusive autores muito interessantes. Está viva.

USINA – Como você enxerga a literatura contemporânea? Há quem diga que não existam mais bons poetas ou bons prosadores. Você concorda?

Claudio Willer – De jeito nenhum. Já me manifestei em meu blog, a propósito de uns textos que saíram na Carta Capital sobre “decadência cultural”. Isso de dizerem que não há mais poetas como João Cabral ou que ninguém mais escreve versos como Racine e Corneille, como proclamava Anatole France, contendor do simbolismo, é reacionário. Saudosismo é pretexto para não enxergar o que está acontecendo. Não tenho como acompanhar tudo, não tenho visão de conjunto, mas observo vários bons poetas novos.

USINA – Você já traduziu importantes nomes da literatura (Lautréamont, Ginsberg, etc.). Aliás, você é considerado um dos introdutores da literatura beat no Brasil. Como você se enveredou por esse caminho da tradução? E como você vê a popularização da geração beat que ocorreu nos últimos anos? 

Claudio Willer – Enveredei pela tradução porque me convidaram. Acasos afortunados, fazer Lautréamont e Artaud. Ginsberg, estava afim, sugeri para a L&PM, deu certo. Haicais de Kerouac, a tradução mais recente, a editora me convidou, gostei de fazer. Como acho graça nas observações, de umas décadas atrás, de que beat havia acabado, de que não ia dar em nada. Fiz ironia a respeito ao resenhar, recentemente, O livro de Jack de Gifford e Lee no suplemento Ilustríssima da Folha de S. Paulo. Crescimento de circulação e interesse atesta a vitalidade e contemporaneidade da rebelião.

USINA – Muitos aprendem outras línguas para lerem poesia no original. Ezra Pound, por exemplo, aprendeu português para ler Camões . Como foi o processo de tradução de Uivo, do Ginsberg?  Quais são as diferenças entre ler no original e na tradução?

Claudio Willer – Diferença entre ler no original e na tradução, isso depende, varia conforme a obra, o autor. James Joyce, Ulisses, li o original e uma tradução simultaneamente, abertos lado a lado. Eu já sabia inglês quando peguei Ginsberg – e consultei amigos mais fluentes que eu, que haviam morado nos Estados Unidos. Dei atenção à prosódia, ao valor sonoro. Já escrevi bastante a respeito, das soluções que achei, de alguma coisa que inventei, acrescentei, mas de modo conforme a poética do próprio Ginsberg.

USINA – As outras Artes foram importantes no seu percurso de vida? Quais são suas maiores influências para além da literatura?

Claudio Willer – Sim, com certeza. Música e cinema e, é claro, artes visuais. Já sabia que era romântico ou neo-romântico através da música – preferir a noite ao dia, o sonho à realidade, a imaginação à razão, descobri tudo isso primeiro nos músicos. Em musica, também, barrocos e jazz. E antigos, medievais. Já dei palestra sobre poesia e música, quero voltar a fazê-lo. Cinema, já escrevi sobre filmes. Artigo sobre Vertigo de Hitchcock (reproduzi em meu blog), como é que pode, na época fracassou nas bilheterias, agora é cultuado – encantei-me desde a primeira vez que vi. Eu começar a participar de vida literária coincidiu com renovação no cinema, nouvelle vague, Fellini,Cinema Novo e também cinema japonês. Tenho série de poemas sobre filmes e diretores, que vai aumentar. E tenho um pouco de filmografia, participações minhas em filmes. Artes visuais: afinal, sou surrealista, minha poesia é visual, minha proximidade com artistas plásticos sempre foi grande.

USINA – Como você recebeu a transformação de On The Road, do Kerouac, em filme?  Como você lida com a relação literatura/cinema e as diferentes formas de adaptação de uma obra (seja explorando seus caminhos ou uma fidelidade maior ao que está escrito)?

Claudio Willer – Já publiquei a respeito. Por exemplo, aqui: http://cronopios.com.br/site/critica.asp?id=5458 Façanha, Salles ter conseguido filmar uma obra tão complexa. Resultou em um belo filme. Mas faltou muita coisa: ator principal é apático, detalhes significativos não podiam ter ficado fora.

USINA – Para finalizar, qual poema seu você escolheria como espécie de síntese da obra?

Claudio Willer – … ? Acho que nenhum deles sintetiza. Mas este a seguir, de Estranhas Experiências, editora Lamparina, 2004, expressa uma poética, conforme o título. Já li em público e já teve conseqüências interessantes. No Festival de Medellín de 2010, uma moça destravou, superou bloqueio criativo – disse-me – após ouvi-lo:

POÉTICA

1

então é isso
quando achamos que vivemos estranhas experiências
a vida como um filme passando
ou faíscas saltando de um núcleo
não propriamente a experiência amorosa
porém aquilo que a precede
e que é ar
concretude carregada de tudo:
a cidade refluindo para sua hora noturna e todos indo para casa ou então marcando encontros improváveis e absurdos, burburinho da multidão circulando pelo centro e pelos bairros enquanto as lojas fecham mas ainda estão iluminadas, os loucos discursando pelas esquinas, a umidade da chuva que ainda não passou, até mesmo a lembrança da noite anterior no quarto revolvendo-nos em carícias e mais nosso encontro na morna escuridão de um bar –  hora confessional, expondo as sucessivas camadas do que tem a ver –  onde a proximidade dos corpos confunde tudo, palavra e beijo, gesto e carícia
TUDO GRAVADO NO AR
e não o fazemos por vontade própria
mas por atavismo

2

a sensação de estar aí mesmo
harmonia não necessariamente cósmica
plenitude muito pouco mística
porém simples proximidade
da aberrante experiência de viver
algo como o calor
sentido ao lado de uma forja
(talvez devesse viajar, ou melhor, ser levado pela viagem, carregar tudo junto, deixar-se conduzir consigo mesmo)
ao penetrar no opalino aquário
(isso tem a ver com estarmos juntos)
e sentir o mundo na temperatura do corpo
enquanto lá fora (longe, muito longe) tudo é outra coisa
então
o poema é despreocupação

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