Onde eu cresci com meu irmão em uma casa ao norte do estado: onde as árvores fazem muita sombra e caem por cima das casas – deixando tudo bem úmido lá dentro – e pelo extenso gramado que se deitava por todo o terreno a gente sempre corria e pulava em cima de árvores que ficavam solitárias, cada uma sozinha descansando em cima da terra – porque se sabe que embaixo de árvore é onde grama não gosta de ficar; tem dessas coisas de ser muito frio lá embaixo – mas também era onde nós dois montávamos as nossas cabeças em ideia de construir com barro as nossas cidades, e de vez em quando nós íamos de bicicleta até o mercado e recolhíamos milhares de caixas para poder fazer construção de papelão e ficar lá dentro, às vezes até de fazer cidade inteira de papelão, com vários prédios altos, com escadas extensas que não terminavam jamais. Até a hora que papai gritava lá da varanda dizendo que ia chover e que era melhor nós corrermos para dentro. “E que nada pai, aqui dentro de caixa não chove não”, mas ele insistia até nós ficarmos aborrecidos e ignorarmos ele, que então dava de ombros e voltava para dentro de casa, sabendo que depois quem viria a ser o sábio era ele. E era certo isso, chovia um bocado lá no norte do estado, e então, de dentro da caixa de papelão começavam a cair gotas gordas em nossas cabeças, e lá íamos nós correndo pelo gramado já encharcado até cairmos dentro da varanda da casa, sacudindo a cabeça e expulsando as águas da nossa cabeça. Mamãe já vinha com as toalhas nos braços e entregava uma para cada, e depois ria olhando para nós em silêncio. E de lá dentro da casa, vinha a voz de meu pai, sempre com leveza, “e não falei que isso ia acontecer?”, mas nós, em admirável arrogância de menino, respondíamos que era só porque tinha chovido demais da conta, e que se fosse chuva mais pro normal as caixas bem que iam aguentar. E ele, para não ter que discutir, ria, e dizia que podia ser verdade, que a gente esperasse então a próxima chuva para testar a tal resistência das caixas.
De certo, tinham mais coisas para fazer dentro de casa quando chovia tanto assim, e era brincar de carta com o irmão ou então era ler livro embaixo de coberta – e no meio de uma grande estória vinha mamãe oferecendo alguma coisa para comer – “o que foi mãe?” “quer o que para comer?” “nada mãe, estou lendo, depois eu me faço de algo.”. E ela ia embora sempre insatisfeita com essas respostas, que para ela eram o que mostrava a crescitude dos filhos, que por mais que fosse inevitável, era coisa de mais triste pra mãe que nem ela.
Durante a semana nós recitávamos poemas do Manuel na escola, o do sapo-boi, em que rei quis que pai fosse, e não foi. E professora era grande amiga de Manuel, não sei porque, mas sempre em prova tinha o nome dele em algum lugar da folha. E ela dizia sempre que ele vinha em sala: Manuel é o mais bonito dos homens. E nós, de meninice ficávamos rindo de zombaria dela, que nem se importava também, porque em pensamentos dentro da cabeça, tecida em sonhos, ela estava (em sonhos de Manuel). Da escola, meu irmão, que foi sempre o mais velho, me levava pra casa de bicicleta, logo na garupa, e eu ia contando essa coisa da professora ter um amante muito do famoso. E ele ria e dizia que era tudo estória dela, que Manuel nunca nem tinha visitado nossa cidade, como é que ele poderia ter um caso com ela? E eu, na minha vergonha de não saber nem o que era caso, fiquei calado, mas pensei na minha cabeça que bem poderia que ela tivesse ido à cidade onde o homem morava, porque não se podia sempre saber onde a professora estava. Podia ser que lá pras tantas da madrugada, ela escapasse sempre pra casa do Manuel, em outra cidade.
E eu via uma fazenda sempre que andava sozinho pela estrada de terra que contornava a cidade, e por trás de tanto mato que a cobria em volta era impossível saber se lá dentro tinha homem morando, ou era só casa de fantasma mesmo. Um dia passando em frente com meu irmão eu me lembrei de perguntar se ele sabia de que se fazia aquela casa, e ele, em seu tom de sussurro, disse que nunca se podia dizer do que se tratava a casa, porque lá morreu um rapaz, junto com a namorada, e então a cidade fez um pacto que nunca se podia nem de pensar na casa. Lembro que de noite fiquei com medo e dormi em cama dele.
Sempre com prazer, eu às vezes sentava no colo de minha mãe para ver junto com meu pai o sol se pondo da varanda. Depois nós entrávamos em casa e ficávamos em um silêncio onde ninguém tinha muita coisa pra se dizer um pro outro.
