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A coisa nome

setembro, 2015

ou A validade de estudos geográficos mais completos sobre corpos celestes tão pequenos

A professora, o diretor do colégio, as secretárias e os funcionários, as crianças em filas por série, dentro de cada fila uma escadinha de alturas. O som do disco antes de entrar a música parece lenha estalando no fogo.

Ela era muito nova e já havia se casado, o marido morreu num desastre, os dois muito novos e ela já era viúva. Eu tentei ensiná-la a dirigir e a identificar os caniços perenes as tiriricas antes que eles destruíssem a horta. Levei uma espingarda e treinei alguns tiros, acabei deixando a arma lá quando ela disse que pensava em nunca mais se casar e não voltar pra casa dos pais. Nas lições de carro ela chorava porque usávamos o carro que era de seu marido. Eu levava o meu, mas ela não aceitava, queria chorar até perder as forças. Sentia o cheiro do marido no estofado. Dirigia até a segunda subida da fazenda e ficava ali olhando a propriedade. Uma dessas vezes me olhou e olhou para a espingarda, que agora ficava no assoalho, perto dos pedais, depois olhou de novo pra mim, disse que o marido costumava sentar no carro assim, como eu estava sentado, disse que ficavam dessa mesma forma, meio largados no banco durante toda a tarde conversando, adivinhando nomes para os filhos, disse também que gostava de ficar deitada em seu colo, e então deitou no meu colo para mostrar. Estiquei o pescoço e vi seus dedos alisando a arma. Sabe o que mais a gente fazia? – ela contou chorando – Eu abria a calça dele e tentava pôr tudo na boca. Eu não sabia o que fazer e nem o que ela queria, então parei de respirar, como sempre faço nessas horas, e ela continuou; ele gostava muito, me empurrava com força e me prendia lá, eu me debatia porque sufocava, mas depois que terminava ele ficava encolhido no canto chorando, batendo a cabeça na janela e me pedindo desculpas – ela contou aos prantos -, e eu abria a porta e chorava do lado de fora, com vergonha de dizer que gostava – eu não sabia o que dizer pra ela, eu começava a ficar sem ar.

Todos os dias no metrô ele via um homem e uma mulher que moravam dentro de um dos buracos de ventilação do metrô, entre duas estações no centro da cidade. Eles sempre tinham um menino ou uma menina brincando com eles, às vezes ele via até uns meninos muito bem vestidos e arrumados. Quando se aproximava do local, ele interrompia a leitura e vasculhava o lado de fora do vagão; o homem e a mulher estavam sempre rindo e tentando divertir as crianças. Cada semana era outra criança. Saiu no jornal barato em um dia e no telejornal da tarde no dia seguinte; a polícia descobrira que “casal do esgoto comia crianças perdidas”, falaram até de alguns paralelepípedos, desses das ruas antigas do centro da cidade, que eram usados pra quebrar os ossos. Quando ele ouviu aquilo no jornaleco, não acreditou, não havia como conservar as crianças, e é impossível comer uma inteira antes que apodreça. Disseram no jornal, o impresso, que o casal sempre amarrava os sacos com a ossada e os restos no último carro do metrô, quando a composição parava e esperava a liberação da plataforma à frente. Hoje, no buraco da ventilação do metrô existe uma obra, um tapume que diz que o Porto vai ficar lindo, pra todo mundo usar e se sentir orgulhoso da cidade. Hoje ele consegue ler até nove páginas a mais de um livro de bolso do que antes, quando parava para observar o casal, ou cinco de um livro de tamanho e diagramação comum, se não houver fotos ou gravuras, claro.

Uma aluna lembrou-se de um professor que queria cativar os alunos classificando tipos de nada: um tipo de nada que existia antes que tudo tivesse acontecido, e outro tipo de nada, depois que tudo tiver acabado.

