A presente entrevista é a realização de um sonho antigo da USINA: conversar com uma das principais montadoras do cinema brasileiro, que está prestes a completar 4 décadas de experiência na função. Com paixão e coerência, Cristina Amaral construiu um percurso ousado e consistente ao desenvolver parcerias que exploram um cinema além do convencional e perseveram na construção de outras temporalidades.
Dentre os mais de 60 filmes que já montou, duas parcerias destacam-se em sua trajetória: os 5 longas realizados com o amigo Carlos Reichenbach e a relação de vida com o companheiro Andrea Tonacci, com quem coordenou a Extrema Produção Artística e realizou diversos filmes, entre eles Serras da Desordem (2006), um ícone na filmografia nacional e divisor de águas no tratamento das populações indígenas no cinema brasileiro.
Cristina também trabalhou com Raquel Gerber, Edgar Navarro, Joel Yamaji, dentre outros, e mais recentemente com alguns diretores da nova geração, como Adirley Queirós, Thiago Mendonça e Jo Serfaty. Ganhou o prêmio de melhor montagem com Alma Corsária (1993) no Festival de Brasília, além de colecionar outras premiações. Nos últimos anos foi homenageada pelo conjunto da obra e começou a ser convidada para mais palestras e debates, além de integrar o júri em vários festivais. Também foi convidada para fazer parte do seleto grupo que julga os filmes do Oscar, mas recusou em prol de seu contínuo trabalho com o cinema brasileiro.
Nessa conversa, perpassamos pelas primeiras experiências de Cristina com o cinema, seu aprendizado e desenvolvimento na montagem, a transição do analógico para o digital, as parcerias e relações presentes na realização dos filmes e a situação atual e futura do cinema, diante da inteligência artificial.
Agradecemos a generosidade e a paciência de Cristina, que se refletem não apenas em suas palavras, mas na delicadeza com que trata a arte e as pessoas.
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USINA: Como foi o seu primeiro contato com o cinema e a escolha de ser montadora?
CRISTINA: Gosto de contar essa história porque começou num ponto que nem tinha me tocado que tinha começado. Quando racionalizei isso, estava trabalhando fazia tempo. E, numa entrevista, me fizeram essa pergunta. Voltei no tempo e fui bater na infância. Minha mãe disse que, quando aprendi a ler, li tudo que havia em casa. Não podia ver nada escrito que parava para ler. E lembro de uma revista sobre cinema que ela colecionava. Era só cinema estrangeiro, mas lembrei no ato dessas revistas.
Eu conhecia os atores e sabia os nomes deles, meus irmãos mais velhos inclusive corrigiam a pronúncia. Sabia o nome direitinho de todo mundo, mas não tinha idade para ver os filmes. Então eu conhecia os atores e não conhecia os filmes. O meu primeiro contato foi esse. Depois, lembro da sensação física de estar numa sala de cinema. Não sei qual foi o primeiro filme que vi na vida, mas lembro da sensação de estar na sala com um monte de criança gritando, correndo. Era um cinema que tinha um mezanino, e eu estava na parte de cima. Acho que fiquei fazendo bagunça junto e nem vi o filme.
Daí eu lembro que, por exemplo, com a televisão em casa, eu só assistia filmes. Não via outra coisa, eu só via filmes. Eu ia de manhã para a escola e à tarde os filmes europeus passavam na televisão. Meus amigos da minha idade falam que sou louca, que ninguém lembra disso. Mas eu assisti filme espanhol, italiano, francês, na televisão, à tarde. Eram legendados, inclusive. Como ninguém tinha nada a ver com fazer cinema lá em casa, nunca me passou pela cabeça que eu ia fazer isso. Quando chegou no terceiro colegial, bateu aquele desespero, que vestibular que vou prestar, o que vou fazer? Não sabia. Aí tive sorte, porque meu colégio fez uma semana de orientação vocacional, em que eles mostravam pra gente várias possibilidades. Fiz um teste vocacional e o meu resultado deu comunicação. Fiquei com aquilo na cabeça.