Meu irmão achou uma vez um bocado de tijolos que tinham sido abandonados num terreno vizinho ao nosso, e ele me entregou a ideia de que seria a melhor das coisas do mundo construir uma casa onde seria o nosso QG para a invasão dos meninos da outra rua. E passamos então a tarde inteira carregando os tijolos de um lado para o outro no terreno, empilhando um em cima de outro até formar uma parede que vinha a ter a altura de meu peito; depois fechamos o quadrado, e lá de dentro nós estávamos era protegidos mesmo, porque sentado nem dava pra ver a gente jogando carta lá. E de vez em quando a gente escutava os meninos passando e eles falavam de nós como se não estivéssemos ali, e era a maior baixaria, porque daqueles meninos não sobrava um que prestasse – minha mãe sempre dizia. De logo, passamos uns bem três meses indo lá todo dia. Até eu contar a papai como que nosso QG era, e ele ficou cheio de curiosidade em querer vê-lo. Ó que foi: ele ficou pra lá de aborrecido porque era a mais precária construção que ele tinha já visto em vida, e a sorte nossa era de nunca aquilo ter caído em nossa cabeça. E então papai deu fim nele, dando empurrão na parede com a força de adulto que ele tinha, e disse “óó, num disse?” quando a parede caiu em estabaco.
Quando a gente andava de bicicleta nós sempre íamos pro morrinho, que era um antigo cupinzeiro do tamanho de uma oca, no meio da floresta com os eucaliptos.
Em questão de subida de árvore eu era melhor que meu irmão (hoje eu tenho a coragem de dizer). O porquê não sei, mas ele bem que tentava e nunca conseguia chegar nos galhos altos que nem eu. E teve vez até que lá de baixo ele nem quis subir e foi embora, me deixando sozinho, dizendo que tinha que fazer outra coisa. E eu me achei o maior dos meninos naquela hora, porque nem meu irmão podia subir em árvore, e eu, o pequeno, subia em tudo que via pela frente. Mais tarde eu o vi com uma menina, olhando para a fazenda onde os namorados tinham se matado, e fiquei pra lá de triste, não sabia o porquê, mas fiquei.
Se eu fosse nascido árvore eu não gostaria de nascer na cidade não, lá tem muito carro e ônibus para bater na gente. As árvores que nascem na cidade tem muito que ser triste porque a vida lá deve ser difícil. Se eu fosse nascido árvore eu iria nascer no meio do mato.
Num dia nós dois sentamos na varanda, e lá fora chovia (chovia sempre), e nós ficamos só a olhar a chuva para que passasse o tempo até chegar a hora dos meus pais chegarem em casa do trabalho. Durante a semana era assim, como num tinha ninguém para cuidar de nós, éramos nós mesmos que nos cuidávamos, mas não tinha nenhum problema não, porque cuidar de si não é lá essas coisas de difícil, é bem fácil na verdade, só se tem que comer de vez em quando, e ir ao banheiro. Em dia de chuva era mais ainda, porque não dava pra sair de casa e nós nem brincávamos de briga de espada com os espetos de churrasco que tinham lá em casa (papai deu uma bela bronca quando descobriu, eu lembro). Mas meu irmão me disse no dia da varanda: “Se tem cor nesse mundo que em todos lugares já se avistou é o azul. Não deve ter pessoa no mundo que nunca viu o azul alguma vez colorido na frente. Assim, o céu é azul, e em todos os lugares do mundo tem céu.” E de mim, que olhei pro céu para confirmar a sábia teoria de meu irmão, só avistei branco. “Mas e o branco? Em todos os lugares tem do branco também, já que o céu quando chove fica branco.” E ele, doido com a minha inteligência. “Tem verdade nisso. E o preto também, porque a noite o céu fica preto.”. E eu: “No pôr-do-sol às vezes ele fica vermelho também, quando o sol está quase indo embora o céu fica quase todo em vermelho. E laranja.” – lembrei rápido. “Sim, sim. Bem pensado, e o sol durante o resto do dia é amarelo, então se vê o amarelo em todos os lugares.”. E ele deu um tempo calado, com a sua imaginação a se esforçar, e afinal disse: “Mas eu penso que nem todos os lugares do mundo tem árvores, então o verde não é todo mundo que vê.” E eu, sentando de novo na cadeira, em que fui levantado por causa do entusiasmo: “É, no verde você tem razão.” E ficamos depois em silêncio, pensando com tristeza nas pessoas que nunca tinham visto do verde.
Pra dizer a verdade, se eu fosse nascido cor, no final de tudo, eu fazia-me nascido verde.