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A crueldade de Dostoiévski, segundo Mikhailóvski

fevereiro, 2015

Alguns meses após a morte de Fiódor Dostoiévski, Nikolai Mikhailóvski, crítico russo muito envolvido com o movimento populista, de vertente socialista, e com política em geral, escreveu o artigo “Um talento cruel”. Este veio a ser muito famoso na história da crítica literária russa, pois seria uma síntese da visão que parte da esquerda russa tinha do autor, além do modo como ele foi enxergado na época da União Soviética.

Segundo o crítico, a obra de Dostoiévski sempre seguiu duas premissas básicas: a de que “o homem é um déspota por natureza e gosta de torturar” [1] e a de que “o homem ama o sofrimento até a paixão” [2]. Mikhailóvski mostrou que, para Dostoiévski, torturar ou torturar-se, ou os dois ao mesmo tempo significaria não só o destino do homem, como também a profunda demanda de sua natureza.

A presença desses elementos pode ser muito sutil em seus contos e romances, presentes em uma ou outra citação, como “A tirania é um hábito que se transforma em necessidade”, em O sonho do titio. Às vezes, porém, ela se mostra como aspecto principal da história, especialmente em suas obras finais.

As análises desse tipo de sentimento humano contribuíram para o pensamento de vários críticos de que sua obra seria demasiadamente psicológica, perdendo um pouco de seu valor artístico. De fato, ele analisa muito bem a psique humana, nos trazendo uma visão aprofundada da personalidade da pessoa que participa de um ato de tortura, seja ativa ou passivamente.

Adorno, ao falar do autor russo, dizia que “…na medida em que há nele psicologia, trata-se de uma psicologia de natureza inteligível, da essência, e não dos homens empíricos tais como os que se movem no mundo”. Apesar de Dostoiévski de fato estudar a ciência da psicologia, ele se interessava na análise da mente humana pela observação e pelo sentimento, mais do que por métodos científicos.

Para ilustrar essa psicologia de Dostoiévski, Mikhailóvski usa a imagem de um lobo devorando a ovelha. Ao observar isso, o escritor não chamava atenção à fome do lobo, e sim escavava nas profundezas de sua alma não só a satisfação do apetite, como também o desejo da crueldade. Não há quase nunca um motivo para a vontade de torturar do herói dostoievskiano. Não é vingança, moralismo, é apenas prazer, como em uma tourada espanhola. É a crueldade autossuficiente.

Essa é a parte mais conhecida de Dostoiévski, pois está presente em seus trabalhos mais famosos, os pós-exílio (como Crime e castigo, Memórias do subsolo, etc.). Além disso, porém, o autor estudou os sentimentos da própria ovelha ao ser devorada, lançando a tese de que o povo russo gosta tanto de sofrer quanto de prosperar.

Suas personagens cometem crimes sem motivos ou, se algum é mencionado, o autor o faz de maneira sarcástica, tirando sua legitimidade. O que esses crimes trazem, no final, é remorso ou mesmo punição. Assim, realmente o único motivo para terem sido cometidos é o fato de a personagem querer, mesmo que subconscientemente, sofrer.

É possível que Dostoiévski não concorde inteiramente com essas ideias, ou nem mesmo parcialmente, mas vendo-as em boa parte de sua obra, podemos afirmar que ele ao menos contribuiu muito para o seu desenvolvimento. Mikhailóvski ainda chamava atenção ao fato de que ele nunca mostrou uma opinião política clara, então suas obras poderiam muito bem mostrar seus próprios ideais.

Mikhailóvski, sendo muito engajado com causas sociais, implica especialmente com essa última tese, a de que o homem gosta de sofrer. Isso porque, segundo ele, ela contribuiria para um pensamento liberal-burguês de que não adianta alcançar a prosperidade através de projetos sociais se, no fundo, as pessoas gostam de sofrer. Mais do que isso: essa tese levaria as pessoas a pensarem que o sistema jurídico, ao absolver um camponês criminoso, não estaria compreendendo as necessidades de sofrimento desse russo que cometeu o crime com o objetivo de sofrer remorsos na cadeia.