Dois ou três anos antes, havia ganhado uma máquina fotográfica de aniversário ou de presente de Natal, e virei a fotógrafa oficial da família. Eu apareço em poucas fotos da família, estou sempre fotografando. E ficou essa coisa da comunicação, fotografia e tal. Então, busquei algum curso que juntasse essas duas coisas, e acabei prestando vestibular para a ECA. O curso que mais se aproximava disso era o de Cinema. Também havia curso de publicidade, mas não me interessava. Foi bacana porque naquela época o primeiro ano era básico. A gente tinha aula de História da Arte, Fundamentos Filosóficos da Comunicação, etc… Aula com o pessoal de Jornalismo, de Música, de Artes Plásticas, de Teatro. Era uma turma bem grande com bastante gente, foi muito interessante. Depois a gente começou a ter as aulas de cinema mesmo, tinha direção, tinha todas as áreas, né? E foi muito interessante passar por elas.
No primeiro momento, fiquei presa à fotografia. Até fiz umas assistências de câmera, fotografia de animação, até chegar na aula de montagem. E a hora que eu entendi o que era montagem, enlouqueci. Falei, nossa, é isso! Sabe? Me deu um clique na cabeça. Só que eu olhava a moviola e falava, não vou dar conta de mexer com isso. É muita coisinha, é rolete, não sei o que, mexe… Eu sou assim, se tiver que mexer com a mão, não mexo direito com o pé, entendeu? Então, falei, não vai dar certo. Mas aí virou um desafio também. O que fiz? A mesma coisa que fiz quando tive aula de fotografia na época, que entrava no laboratório, revelava os filmes, ampliava a foto, fazia todo o processo. Comecei a querer fazer isso também com a moviola, devagarinho.
Era muito gostoso naquela época, porque as salas ficavam abertas. Se não tivesse ninguém usando, você podia entrar e usar. E tinha um pessoal que terminava os filmes e deixava as sobras todas zoadas, então comecei a organizar as salas, pegava as sobras e colava, fazia os rolinhos, foi um exercício. Percebi que não tinha muito segredo com a moviola e tirei o medo. Durante um tempo fiquei dividida entre fotografia e montagem. Mas tem que se dedicar a alguma, não dá para fazer bem as duas. Acabei optando pela montagem. Eu gosto muito de fotografia, mas tinha uma coisa que era meio parcial, assim. Eu gostava dessa coisa de que o filme ia ser estruturado ali, nesse processo da montagem.
U: E sobre esse processo da montagem, em que sentido a montagem e a edição se diferenciam para você?
C: A montagem é trabalhar a estrutura, as entranhas do filme, entendeu? Você vai para as vísceras. E a edição é mais posta. É quase que mais uma superfície desse processo. Tanto é, que durante o trabalho de montagem, você faz a montagem e faz a edição depois, que é o ajuste. Esse termo vem da edição linear, em que você não podia fazer alteração. Cada alteração implicava em gerar uma cópia, e tinha perda de qualidade. Para usar um plano, era preciso saber o tanto que seria usado, onde iria ser cortado e qual plano seria utilizado depois. Então, se perdia toda a riqueza desse processo, que é poder se perder no material, poder mudar de ideia. Como é que determina o tempo de um filme já nos primeiros planos? Não dá. Tem que fazer todo o processo, percorrer tudo várias vezes para ir chegando na estrutura e no tempo do filme. E na edição você não tinha muito como fazer. Esse é o conceito que ficou de edição. Então, não deixo me creditarem como editora, não. Sou montadora.
U: E sua relação com a direção e o roteiro durante o processo. Como você enxerga?
C: Com a direção é de cumplicidade. A gente está junto, a gente vai correr risco junto. Porque tem uma coisa, a fotografia se salva em um filme que não se sai bem. Vão falar: o filme é ruim, mas a fotografia… A montagem não dá, entendeu? É muito conectada com a direção.
Agora, cumplicidade não quer dizer que você tem obediência, nem concordância total. Você vai provocar, questionar e conversar sobre o processo o tempo inteiro. E com o maior respeito, mas é uma relação muito horizontal. Não hierarquizo, trato de igual pra igual. A gente está junto nesse barco e isso implica às vezes falar, ó, isso não está legal. Claro que vou esperar o momento, usar as palavras mais suaves, mas vou colocar. Essa cumplicidade implica em sinceridade. Não posso mentir, sabe?
