pesquise na USINA
Generic filters

“Eu não sei nadar…”: Riobaldo e a práxis da existência

junho, 2023

O título escolhido para este ensaio, “eu não sei nadar”, é uma frase proferida pelo narrador-personagem – Riobaldo – da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Obra-prima? O que é uma obra-prima? Obra alude a trabalho, produção de um artista, cientista, artesão, etc Por exemplo, quando chamamos um pedreiro para consertar algo em uma parede, dizemos: “minha casa está em obras; estou fazendo obra”. A imagem do antes e depois dessa hipotética parede nos conduz a: transformação.

O pedreiro é, portanto um mediador, aquele que conhece a técnica necessária para transformar esse “já não mais”, a parede quebrada, em “ser”, em parede restaurada. Essa imagem nos diz que mesmo costumeiramente, de modo despercebido, falamos e atuamos em um horizonte no qual o elo entre o “poder ser”, o “vir a ser” e o “ser”, é: tornamento. Isto é, : embora a parede possa parecer idêntica a seu modo anterior – anterior à necessidade da reforma -, o pedreiro executou a obra. A parede que aos nossos olhos parece idêntica é, verdadeiramente, trans-torno. Porém, não no sentido casual e corriqueiro da palavra, enquanto incômodo, mas transtorno na medida em que depois da obra (trans-) ela parece ser a mesma boa e velha parede da nossa casa (torno).

Essa situação, banal, nos ajuda a pensar na segunda parte da interrogação feita linhas acima: o que seria “prima”? Chamamos de prima, um parente imediato. Prima, portanto, diz de primeiro. Mas, quando paramos para refletir a respeito da denominação “obra-prima”, esse “prima” quase nunca diz de primeira, geralmente queremos expressar que o artista conseguiu alcançar seu ápice, um lugar de excelência.

A obra-prima é a obra chave, na medida em que ela abre e nos mostra aquilo que consideramos originário no artista. Contudo, como a nossa parede, também é resultado da execução de um procedimento, uma espécie de originalidade conquistada, exercício desse artista em aprimorar sua técnica. É a esse sentido de obra-prima que me refiro quando considero – e toda sua crítica – Grande Sertão: Veredas a obra-prima de Guimarães Rosa.

Nos limites do Sertão, a transformação de que falamos, isso que a obra é em seu movimento, a ação de demudar algo – ou a si -, é chamada: “travessia”. O título desse ensaio foi retirado de um trecho em que nosso jagunço, o narrador-herói-personagem, Riobaldo, se encontra em uma travessia. Tudo se dá a partir de uma promessa feita pela mãe de Riobaldo, que acabara de sarar de uma doença. O cumprir da promessa era Riobaldo esmolar até conseguir dinheiro suficiente para, metade, “pagar uma missa”, e outra metade “pôr dentro duma cabeça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco”. O herói conclui, então, que o melhor lugar para conseguir a dita quantia, esmolando, era o porto. Vai até lá alguns dias, mas ninguém até lá ia. Até que, no “terceiro ou quarto dia”, eis que aparecem pessoas. Nesse ir e vir, nosso ainda não jagunço, o menino Riobaldo, “Baldo”, vê um “menino, encostado numa árvore, pitando cigarro”. Diz-nos a narração que o menino deveria ter equivalência de idade com nosso herói, talvez pouco menos.

A partir disso, “Baldo” aproxima-se do menino desconhecido, inominado, e ele, o menino, o informa que os homens que estavam no porto eram por parte de seu tio, o comprador de alguns sacos de arroz. A primeira descrição do menino é feita por Riobaldo, e ele diz que: – “era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos- grandes, verdes”. Confessa, então, que sentiu prazer na companhia daquele menino como nunca antes, por ninguém, havia sentido. Ficaram os dois, supostamente parados, ao passo que o menino olhava para os homens trabalhando e, esse olhar, “sisudo”, narra nosso herói, fazia-o olhar também na mesma direção. Vergonhoso de sua situação, “mesmo em fé de promessa”, de estar esmolando, Riobaldo nos conta que, escondido, enrolou uma sacola que recebera de sua mãe – para que guardasse o dinheiro das esmolas –. Diz que “foi recebendo um desejo de que ele não fosse mais embora”, mas também sentiu, “modo seu de menino” que aquele outro, o inominado menino, também já simpatizava com ele, “Baldo”.