Inclusive, há uma passagem em Memórias do subsolo em que o protagonista diz: “E por que estais convencidos tão firme e solenemente de que é vantajoso para o homem apenas o que é normal e positivo, numa palavra, unicamente a prosperidade? Não se enganará a razão quanto às vantagens? Quem sabe o homem não ama só a prosperidade? Quem sabe ele ama, na mesma proporção, o sofrimento? Quem sabe o sofrimento lhe é extremamente tão vantajoso como a prosperidade? O homem, às vezes, ama terrivelmente o sofrimento, ama-o até a paixão, isso é um fato”.

Mas Mikhailóvski não critica a presença do sofrimento em si, pois em obras literárias é muito comum e natural acontecer isso, afinal, sofrer ocupa boa parte da vida, e a literatura seria um reflexo dela. O que distingue Dostoiévski da maioria dos escritores é como esse sofrimento é tratado, de maneira desnecessária.

A necessidade, de acordo com o pensamento crítico mais em voga na época, com o qual Mikhailóvski concordava, poderia tomar duas vertentes: uma, com relação à própria história, em que cada acontecimento deve contribuir ao final da história. Assim, as digressões tornam-se problemáticas. E isso leva à segunda vertente: as digressões podem surgir, mas desde que elas exibam a realidade, façam o leitor pensar e tragam algum sentido moral. Ou seja, que tenham alguma utilidade social.

Por isso, ele não gostava que Dostoiévski fizesse digressões enormes e cíclicas com o objetivo apenas de analisar a mente humana, sem ter nenhum motivo político.

Assim, Mikhailóvski aponta que o desnecessário toma tal foco na obra de Dostoiévski que o necessário acaba se tornando enfadonho. O crítico diz, então, que essas “cenas introdutórias e digressões excessivamente prolixas surgem sempre que possível para provocar excitações torturantes no leitor ou submeter as personagens a uma ação cruel qualquer”. Ele faz com que suas personagens sofram uma montanha de desgraças e ofensas, com que cometam crimes horrendos (e que sintam remorsos por isso).

Dessa maneira, Dostoiévski não dá atenção à rotina e aos acontecimentos “úteis” na vida de uma pessoa, e ao mesmo tempo dedica-se a cada detalhe microscópico do sofrimento desnecessário de maneira extremamente atenciosa. Era, para esses casos, um observador de extrema sutileza.

Segundo Mikhailóvski, essa atenção excessiva ao desnecessário seria uma violação de todas as condições amplamente reconhecidas da criação literária, mas que o talento de Dostoievski permite que leiamos seus livros e fiquemos fascinados, envolvidos, sofrendo junto com as personagens, num afluxo e refluxo de diversos sentimentos. Nem sequer questionamos o motivo de tamanha crueldade pois abandonamos o racional, viramos nossos sentidos, como espectadores de uma tourada espanhola.

A primeira obra publicada de Dostoiévski, Gente pobre, foi muito bem recebida na época e virou um sucesso imediato na literatura russa, comovendo muitas pessoas ao retratar a pobreza e o horror ante o capitalismo de uma forma humanista. Ela é, porém, extremamente diferente de seus trabalhos seguintes.

Mikhailóvski diz que talvez isso seja porque, ao receber uma crítica muito boa por essa obra, Dostoiévski tenha provado a si mesmo de sua habilidade de comover as pessoas. Assim, depois dela, é possível que ele tenha tido mais coragem para arriscar em sua escrita. Além disso, o crítico aponta para a possibilidade de ele querer repetir e intensificar o efeito de comoção e sofrimento causado nas pessoas graças às suas palavras.

Seu talento foi se aguçando na mesma medida que sua crueldade se intensificava. Enquanto Gente pobre possui grande humanismo e pouquíssima sofisticação artística, Os irmãos Karamázov, sua última obra, possuiria enorme crueldade mas também passagens de muita força e vivacidade. Dessa maneira, a vontade de causar compaixão e simpatia pelo homem oprimido foi virando tortura desnecessária ao longo dos anos.