E a relação com roteiro… Assim, gosto de ler roteiro como literatura, principalmente se não conheço, nunca trabalhei com aquele diretor ou aquela diretora. É o primeiro contato que tenho com o desejo daquela cabeça. Mas ele serve até o momento em que eu alinho o filme seguindo o roteiro. Depois nunca mais volto. E acho que não se deve voltar mesmo, porque aí é a vida que vem, se não impeço que venha essa vida. Se não fica uma coisa já posta, já determinada, e fico tentando cumprir aquilo. Tenho que poder olhar, me surpreender, descobrir coisas dentro do material. E a gente sabe que o material extrapola o que o diretor pensou, extrapola o que foi escrito. Tudo é um processo.
O roteiro em geral é cheio de excessos, porque é a cabeça, é a imaginação e você não tem nada concreto. Você imagina uma casa, só que na hora de filmar a casa que você vai conseguir é outra. E aí começa um processo de adequação, de alteração em função da locação. Você escreveu o diálogo, mas ninguém fala do jeito que se escreve. Quando vai pra boca do ator, vai se constituindo uma outra vida e eu preciso abrir a porta para essa vida entrar.
O meu trabalho é todo em processo porque faço uma escolha junto com a direção, fazemos a pré-seleção dos planos. Só que vão sendo exigidas alterações. Às vezes tenho que trocar o plano seguinte que escolhi para casar direito com o plano anterior, ou vice-versa. Às vezes é um plano que descartei de cara, de repente é ele que vai me salvar em uma sequência depois.
U: Essas idas e vindas no material bruto ficaram mais fáceis com o digital?
C: Sim, mas na moviola era fácil também. Quando comecei a trabalhar com ilha de edição, as pessoas me perguntavam: Cristina, agora você está trabalhando no não-linear? Eu sempre trabalhei em sistema não-linear. O primeiro equipamento não-linear foi a moviola. Na ilha linear é que você não podia mudar.
Na moviola, a gente podia mudar o plano do jeito que fosse preciso. Era durex, você soltava e colava onde quisesse, né? Isso acho um dano para as escolas, não ter mais esse contato. Hoje em dia não dá para você montar um filme na moviola porque não tem mais os materiais, mas como processo de aprendizado é muito rico.
Eu tinha uma sala de montagem antiga aqui em casa. Tinha moviola, enroladeira, sincronizador e tudo. E quando tinha um tempo, aceitava algumas pessoas para estagiarem comigo. Primeiro colocava na enroladeira com o sincronizador, para ela entender o que era um fotograma, o que significava aquele movimento. Depois ia para a moviola, e aí as pessoas ficavam num encantamento com a moviola. Se deixasse, elas não saíam de lá. Depois, subia aqui para o andar de cima e trazia para a ilha de edição. Aí a pessoa vem diferente, ela não vem brincar de videogame. Ela vê a imagem.
U: Você acha que é sempre demorado esse processo de montagem?
C: Ele pede tempo e a minha briga é por esse tempo. Fiz até uma conta, quando começou a vir o processo digital. Um longa, quando recebia 12 horas de material era muito. Agora, recebo isso para um curta-metragem, e a produção computa o mesmo tempo, os mesmos cronogramas. Então, tem que mudar.
Tiveram uns picaretas que começaram a vender equipamentos falando que você podia montar um longa em um mês. Bom, se é para botar em pé, ponho em pé em menos de um mês, mas isso não é montagem. A montagem demanda tempo, demanda essas idas e vindas. Você olhar muito, sabe? Às vezes precisa se afastar um pouco. Ter um tempo para isso, é essencial. A coisa que mais brigo, mais até do que a questão salarial, é o tempo.
U: Considerando as fases que você atravessou no cinema, como você enxerga a passagem do analógico para o digital? E qual o seu modo de aproximação em relação a esses dois suportes?
C: O primeiro momento foi um trauma. Falei: vou parar de trabalhar com cinema. No fundo, internamente, sou movida à lenha, entendeu? O primeiro filme que montei no processo digital era no Avid, que é um sistema super complicado. Até hoje não sei mexer no Avid, o pessoal que está acostumado gosta, porque tem uma arquitetura sólida.