Com “um quarto de queijo, e um pedaço de rapadura”, o menino decide passear de canoa. Convida, então, Riobaldo. Nosso narrador, linhas atrás, nos contara que apesar de gostar de ir lá, ao porto, mesmo que ninguém viesse, tinha receio de descer o barranco. Quando do convite desse menino, ainda desconhecido, Riobaldo diz que era inegável, irrecusável, dada a simplicidade com que ele, o menino, tudo fazia. Pois que aceitou o convite. O menino, então, dá a ele sua mão para ajudar-lhe a descer o barranco, onde entrariam na canoa. Segundo seu contar, escolheram a canoa com menos água e lama, ao que ele, nessa, “sentou de pinto em ovo”. O menino sentou-se a sua frente. Riobaldo observa, então, que a canoa mal se equilibrava, saculejando, assumindo o balanço do correr do rio. Aqui, novamente, informa que o menino tinha lhe dado a mão para descer o barranco. Na medida em que a canoa balançava, receoso, “Baldo” se lembrava de que não sabia nadar.

O passeio decorre até que vislumbra o “do-Chico”, uma “imensidade”. “Baldo”, o menino, pergunta ao seu desconhecido amigo se devem voltar, dada a violência do rio. O menino, sem nome, responde com a pergunta: – “Para quê?”. Vira ao remador – também menino como eles – e diz: – “Atravessa”. O que Riobaldo relembra e narra é que teve medo, um “medo imediato”, isso é, sem mediação, impossível de dizer, comunicar, traduzir em palavras. Medo esse que, lá pelas tantas, na travessia, fez nosso “Baldo” fechar os olhos e se agarrar a uma esperança, ao ouvir dizer que canoa, quando afunda, basta se segurar nela para não afundar. Desmentido, o canoeiro informa a Riobaldo que aquela canoa era das que afundavam por completo. Supostamente vendo os olhos arregalados de “Baldo”, o menino disse: – “Carece de ter coragem…”. E “Baldo” ao menino: – “Eu não sei nadar…”. O menino contra-respondeu: – “Eu também não sei”.

A viagem continua, o menino manda ao barqueiro que encoste. Eles, então, saem da canoa. “Baldo” não sabia onde o menino iria, onde queria chegar, mas o segue. Se sentam em um lugar e o inominado menino pergunta se ele quer comer, oferecendo a ele a rapadura e o queijo. De repente, narra, surgiu um homem debochando de ambos e indagando o que faziam ali. Dizia: – “Também quero!”. “Baldo” espanta o homem, falando que não faziam “sujice” alguma, mas o menino, ao contrário, o chama, dizendo: – “Você, meu nego? Está certo, chega aqui…”. “Baldo” fica surpreso, mas logo ouve um grito e revela-se, então, que o menino tinha cravado uma faquinha, que ainda portava, na coxa do homem..

Riobaldo narra seu receio ao permanecer naquele lugar, perigando do homem voltar. Pede para irem embora. O menino, sem sair do lugar, novamente diz: – “Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem…”. “Baldo” lembra, então, que o menino tinha dito que seu pai era o homem mais valente do mundo. Retorna, portanto, ao tema. No que o menino se levanta e chama para que voltassem. Ao término dessa passagem, de volta a canoa, o menino declara a “Baldo”: – “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente…”. E Riobaldo, então, ao ouvir o menino, narra: – “Eu não tinha medo mais.” Conclui exclamando que o sério e pontual da estória que narrou, o motivo pelo qual a narrou, é que ele “não sentia nada”. “Só uma transformação, pesável.” A transformação que, de certo modo, encerra o relato de Riobaldo a respeito desse encontro é, também de certo modo, o transtorno da nossa hipotética parede. Esse episódio marca o momento do primeiro encontro entre o menino “Baldo” e o desconhecido, aquele a quem Riobaldo, anos mais tarde, viria a conhecer por Reinaldo, Diadorim.

Mas, dentre tantas passagens graves, por que essa? Por que teria eu escolhido para título desse ensaio a confissão de nosso menino Riobaldo de que não sabia nadar? Voltemos à parede. A transformação relatada por Riobaldo é, em verdade, trans-torno . Trans-torno em, pelo menos, um duplo. No imediato de voltar a ser, retornar, na medida em que de fato retornaram à canoa, ao porto, mas transtorno também no sentido do trânsito, da mudança, na medida em que ele já não sentia medo, nada. A transformação de que fala Riobaldo é tanto topográfica, isso é, diz do trânsito entre um lugar e outro, mas é, sobretudo, antropogênica. A transformação, o trans-torno, demuda nosso “Baldo” de um lugar, um estado de medo, para outro, para a ausência desse medo, para a presença dessa ausência.

