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Orfeu Negro: quando o teatro grego subiu a favela carioca

janeiro, 2015

Entre os dias 25 e 30 de setembro de 1956, foram encenadas, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, as primeiras apresentações de Orfeu da Conceição, peça pioneira por seu elenco composto apenas por atores negros e que trazia, para o cenário de uma favela carioca, o mito grego de Orpheu.

Escrita por Vinícius de Moraes, com cenários de Oscar Niemeyer, elenco de atores do grupo Abdias do Nascimento e canções de Tom Jobim e Vinícius (a primeira parceria da dupla), a peça não se destacou apenas pelos nomes de peso, mas também por sua pujança criativa, beleza lírica e ousadia dramatúrgica.

Sem dúvidas um feito histórico para as artes brasileiras, a obra começou a ser rabiscada pelo poetinha carioca ainda no ano de 1942, quando visitava favelas, centros de umbanda e outros locais de tradição africana pela cidade do Rio de Janeiro, guiando o amigo estadunidense e também escritor Waldo Frank e sentindo-se “particularmente impregnado pelo espírito da raça”1. Mais de uma década depois, com o grande ator e ativista brasileiro Abdias do Nascimento (1914-2011), surgiu a urgência de encenar a obra, o que seria um marco à representação artística dos afrodescendentes do Brasil, que pela primeira vez pisariam no palco no mais importante teatro do país.

Em retrospecto, vale lembrar que em 1956 o presidente era Juscelino Kubitschek, mas a Brasília de Niemeyer ainda não havia sido construída. Tom e Vinícius já compunham, mas Garota de Ipanema ainda não tinha sido escrita. Sendo assim, em muitos quesitos, essa obra foi precursora da carreira de muitos nomes referenciais da cultura brasileira.

Sem financiamento oficial, a peça foi paga em grande parte pelo próprio Vinícius (segundo ele, rendendo-lhe muito prejuízos²), também contando com algumas facilitações trazidas pela sua fama e a de outros de seu elenco estrelar: “Orfeu da Conceição não foi montada à base de palavras gordas como direitos e deveres, mas sim num movimento de entusiasmo e idealismo”3. Vinícius, historicamente associado às tradições africanas, via que a transferência do mito grego do poeta e músico da Trácia ao cenário caloroso e agitado da vida carioca era um passo mais do que apenas possível, como também lógico: “A vida do morro, com seus heróis negros tocando violão, e suas paixões, e suas escolas de samba que descem à grande cidade durante o Carnaval, e suas tragédias passionais, me pareceu tão semelhante à vida do divino músico negro, e à eterna lenda da sua paixão e morte, que comecei a sonhar um Orfeu negro”4.

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Orfeu ama Eurídice”5 – mais do que uma revelação, essa é uma sina de “mil, muitos mil anos atrás”6 na vida do músico que leva alegria ao morro, que encanta as mulheres ao seu redor e que, durante o Carnaval, vira rei na avenida. Na tragédia de Vinícius, o Olimpo é morro e os deuses são favelados, pretos e pobres, e também felizes e cheios de vida, ânimo e ritmo. Diz o autor: “A ação situa-se no tempo presente, num morro que poderia ser não importa qual da cidade, e todas as personagens da tragédia são gente de cor – e isso por uma razão muito simples: procurei dar à trama a mais completa unidade (…). A intromissão de personagens brancas criaria certamente na entrosagem psicológica das figuras elementos alheios à tragédia tal como ela se desenrola”7.

Dividida em três atos, a peça transporta de forma equilibrada os principais elementos da tragédia clássica, substituindo a lira pelo violão brasileiro e o inferno de Plutão pela escola de samba Os Maiorais do Inferno. A ação discorre nos dias do Carnaval, tendo o ápice em sua noite derradeira. Por fim, o tom lírico enche a trama de belos versos, melodramas de amor com rompantes de ódio, inveja e melancolia representada em canções que se tornaram icônicas, como A Felicidade, com seus versos: “Tristeza não tem fim/ Felicidade sim”.

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Em 1958, o cineasta francês Marcel Camus veio ao Brasil com a tarefa de adaptar para o Cinema o texto de Vinícius. Seria seu segundo filme como diretor, antes tendo sido assistente de diretores como Luis Buñuel, entre outros. Numa coprodução que uniu França, Itália e Brasil, Orfeu Negro enfrentou o desafio não apenas de adaptar a linguagem teatral lírica, como também de capturar o espírito muito particular do Carnaval carioca, ao mesmo tempo em que conservasse suas origens clássicas, enquanto mito helênico.

Recrutando alguns atores pelas ruas do Rio de Janeiro, incluindo o protagonista, Breno Mello, e trazendo a estadunidense Marpessa Dawn (imagem acima), que posteriormente tornou-se esposa de Marcel8, para o papel de Eurídice, essa realização tornou-se um dos filmes mais premiados da temporada no circuito cinematográfico, ganhando a Palma de Ouro em Cannes (em que competia com Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais, e Os Incompreendidos, de François Truffaut), o Bafta inglês, além do Globo de Ouro e do Oscar estadunidenses. De acordo com as regras das premiações, os prêmios são contados ao país produtor – ou ao país de origem do diretor –, sendo assim, aquele que pode ser considerado o único Oscar do cinema brasileiro não caiu na nossa conta, mas à França, assim como os outros prêmios ganhos. Talvez por isso, mas também por outros motivos que se perderam no tempo, Orfeu Negro continua sendo o filme mais premiado e também o mais esquecido da filmografia brasileira.