Tive que trabalhar com operador no começo, voltava para casa e só sentia meus olhos. Porque os monitores agora são suavizados, mas naquela época era uma luz que vinha muito direta no teu olho. Até que comecei a trabalhar mais e punha protetor de tela para não ficar com aquela luz. Falei, não, vou morrer, não vou conseguir. Depois acabei achando outro programa, aprendi e perdi o medo.
E tinha a história do backup. Uma vez a gente ligou a ilha no dia seguinte, cadê? Tivemos que refazer tudo. Hoje os programas têm autosave, mas antes não tinha. Uma noite dessas tive uma insônia só de pensar… A gente tá montando nada. A gente tá montando miragem!
Porque fisicamente não tem nada, só tem pontos de informação. Agora pensa isso no tempo. E HD é uma coisa, um técnico me explicou, ele tem horas de giro e de vida. Uma hora dessas aquele motorzinho vai parar, fatalmente. Aí tem que ficar replicando os materiais o tempo inteiro, tem essa coisa da obsolescência da imagem, e concretamente a gente não tem nada. A gente pode estar construindo a desmemória visual.
Porque pode dar um apagão nisso tudo. As pessoas ficam com essa coisa de botar arquivo na nuvem, eu não ponho nada em nuvem. Não ponho um alfinete na nuvem. Porque o que é a nuvem? É um grande provedor que tem dono. Uma hora o cara pode fechar a porta pra você. É uma doideira o que a gente está lidando.
Além disso, até agora não se sabe direito como preservar material digital. Todas as reuniões que eles fazem lá na SMPTE, na NAB, chegam na conclusão de que a película ainda é o suporte mais confiável para preservação.
U: E a película ficou muita cara, né?
C: É, mas teria que ter uma coisa pensada nesse sentido, sabe? Os orçamentos… Como achava antes, quando a gente só trabalhava com película. Tinha que ter dinheiro para o internegativo. Porque, principalmente quando começou a filmar em película e depois digitalizar, o povo colocava negativo no telecine, que é um projetor. Eu ficava em pânico com aquilo, muitas vezes aconteceu de riscar, danificar o negativo. Então tinha que ter um internegativo, que é uma coisa que o cinema norte americano sempre teve. Por isso eles podiam ter a versão do diretor, porque eles não cortavam o negativo direto. Eles têm a noção da importância da imagem.
U: Mas você acha que consegue preservar no processo de montagem digital o método analógico?
C: Sim. Porque montei muito tempo na moviola e busco resgatar essa relação, esse encantamento, essa concentração. Trabalho com a luz acesa, com 2 ou 3 monitores, às vezes tem mesa de som junto, teclado, mouse, é muita coisa para te dispersar. Então assim, fico buscando voltar a concentração para a imagem, é um exercício.
E as pessoas fazem umas loucuras, como trabalhar com a luz apagada. Você acaba com a vista se fizer isso. Eu grito cada vez que alguém vai apagar a luz, deixa acesa! Tem que ter, porque senão você fica com aquela emissão…
E na moviola não, estava até mostrando agora para o pessoal que veio aqui em casa. Você passa por uma luz que joga a imagem para um prisma, o prisma joga a imagem para um espelho e esse espelho joga a imagem para uma tela. Simula a coisa do cinema, então você não tinha essa coisa tão direta na vista
U: E qual o papel da música no processo de montar o filme?
C: A música é a alma do filme. Ela traz uma informação numa outra instância, que a gente não consegue verbalizar, a gente não consegue explicar. Tenho o maior apreço pelo instante de trabalhar com a música. Só que às vezes tenho umas quedas de braço pavorosas com os músicos, porque eles vêm de um vício. O cinema é tão rarefeito que se o cara falar, vou ser músico para o cinema, ele vai morrer de fome. Então o que ele faz? Acaba trabalhando para publicidade. E na publicidade o tratamento da música, o que é? A música tem que ficar chamando atenção. Porque a hora que entra o comercial na televisão, é a hora que você levanta para ir na geladeira, dar um telefonema, você sai da sala. A música tem que ficar chamando atenção para a publicidade, os cortes são marcados pela música e tal.