A narração do episódio é encerrada de modo costumeiro, sob forma de pergunta, ao que Riobaldo profere: – “Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino?”. A conclusão de nosso jagunço é que ele tinha de aprender a estar alegre e triste, “juntamente”. Pois que, todas as vezes que se lembrava do menino, se sentia alegre, mas triste por sua ausência. Como percebido, não apenas a travessia do rio se dá em termos polares, duplos, um par, “Baldo”-Menino, como também o que poderíamos chamar de entendimento, a já reflexão de Riobaldo acerca do episódio. Entendimento esse que retira da passagem a lição de que era preciso aprender a sentir, conjuntamente, alegria e tristeza. A transformação de que falou Riobaldo parece ser, então, uma espécie de aprendizado, uma ação. Durante o episódio, não ter medo. A posteriori, sentir alegria e tristeza. Essa transformadora ação, esse transtorno é, a rigor, práxis da existência.

Práxis, do grego prâksis, deriva de – também do grego – prásso, prátto, que significa: “ir através; percorrer; atravessar; realizar; cumprir”. Ao indagar a necessidade daquele encontro, o por quê de ter encontrado com aquele menino, Riobaldo indaga pela fatalidade, pela necessidade do destino, personificada pelo menino Destino é meta, rumo, caminho, tudo que é determinado pela providência ou pelas leis naturais. Lembremos, oportunamente, da indagação perene de Riobaldo, a saber: – “o diabo existe?”. Diadorim, “diá” como o chamará Riobaldo certas vezes, diabo… Não, Diadorim e diabo não são, aqui, apenas duas palavras semelhantes. Em primeiro lugar, o prefixo “diá” existente tanto em Diadorim quanto em diabo, assim como em diálogo ou dialética, deriva também do grego, diá, e significa: “através de; durante; por meio de; passagem”. Ou seja, travessia.

É emblemática a dupla menção de Riobaldo ao fato de o menino ter segurado em sua mão para que descessem o barranco. A mão do menino era, para o nosso jagunço, o toque do destino, destino-em-ação, destinação. Riobaldo confessara ter receio de descer o barranco. Teria descido não fosse aquela mão, não fosse a mão-caminho-destino? Não sabemos. O que sabemos é que sem aquela mão, sem aquele arrebatamento, sem ser tomado, tocado, Riobaldo não desceu, per si, o barranco. O menino, ao dar a mão ao também menino, “Baldo”, converte-se em caminho, passagem, possibilidade para que Riobaldo desça o barranco. Ambos descem e, “Baldo”, a certa altura, percebe-se em meio a uma canoa que, a qualquer momento, poderia afundar. Pior, está nessa canoa enquanto querente, isso é, por desejo, mas é tomado pelo medo, pelo medo de a canoa virar e ele se afogar.

Canoa, como sabemos, é uma embarcação indígena, feita a partir do tronco de uma árvore e, o principal, uma canoa não tem leme -a estrutura que possibilita determinar o rumo, a direção.. Na canoa, “Baldo” não está somente a bordo de uma embarcação, mas é abordado pelo dês-tino. Destino é, então, o não-tino, a incapacidade de discernir, de ajuizar. Tino, diz- nos a etimologia, é “apontar um alvo”. O quê de mais sem juízo, desarrazoado, poderia alguém fazer do que entrar em uma canoa rasa, podendo afundar a qualquer momento, sem saber nadar? Mas, lembremos uma segunda vez, assim como Riobaldo, quando nos diz: – “O menino tinha me dado a mão para descer o barranco”. “Baldo” foi, literalmente, conduzido. Conduzir é ir junto com ou dentro de algo, de um lugar para o outro, dando- lhe direção. A canoa não tinha leme? Tinha, e o leme era o menino. Aquela mão delicada, que faz “Baldo” admitir que sentia “vergonha”, era o próprio destino arrebatando nosso ainda não jagunço, tomando-o pela mão, como bem dizemos por aí.

O medo de Riobaldo era, portanto, medo da travessia, mas essa travessia é a sua própria, um caminho. O medo do menino, “Baldo”, era medo da vida. Vida que desponta em possibilidade, isso é, aparece, surge, se origina, a partir desse toque, desse afeto. Riobaldo diz: – “Amanheci minha aurora”. Aurora fala desses momentos iniciais da manhã, quando vemos os primeiros raios de sol, um princípio de claridade. Aurora alude a origem enquanto despontar, levante. A aurora anuncia um novo dia. Amanhecer a aurora é, poderíamos pensar, estar atento, acordado, para a origem. “Amanheci minha aurora”, aqui, diz de um acordar para um começo – que no caso de “Baldo” é conduzidamente começado. Ao narrar, Riobaldo percebeu que, naquela hora, iluminou-se sua aura, fez-se.