A crueldade de Dostoiévski pode ser observada, também, de maneira menos clara, em suas primeiras obras. É menos explícita, pois suas personagens são as ovelhas, e não os lobos, mas ela ainda está lá por meio do próprio autor da história.

Por exemplo, em O duplo, Dostoiévski cria o sr. Golyádkin, infeliz trabalhador de uma repartição pública, “inseto pequeno e desinteressante”, de acordo com Mikhailóvski, e, sem motivos aparentes, cria um duplo seu, fazendo com que ele enlouqueça, apenas para zombá-lo junto ao leitor.

Para quê? Não mostra a verdade da vida. As personagens são muito grosseiras, então não haveria demandas artísticas para elas. Não traria sentido moral. Não faz com que o leitor reflita sobre certo assunto. Dostoiévski quis apenas torturá-lo para ver como ele iria reagir, sem mais motivos para essa perversidade.

A crueldade desnecessária aparece também no primeiro conto publicado de Dostoiévski, Sr. Prokhartchin, analisado por Boris Schnaiderman no livro Dostoiévski – prosa e poesia. Nesse conto, a personagem principal é um homem simples, humilde, quieto e aparentemente inofensivo. Porém, há uma cena em que um inquilino da pensão onde ele morava faz uma piada boba com ele, o que o leva a fazer um discurso enorme e perverso sobre como muitas desgraças iam acontecer em sua vida e ele acabaria sendo um mendigo, entre outras pragas.

Esse discurso foi uma total digressão do enredo, não contribuiu em nada à história, não possuía objetivo moral ou de provocar reflexões ao leitor, foi uma crueldade desnecessária, que até mesmo a personagem mais inofensiva foi capaz de fazer.

Mikhail Bakhtin, crítico russo do século XX, chamou atenção a um ponto interessante, que Dostoiévski quase nunca utiliza o tempo biográfico, preferindo concentrar as ações nos pontos de crises, fraturas e catástrofes. Não se refere à história das personagens, sua gênese, suas influências. É muito centrado no atual, e seu mundo toma uma visão essencialmente espacial, não temporal. Assim, o autor nunca dá motivos às crueldades de suas personagens, como hoje em dia é comum ser feito, com a história por trás do vilão, que explica seus traumas e o que o levou a fazer suas vilanias.

Boa parte da crítica de Mikhailóvski pode nos parecer utilitarista demais, conservadora, até, pois trata de certos temas como de menos importância, tirando a liberdade de criação do artista. Mas esse artigo contém muitos valores críticos em voga na época, que hoje em dia não são usados. Ele acabou sendo de extrema importância para o pensamento crítico da literatura na União Soviética, que não censuravam Dostoiévski pois ele era uma figura de enorme prestígio para a cultura russa, mas ainda assim não incentivavam sua leitura, como faziam a outros autores com menos questões éticas complicadas.

Esse artigo também ficou famoso por criticar abertamente Dostoiévski numa época em que ele era ovacionado pela maioria dos críticos, até mesmo chamado de profeta por alguns.

Portanto, o artigo de Mikhailóvski pode ser alvo de muitas críticas nos dias de hoje, quando os autores de ficção têm liberdade criativa e podem tratar de uma grande pluralidade de temas, mas sua importância histórica deve ser respeitada, assim como sua ousadia de falar o que muitos já pensavam na época.


 

ECO, Umberto, Como se faz uma tese em Ciências Humanas, 6.ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 1995. — norma Umberto Eco/UE:

[1] citação de O jogador, de DOSTOIÉVSKI, Fiódor
[2] citação modificada de Memórias do Subsolo, de DOSTOIÉVSKI, Fiódor

Referências:

MIKHAILÓVSKI, Nikolai, Um talento cruel, em GOMIDE, Bruno, org., Antologia do pensamento crítico russo, Editora 34, com tradução de BRANCO, Sonia.
SCHNAIDERMAN, Boris, Dostoievski: prosa e poesia, Editora Perspectiva, 1982.

Orientação da professora doutora da UFRJ, Sonia Branco.

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