Costumo dizer que a edição de som traz a respiração e a música traz a alma do filme. É um momento que considero sublime. Mas é uma relação difícil, geralmente. Exceto com alguns músicos maravilhosos, que já fiz filmes e que só agradeço o que eles trouxeram.
U: Então é você que coloca essa música na montagem, normalmente?
C: Eu coloco, porque a música altera o corte. Podem me mandar até indicação de onde pensaram, mas o ponto exatamente eu coloco porque tem tudo a ver com o fluxo do filme.
E é uma outra camada de informação. Ela não pode ser redundante. A redundância te tira do filme. Qualquer espectador enche o saco de ver uma coisa, tipo, eu já entendi e o cara está me explicando, entendeu?
U: E como foi a experiência de trabalhar com diferentes cineastas e como as relações afetivas influenciam nos filmes?
C: É engraçado que é uma coisa que eu não tinha percebido. Você conhece o Adilson Marcelino? Ele tem um site lindo que se chama Mulheres do Cinema Brasileiro. É um site dedicado às mulheres que trabalham com cinema. Ele fez uma longa entrevista comigo, e foi muito louco porque ele não gravou. Quando vi a transcrição, falei, nossa, você melhorou o que conversei com você. Ficou uma coisa muito bonita. Ele fez o meu perfil no site e colocou uma coisa que eu não tinha prestado atenção. Ele falou que não desenvolvi uma carreira profissional, e sim parcerias.
Uma boa parte das pessoas com quem trabalhei, a partir do momento que fiz o primeiro filme, continuei fazendo os outros juntos. Foi assim com o Carlão Reichenbach, foi assim com a Raquel Gerber, com o Joel Yamaji, que é um amigo da Escola (ECA), e também com o Thiago Mendonça.
E o diretor não é obrigado a trabalhar com montador, é uma escolha. Tanto é que nunca me ofereci para montar filme de ninguém. Você não pode fazer isso, é um constrangimento para a pessoa. Porque tem que bater visão de mundo, bater um monte de coisa. O processo de montagem é revelador.
Montando o filme, eu conheço a pessoa. Mesmo sem ela me falar. Eu conheço às vezes até pelo avesso, porque tem diretor que tenta se esconder atrás do filme. Em alguns momentos tive até um certo constrangimento, mas aí me tranquilizei, porque cada gesto que faço em relação ao material, estou me mostrando também. Isso cria laços muito fortes. Uma boa parte dos diretores com quem trabalhei viraram meus grandes amigos. Pessoas que são essenciais na minha vida. Então é muito forte essa relação mesmo. É essa cumplicidade que se estabelece.
Com algumas pessoas não bate a visão de mundo, é uma coisa de frequência. Eu estava vendo outro dia o Miguel Nicolelis (neurocientista), falando de frequências mentais que se combinam ou não. Então é uma coisa que acontece quase sem falar, é o jeito que você fala. É o santo que não bate, entendeu? Tem gente que acontece isso e acabou. Se não dá para levar, se é tão difícil, resolvo simplesmente assim, já coloco em contrato, porque todo mundo tem direito de sair no meio do jogo. Se não estiver bom, o diretor pode chegar e falar, olha, prefiro continuar com outra pessoa. E de boa. O que eu vou fazer? Vou deixar o filme prontinho para o outro profissional continuar.
É a mesma coisa se eu achar que chegou no limite do que me proponho a fazer. Aí também, com a maior delicadeza, chego para a pessoa e falo, olha, acho que não sou a pessoa para montar esse filme. Você tem o direito de ter alguém que concorde com você e que siga. Deixo tudo pronto e entrego, é muito simples. Poucas vezes eu tive que fazer isso, mas existe essa possibilidade. É simples.
Algumas vezes fui até o final do trabalho, mas sei que não quero continuar, que não quero fazer outro filme com aquela pessoa. E fica claro para a pessoa também, vice-versa. Então tem casos de pessoas que eu montei um filme só. Mas a grande maioria, uma boa parte eu diria, a gente se encontrou e continuou juntos.
U: E essa relação vai melhorando nos próximos filmes?