Ela me chamava pra área de serviço enquanto a mãe terminava o almoço, eu comia com ela porque era um favor entre vizinhas com filhos da mesma idade. No dia seguinte revezaríamos e ela comeria na minha casa. Ela me levava pelas mãos, e quando chegávamos lá, levantava o vestido, pegava o boneco namorado da boneca, dizia olha, e enfiava o pé do boneco, eu não conseguia dizer nada, só conseguir ver aquilo acontecendo, ela dizia novamente olha pra que eu não perdesse nada, e enfiava a perna do boneco até o joelho, eu perguntava se dava pra ir mais e ela dizia que tinha medo. A mãe dela chamava pra comer, mandava lavar a mão primeiro, tirar o uniforme e jogar no lixo os embrulhos e restos de comida de dentro da merendeira. No dia seguinte, na minha casa, pedi que ela pusesse a cabeça do meu boneco soldado, e ela enfiou até a cabeça sumir, e eu não consegui respirar enquanto a via fazer aquilo. Pedi pra pôr os braços do boneco, e repetir como com o namorado da boneca dela e colocar até os joelhos. Agora a cabeça de novo, eu dizia quase sem ar. Uma vez pedi pra pôr a cabeça da boneca e ela disse não, por causa dos cabelos. Dizia que cabelo de plástico ardia “ela”, então eu pedia pra ela repetir com a cabeça do meu boneco. Um dia a cabeça do boneco namorado da boneca soltou e ficou lá dentro, nós não tínhamos coragem de falar com ninguém. Eu tentei tirar com os dedos e com uma canetinha verde, eu tinha um jogo com varas e tentei com elas, mas não conseguia, ela também tentou com os dedos e com as varas do meu jogo. Ela chorou muito, eu tapei o rosto com as mãos e abri um dos olhos entre os dedos para vê-la, pra poder fingir que chorava como ela. Decidi que era melhor ela esquecer isso e fingir que nada havia acontecido. Ela passou mal, teve febre, coceira, e vários dias de cama, mas eu viajei no feriado e não me lembro como ela conseguiu tirar a cabeça do boneco lá de dentro, só me lembro da minha mãe contando, no carro, que ela tinha ido ao médico, depois minha mãe olhou para o banco de trás para ver se eu estava dormindo, e então falou tudo pro meu pai. Eu fingi tanto que dormia que dormi, e não lembro como aquilo saiu de dentro dela. Hoje ela é dentista e nós não nos falamos desde que eu me mudei para Curitiba. Ela tem um filho chamado André.

Ontem, na saída do colégio, um pai apareceu sorrindo com as mãos para trás enquanto a filha percebia que havia algo de diferente. Ele trouxe das costas um pequeno gato e a menina guinchou de felicidade. O pai disse que desejava um feliz aniversário e brincou que a criança estava ficando velha.

Eu tossia muito quando me mudei pra cá, tossia o dia inteiro, como se fosse com a coluna; às vezes vomitava de tanto tossir. A minha mãe gritava do quarto, berrava e me mandava parar, mandava deixar ela dormir, e eu respondia nervosa “já morro, mamãe, já morro”.

Estatisticamente falando, a simples tensão gravitacional entre dois planetas, ou entre uma lua e um planeta, pode aglutinar e arremessar pedras de gelo uma contra as outras no espaço, organizando-as na forma perfeita de um boneco, exatamente como fazemos aqui com as mãos quando neva.

A cabeça do Padre Réus no corpo de Nossa Senhora do Sagrado Coração, e o bebê em seu colo sem cabeça. São Roque com sua coxa ferida, mas com a pequenina cabeça de São Thomé. A cabeça preta de Padre Vitor sobre o corpo coberto por um vestido rosa de um Anjo Adorador. O sorriso acolhedor e materno de Nossa Senhora do Bom Parto parecia bendizer as flechas cravadas em seu corpo de Sebastião, enquanto a cabeça aflita desse santo sofria igualmente na cruz sobre o corpo de Cristo. Puseram a cabeça do cachorro de São Roque em uma das crianças de São Vicente de Paulo, a outra criança eles arrancaram e deixaram ali ao lado, deitada, sem cabeça e sem as mãos que pediam e pediam. Um Anjo da Guarda com duas cabeças mal coladas, uma do pequeno índio da imagem de Padre Anchieta e outra, enorme e monstruosa, de um Anjo Candelabro, e aos pés do Anjo da Guarda havia um buraco onde deveria haver a imagem de uma menina; alguns disseram que a cabeça do índio parecia uma cabeça saindo da cabeça do Anjo Candelabro. Uma Santa Bernadete rezava com um rosto castigado e mal pintado de um Bom Jesus, com duas asas de anjo coladas nas costas e uma fita do Senhor do Bonfim amarrando elas. As pessoas não conseguiam parar de olhar, mesmo com o sol tão forte, alguns até saíram para almoçar, contar em casa pra quem não podia sair, mas voltaram para ver a pequena capela de beira de estrada mais à tarde. Ninguém fazia ideia de quanto tempo aquilo estava assim e ninguém percebera, mas todo mundo tinha um palpite, falava-se muito de “coisa de criança”, “coisa de crente”. Se não fosse o remendo grosseiro da porcelana, e uns cacos faltando – que deixava buracos no pescoço da imagem –, ninguém ia notar que não era a cabeça de Cristo na cruz. Uma menina do colégio levou a máquina de tirar fotos, mas uma tia dela mandou esconder, disse que dava azar. Lembrei disso porque você falou dessa sua vizinha com os bonecos.

Como era aquela professora que dizia haver dois tipos de nada?

Eram quatro tipos de nada, mas não me lembro dela. Olha pra frente.

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