Baldar, diz-nos o dicionário, é frustrar-se, anular-se. Baldo é, desse modo, a negação, isso é, a não ação, o estar em cima do barranco sem descer. É por intermédio dessa condução que o leva a entrar na canoa e, portanto, a atravessar o rio que, podemos pensar, “Baldo” se torna, é tornado, Riobaldo. O elemento de composição “rio-” deriva, também, do grego rhéo, e significa “correr; escorrer; verter”. É quando o menino “Baldo” está prestes a verter lágrimas de medo, frente a possibilidade daquela canoa de afundar, que o menino, então, pela primeira vez, diz: – “Carece de ter coragem…”. Coragem, como a palavra alude, é cor-agem, ação do coração. Coragem de vir-a-ser, de passar do menino “Baldo”, da negação intrínseca, da não ação, a Rio-baldo, a ação, a algo que flui: que desce o barranco, que entra na canoa, que atravessa esse rio-ele-mesmo.

Em nenhum momento desse trecho nosso jagunço narrador associa o menino a figura de Diadorim. Não o faz, pelo óbvio. Como no decorrer da estória nos é exposto, apenas anos depois é que Riobaldo viria a saber que Diadorim era, então, aquele menino. Mas há outra interpretação possível, penso, e primo por esta. Diadorim é a personificação do caminho de Riobaldo, a travessia que o atravessa. “Diá” só poderia, nesse momento da história, aparecer como menino, porquanto Riobaldo era, ainda, o “Baldo”. É no amanhecer da aurora, no dia, que “Baldo” transforma-se em Riobaldo, é com o menino que “Baldo” realiza a travessia. A junção de “diá” e “rio” nos leva a diário, que tanto alude a cotidiano, comum, quanto a diário, um escrito. Em termos de escrito, diário deriva do latim diarium, e significa: “pagamento de um dia, registro escrito de memória que se faz cada dia”.

Grande Sertão: Veredas é um diário, isso é, o registro escrito de memória que se fez a cada dia, registro que diz do trans-torno de “Baldo” em Riobaldo, de Reinaldo em Diadorim. Riobaldo exige Diadorim, Diadorim exige Riobaldo. Exigir é, justamente, levar, conduzir para fora. Diadorim é o caminho pelo qual Riobaldo atravessa a si mesmo, Riobaldo é a vertente de Diadorim. É por intermédio do menino que o pathos da dúvida existente em “Baldo” se converte, é convertido em pathos do saber. Saber remete a sabor, gosto. É o gosto por Diadorim que torna possível a existência mesma de Riobaldo. Sua existência é, desse modo, rigorosamente corajosa, isso é, fundada no seu coração, no caminho que Diadorim é para execução de um fim. Qual? Existir, ser homem.

Também, não por acaso, é somente na morte de Diadorim que Riobaldo, se doendo, exclama: – “Meu amor!” Essa ex-clamação, essa ação de exteriorizar a súplica, a dor, é dor de existir. Ao dizer: – “Meu amor!”, Riobaldo se converte, deixa de aludir a necessidade de coragem, para ser a coragem. “Meu amor” é a expressão que marca a mudança chave, a passagem, a travessia do “ter coragem” para “ser coragem”, ser a ação do coração. Quando exclama: – “Meu amor!”, Riobaldo harmoniza seu sentido, sentimento, ao sentir comum da vida, faz da vida um dizível, um comunicável e, por isso, passível de ser contada, lida. Amor, aqui, é possibilidade de harmonização do sentido próprio, da existência, ao logos. É palavra caminho, mediatriz – lugar geométrico dos pontos equidistantes de dois pontos dados. Amor, aqui, é razão se fazendo razão, isso é, amor é a medida do homem, o modo próprio, originário de sua existência.

O par Riobaldo-Diadorim expõe uma dimensão, um sentido, uma possibilidade de ser que, penso eu, é: sentir-sentido. É o gosto por Diadorim, esse sentir, esse amor, o sentido próprio de Riobaldo. Sentido, lembremos, é consciência das coisas, discernimento, razão. A racionalidade expressa nos limites de Grande Sertão: Veredas, isso é, sua lógica, é analógica, se dá na medida em que Riobaldo e Diadorim se afinam, tornam-se um pelo outro, atravessam-se. Nisso, talvez não seja possível falar em uma lógica do Sertão, mas antes, fosse interessante pensar nessa analógica. Analogia diz de proporção, relação, simetria, semelhança. Riobaldo-Diadorim, medo-coragem, Deus- Diabo, verdadeiro-falso, são pares analógicos que dizem da analogia que a vida é. Não é possível, a meu ver, falar em termos de uma lógica de Grande Sertão: Veredas na medida em que ele mesmo me parece ser uma analógica da vida.