C: Vai melhorando, vai aprofundando. E resolvo qualquer dúvida de um jeito muito fácil. Se o diretor é homem, fico amiga da mulher dele, entendeu? Fico amiga da família, para poder exercer essa amizade com tranquilidade. Por exemplo, com o Carlão Reichenbach, a gente ia junto ao cinema. Se eu chegasse em algum lugar e ele estivesse, ficava junto dele. Era uma coisa automática. E sabia que isso era uma coisa que não ia ter o menor problema com a Lígia, mulher dele, que é tão minha amiga quanto. E que hoje, na falta dele, é a pessoa que chamo, que vou visitar, que telefono de vez em quando.
Eu abarco toda a vida da pessoa junto, e vai criando uma rede. De um jeito muito intuitivo. Fui atrás do cinema que me pegou de coração, que eu acreditava. Talvez a minha maior sorte foi ter sido aluna do Paulo Emílio Salles Gomes. Isso não tem preço. Não tem nada que consiga dimensionar e traduzir em palavras o que significaram essas aulas.
Primeiro, ele criou uma relação de responsabilidade com o que é fazer cinema no Brasil e o que significa isso. Ele falava, não adianta vocês ficarem com Cahiers du Cinéma debaixo do braço e alucinando com a American Cinematographer, vocês vão ter que lidar com a realidade daqui.
A lição de casa era assistir todos os filmes brasileiros que entrassem em cartaz. Na época tinha uma produção grande, tinha Embrafilme. Toda semana via um ou dois filmes brasileiros e uma boa parte dessa produção era pornochanchada. Mas não adiantava torcer o nariz, tinha que assistir e discutir em aula os filmes.
E os que não entravam em cartaz, ele levava para a sala de aula, pedia cópia emprestada, naquela época tinha que ser a cópia em película, levava e exibia para a gente. Às vezes levava o realizador para conversar. Quando vi Bang Bang, Bandido da Luz Vermelha, Matou a Família e foi ao Cinema, Lilian M, Crônica de um Industrial, entendi que fazer cinema era outra coisa! Mudou tudo para mim.
Porque eu vinha daquela coisa do cinema norte-americano, dessa relação com o cinema europeu, daquelas revistas. A gente ia muito ver Fellini, Bergman, tinha uma produção europeia linda. Mas a hora que vi esses filmes brasileiros, falei, não, é outra história, é outra coisa. Fazer cinema é outra coisa. É ter uma posição no mundo, ter um ponto de vista, sabe? Você interagir com o mundo que está vivendo. Não é contar história bem contada, bem realizada, entendeu? Isso era adequado para aquele mundo, para eles lá, mas para a gente…
Uma coisa que me encantou foi sentir a rebeldia daqueles filmes. É uma libertação. Posso não ter cara, mas sou muito teimosa. Então aquilo me pegou, foi uma identificação no ato.
Jamais imaginei que iria trabalhar, conhecer, que iria ter qualquer história com esses realizadores. Bastava saber que eles iam filmar e que eu assistiria esses filmes. Só que aí você cria um campo de atração, é a neurociência de novo, entendeu? E a vida foi me aproximando. Primeiro do Carlão Reichenbach, e o Carlão trouxe o Andrea para perto, que virou essa história de vida para mim.
Teve um período, no começo, que trabalhei praticamente com todo o cinema paulista, que também foi bom para conhecer e entender quem era quem ali dentro. Mas sabia onde o meu coração estava e aí fui afunilando cada vez mais, hoje em dia estou praticamente só onde meu coração está. Agradeço essa intuição. Não foi nada racional, foi só pelo coração.
U: Sobre sua parceria com o Tonacci, quais projetos você pretende realizar com os materiais que ele deixou?
