No vídeo, duas pernas costuradas por uma mão se entrelaçam em um corpo híbrido, produzindo uma imagem ao mesmo tempo familiar e perturbadora. A meia-calça em negativo transforma a percepção da pele: ela deixa de ser apenas cobertura para tornar-se espaço de ambiguidade, confundindo interior e exterior, superfície e profundidade. A costura, inicialmente um gesto mecânico, rapidamente se revela como uma operação intensiva: atravessa, mistura, reorganiza, cria uma tensão que não pertence mais a um corpo isolado, mas a um espaço de relações de forças.
À medida que a costura avança, começa a surgir, entre os dois pares de pernas, uma forma inesperada — um contorno que não existia antes, algo que parece ganhar vida própria. Não é apenas a fusão de corpos, mas a emergência de uma entidade intersticial, feita de espaços, contatos, pressões e limites que se dobram sobre si mesmos. Essa forma não é previsível nem plenamente reconhecível: ela surge da intensidade do encontro, da tensão entre os pares de pernas e da mão que costura, como se o ato de unir criasse, ao mesmo tempo, algo novo — um corpo que se inventa a cada ponto.

A pele, nesse contexto, não é simples superfície nem cobertura passiva: ela se revela como campo em que tudo se inscreve — a pressão da mão, a penetração da agulha, a mistura das pernas. A costura torna visível aquilo que normalmente permanece invisível: o fluxo de força, a vibração da carne, a transformação do espaço que separa e une. O negativo amplifica essa tensão, fazendo da imagem uma espécie de pele invertida, onde luz e sombra, dentro e fora, presença e ausência se confundem o tempo todo.

O fio que unia as pernas se rompe. Uma perna se afasta, saindo de cena, enquanto a outra permanece. A fusão que parecia contínua mostra-se provisória: a separação evidencia a tensão entre encontro e autonomia, entre fusão e limite. A perna que fica na imagem retém vestígios, bambeia diante da câmera, ecoando tudo o que viveu até ali. A costura nunca unifica de fato: ela orquestra intensidades, cria ritmos, encontros e desencontros. O sentido e o corpo se constroem tanto na aproximação quanto na distância, na inscrição e no rompimento.
Ao assistir ao vídeo, emergiram em mim questões sem nome, sem resposta — perguntas que abrem um caminho mais alargado. Quando o corpo é atravessado pelo outro, que intensidades se anunciam antes mesmo de qualquer gesto? Onde se desenha o limite entre o suporte e o sufoco? Em que parte do corpo dói quando tentamos costurar com o outro?

Performance: Gabriela Serfaty
Colaboração performance: Maya Dikstein
Trilha Sonora: Leandro Donner
Vídeo e Edição: Carolina Amorim
Colaboração artística: Renata Lamenza e Patricia Bergantin
Texto: Lívia Abreu