Análogo pois que, embora de funcionamento semelhante, isso é, ao narrar Riobaldo enfatiza sempre que narra somente o que viveu, possui origem embriologicamente distinta. A vida, isso que Riobaldo faz quando narra, só é vida na ação, no ato do narrar. – “Se ouviu, sabe”, repete indeterminadas vezes o jagunço ao longo do livro. Se ouviu, se sentiu o gosto, sensacionou, viveu. Mas, como dito, Grande Sertão: Veredas é uma analogia para vida, e analogia porque a história foi contada, terminou. Mas a história só terminou, verdadeiramente, enquanto o livro permanecer fechado. Abrir o livro é, em primeiro lugar, saltar para dentro da narrativa de Riobaldo, pois que a história não “começa”, efetivamente. A narrativa irrompe começada, isso é, a partir de um ponto da vida de Riobaldo, ponto esse que não é sua origem cronológica.

Ao saltar para dentro, Riobaldo nos conduz, em sendo conduzido, a um sentido de vida, de viver, que é a antítese desse salto. É o salto para dentro da canoa que possibilita que “Baldo” salte para fora de si, abdique do medo, torne-se Rio, isso é, que a história flua, que tenha curso, que sua vida, viva. Ler essa história é estar lado-a-lado com Riobaldo, é ter coragem de dizer, com e como ele: – “Eu não sei nadar…”, mas ainda assim estar na condição de querente dentro da canoa. Fazer isso é não negar o destino, a vida diante de nós. Foi por atenção que o ainda menino, o esmolante “Baldo”, viu aquele outro menino encostado em árvore, pitando cigarro. Mas foi sua desatenção que o fez entrar na canoa, seguir o menino, mesmo com risco de morte.

Grande Sertão: Veredas é, por esses e tantos indetermináveis outros aspectos, um livro que ensina a viver. E é possível ensinar a viver? A lição do Sertão, e lição é tanto “ação de ler” quanto “ato de escolher”, é que é preciso escolher ler, ler isso que a vida escreve – o nosso destino – e, em escrevendo, descreve, nossa existência. Mas, como? Como é possível entrever, ler o destino? É possível? Talvez nunca saibamos. Sabemos que a canoa não afundou na travessia. Sabemos que o fato de não saber nadar, não interditou o ato de entrar na canoa e atravessar. O que a estória exigiu de Riobaldo e o que a vida exige de nós é que estejamos a favor, isso é, pela graça. Porque o menino segurou sua mão, “Baldo” pode descer o barranco. Porque Riobaldo atravessou, Diadorim existiu. Não por acaso, em determinado momento da história, Riobaldo diz: – “Reinaldo era Diadorim, mas Diadorim era um sentimento meu.”. Que isso que nós é próprio seja próprio em favor, isso é, pela graça de outrem.

Gostaria de encerrar esse ensaio com, talvez, minha frase favorita – se é possível – desse livro. Ela, claro, é um relato de Riobaldo a respeito de Diadorim, e ele, então, diz:

“Os afetos. Doçura dos olhos dele me transportou para os olhos de velhice de minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo.”

Ver doçura nos olhos de alguém é possibilidade que desponta, apenas, para quem vê com gosto, para quem sente esse gosto e, sabe, portanto, que o sentido de viver, de existir, é sentir. Sentir é ação de harmonizar-se com o sentido da vida, isso é, sua consciência, sua razão. Se estamos a bordo da canoa, se a vida nos porta, o grave é que desçamos o barranco, que partamos rumo a esse porto, que estejamos em trânsito. O transporte abertura de Riobaldo: a doçura dos olhos de Diadorim. O nosso? “Sertão é todo tempo e todo lugar”. Para sentir, não é preciso saber nadar. “Carece de ter coragem…”, cor-agem que con-verte uma possibilidade em sentido. Tenhamos sempre a coragem de agir em conformidade com nossos corações, sejamos nossos corações em ação. “E eu – como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão… Diadorim tomou conta de mim”. Ave!

Boletim da USINA

Quer ficar por dentro de artes e tudo mais que publicamos?

Nosso boletim é gratuito e enviamos apenas uma vez por mês. Se inscreva para receber o próximo!

Boletim da USINA

Quer ficar por dentro de artes e tudo mais que publicamos?

Nosso boletim é gratuito e enviamos apenas uma vez por mês. Se inscreva para receber o próximo!