C: É, inclusive foi um pedido dele. Quero montar e finalizar esses projetos todos. Preciso reduzir os outros trabalhos, porque me tomam muito tempo. Mas já comecei a preparar esses materiais para serem montados. Tem vários. Por sorte, o Andrea fazia muitas anotações. Ele até fez alguns roteiros, escrevia muito bem. Só para você imaginar, o roteiro do Serras da Desordem foi premiado em um festival na Suíça, que tinha uma competição paralela para roteiros. Eles premiavam três roteiros, o Serras foi um dos premiados e não tem nada a ver com o filme que virou. O dia que ele me falou que não ia filmar aquele roteiro, minha vontade era de, sei lá, jogar alguma coisa nele. Eu falei, não é possível, esse roteiro é lindo! Ele só virou as costas e falou, não, vou fazer outra coisa. Aí fiquei quieta, sempre tive muita confiança nele.
Durante o processo de montagem, eu tinha instantes de pânico, frio na espinha o tempo inteiro, o medo de não conseguir chegar onde precisasse. Todos os filmes que fiz com ele foram assim. Todos. Porque ele nunca jogava essa coisa de trazer a segurança, ele ficava falando de dúvidas, do que ele não queria. Então quando ele falou, vou fazer de outro jeito, eu também confiei, apesar de olhar aquele roteiro lindo e achar uma pena ele não ser filmado. Mas ele não se prendia. Ele escrevia, que era para elaborar na cabeça, mas na hora que ia filmar, era outra coisa.
E, de uma certa forma, ele exigia esse procedimento. Então eu brincava que ele não me poupava do arame farpado do processo de criação, que era um sofrimento na hora de fazer, mas você não tem noção o quanto agradeço. Não tem dinheiro que pague essa experiência. De fazer essa travessia e chegar junto no final do filme. Era muito lindo.
Mas ele deixou muitas anotações. Vou assistir muito esses materiais, vou estudar as anotações dele, rezar e pedir inspiração. E já vou avisando, vou fazer o melhor que puder, mas vai estar sem a genialidade dele. Você não tem noção, as coisas iam surgindo, entendeu? Ele tinha uma coisa de processo que era demais! Por exemplo, a imagem do Carapiru com a flecha, que foi sobreposta naquela sequência do trem, deles voltando para a aldeia. O tempo inteiro ele falou que queria usar essa imagem, mas não sabia onde. Ficou lá do lado. Um dia, a gente assistindo um corte, ele parou e falou, aqui ó, entra aqui. E ficou lindo, é preciso!
U: Realmente, é muito marcante essa frase do Tonacci: “não sou eu que digo o que quero do filme, é o filme que diz o que quer de mim”.
C: É isso mesmo. Recebi um convite da revista Devires para escrever um texto e falei: “O cinema como a profissão da dúvida”. Se ele tivesse certeza ele desistia.
E às vezes as pessoas querem que seu filme seja igual a um outro. Em geral, não vejo, porque não me adianta. A minha relação é com esse material aqui, não adianta olhar o filme de não sei quem.
Por exemplo, quando o Andrea ia filmar, ele não ia ao cinema. As pessoas acham que vão filmar então tem que ver um monte de filme. Não, ele não via. Muitas coisas lindas dele, como procedimento de vida, como postura. Uma liberdade. Ele era dono do seu tempo. Acho que não conheço ninguém que fosse tão dono do seu tempo. Isso para mim é uma lição, porque não consigo, sou tomada o tempo inteiro por várias coisas.
Ele, não. Chegava 3 horas da tarde, desligava o computador, porque tinha sempre um monte de e-mail pra responder, e quando desligava, falava, chega. Passava a mão em uma pilha de livros, estendia a rede lá embaixo e passava o resto da tarde lendo. E eu me deliciava de ver.
U: E como você enxerga o estado atual do cinema brasileiro em relação às décadas passadas?
C: Acho que o cinema brasileiro está vivendo um momento muito rico, muito bonito, por conta de existirem as cotas regionais de produção. Começou a vir produção de lugares onde nunca teve cinema, entendeu? Vem a diversidade do país, os sotaques, os modos de vida. Vieram filmes incríveis e se a gente não tivesse essa chance, ia ficar engessado em Rio e São Paulo, em um cinema super formatado, com problemas inclusive, de relação com o mundo. E mais, acho que nesses tempos de barbárie, esses 6 anos de barbárie que a gente viveu, o cinema brasileiro se mostrou muito mais forte. Porque peguei o governo Collor também. O desgoverno Collor. E o cinema brasileiro se desmanchou naquele momento. Foi muito difícil.