No roteiro assinado por Marcel e Jacques Viot, perde-se muito do lirismo do texto de Vinícius, bem como parte da harmonia em relação ao mito original. Em contrapartida, o filme ganha um ritmo ensandecido e frenético na sua representação do Carnaval, bem como substitui passagens longas da peça – como todo o 2º ato, onde Orfeu visita a escola Os Maiorais do Inferno –, por alternativas metafóricas bem construídas, com destaque à visita de Orfeu a um terreno de umbanda, belíssima cena. As músicas foram compostas por Luiz Bonfá e Tom Jobim, e as canções executadas por Breno foram posteriormente dubladas por Agostinho dos Santos (Manhã de Carnaval e Felicidade).

Aos que conhecem ou habitam o Rio de Janeiro, o filme também é uma viagem no tempo, época em que Niemeyer ainda não havia feito a Sapucaí e o carnaval era na avenida Rio Branco; quando bondes circulavam pelo centro, sobre os arcos da Lapa e subiam as ladeiras de Santa Tereza; até mesmo quando o Aterro ainda estava em construção, logo após a demolição do morro Santo Antônio, e o maior parque urbano do mundo ainda era um terreno inóspito e triste.

Existe muita malandragem, muito de “espírito do tempo” [Zeitgeist], muito de ginga e ritmo de um povo sob o Sol que fora belamente transportado para as telas da mesma forma como Vinícius, no texto original, bem sucedeu ao inserir nos diálogos elementos da fala popular. Se também sobra um pouco de visão estereotipada (como o retrato do Carnaval como uma festa que domina a tudo e a todos em um grande transe), pode-se relevar em nome de uma realização maior e uma boa adaptação. De fato, não há limitação técnica, nem qualquer outra falta grave que faça esse filme perder o seu valor de verdadeiro monumento histórico.

No elenco, brilham desde nomes que fariam história na dramaturgia nacional, como a grande Lourdes de Oliveira, até outros que nunca mais brilharam tanto, como o próprio protagonista, Breno Mello, que na época queria ser jogador de futebol, mas insistiu durante algum tempo na carreira de ator, fazendo outros oitos filmes, e terminou em Porto Alegre vendendo folhetos publicitários9 – no fim da vida, porém, foi homenageado em Cannes, 46 anos após a consagração de Orfeu Negro, com o documentário À la recherche d’Orfeu Negro, de René Letzgus e Bernard Tournois. Além disso, há também uma ponta não creditada do cantor e compositor Cartola, com sua esposa, Dona Zica, na cena em que Orfeu é arrastado por Mira até o cartório da cidade, além de um personagem (Ernesto) interpretado pelo próprio diretor Marcel Camus.

Certa vez, o artista plástico Jean Michel Basquiat referiu-se a Orfeu Negro como uma de suas primeiras referências musicais, e o atual presidente dos EUA, Barack Obama, na autobiografia Dreams from my father (1995), afirmou ter sido este o filme favorito de sua mãe10. Orfeu Negro revolucionou, à sua maneira, a dramaturgia do país, trazendo o negro para o centro do palco, abrindo espaço para a Bossa Nova, para o teatro experimental, para as curvas de Niemeyer e até para a valorização da exótica cultura tropical. Diz Orfeu, em certa cena do filme: “Já houve um Orfeu antes de mim. Talvez haja outro depois. Mas agora, quem manda sou eu.” Assim é o mito do sambista que percorre os morros cariocas, dedilhando seu violão e chorando seu samba, eternamente atrás da amada Eurídice.

O negro possui uma cultura própria e um temperamento sui generis, e embora integrado no complexo racial brasileiro sempre manifestou a necessidade de seguir a trilha de sua própria cultura, prestando assim uma contribuição verdadeiramente pessoal à cultura brasileira em geral: aquela liberta dos preconceitos de cor, credo ou classe. Essa peça é, pois, uma homenagem do seu autor (…) ao negro brasileiro, pelo muito que já deu ao Brasil mesmo dentro das condições mais precárias de existência” – Vinícius de Moraes.


1. MORAES, Vinícius de. Orfeu da Conceição, 1º edição, São Paulo: Companhia de Bolso, 2013. p. 7. 2. Em texto inconcluso Minha Experiência Teatral, presente na edição de Orfeu da Conceição da Companhia de Bolso, 1º edição, São Paulo, 2013. 3. MORAES, Vinícius de: p. 89. 4. Idem, p. 8. 5. Filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, 1959 (França, Itália e Brasil). 6. Idem. 7. MORAES, Vinícius de: p. 9. 8. Via Wikipedia. Black Orpheus: http://en.wikipedia.org/wiki/Black_Orpheus. 9. Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/2005/05/17/ult32u11251.jhtm. 10. Via Wikipedia. Black Orpheus: http://en.wikipedia.org/wiki/Black_Orpheus. 11. MORAES, Vinícius de: p. 10.


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