Estava montando dois curtas naquela época e falei: é o seguinte, não vamos parar não, esse cara pode tirar o dinheiro da gente, mas não vai tirar a nossa vida, o nosso trabalho, não podemos permitir isso. Ainda fui profética, falei: os filmes da gente vão ficar, esse cara, se ele for lembrado na história vai ser para ser lastimado, para ser execrado. Estava com tanta raiva que nada me fez parar.
O cinema brasileiro hoje está mais fortalecido, até por conta de estar maior, de ter mais gente de outros lugares, que lida com mais dificuldades, que tem uma resiliência maior. O digital ajudou a fazer um filme mais barato, não precisa ter aquela estrutura toda.
Nesses 6 anos de barbárie, que o Brasil virou pária internacional, quem cumpriu o papel do ministério das relações exteriores foi o cinema brasileiro. Quem cumpriu esse papel para o Brasil foram os filmes brasileiros, eles continuaram indo pros festivais internacionais, ganhando prêmios, mostrando o Brasil com dignidade, denunciando a situação que a gente estava vivendo aqui.
Faço parte de um cine clube virtual, que é super bacana. É um cine clube que tem basicamente um grupo de estudiosos e pesquisadores de várias áreas e um dia me convidaram para falar sobre o Bang Bang. Gostei da conversa e eles me convidaram para participar. Eles escolhem um filme para assistir durante a semana e discutir no sábado. Além do Bang Bang, tinham passado algum filme do Geraldo Sarno, que fazia parte do cine clube também, O Bandido da Luz Vermelha e acho que o Mar de Rosas, da Ana Carolina, e não se falou mais em cinema brasileiro. Filmes estrangeiros maravilhosos, mas nenhum filme brasileiro.
Um dia alguém falou que não gostava muito de filmes brasileiros e eu comecei a levar filmes brasileiros. Acho que já levei mais de 50 filmes e realizadores, tudo produção de 2016 pra cá. Eles ficaram num encantamento, que já deixam reservado uma ou duas semanas para filmes nacionais. E as melhores discussões tem acontecido com esses filmes. Para mim foi uma experiência muito bonita porque, em 2017, fui convidada para ir à várias Mostras e Festivais, tiveram muitas homenagens ao Andrea e fui júri em várias mostras. Foi bom para atualizar a produção e a relação com o cinema brasileiro. Às vezes dizem que o festival fica cansativo, mas gosto de ir para ver os filmes. E fiquei impressionada com que está rolando.
U: A produção indígena aumentou muito nos últimos anos.
C: Sim. E digo até uma coisa que falo sem o menor pudor, que o Serras da Desordem tem uma responsabilidade nisso. Porque ele deu um espaço digno na tela para o ser indígena. A partir do Serras da Desordem, nunca mais o cinema brasileiro pôde tratar as populações indígenas do jeito que eram tratadas antes. Isso colocou tudo em um outro patamar. Porque o Andrea não foi lá para filmar os índios, ele foi filmar a história de um homem que ele olhou de igual para igual, o Carapiru. Ele entendeu as dores, entrou naquela história. É outra coisa, ele olhou para um homem, trouxe um homem pra cena. A partir dali tudo mudou, você pode observar.
Acho que tem filmes potentes, seríssimos, muito talentosos. Filmes inclusive que escapam de uma formatação que o cinema brasileiro tinha entrado. Porque teve um período anterior que foi muito chato, os filmes brasileiros começaram a ser escolhidos pelos fundos internacionais, então ia para os festivais, ganhava uns prêmios, mas eu olhava os filmes e falava, ai meu Deus, será que vai ser isso?
Depois, descobri o que me deixava incomodada com esses filmes, porque esses fundos internacionais formatam a produção. Era isso que esses fundos estavam fazendo com os filmes brasileiros. Então despersonaliza, tanto faz o filme ser feito aqui como ser feito no Canadá, no México ou no Chile.
E essas novas produções vieram quebrando com tudo isso, não tem o cânone narrativo mais. O Adirley, por exemplo, sabe muito de cinema. Mas ele traz a narrativa da história de vida dele, do lugar onde ele filma, entendeu? E aí implode tudo. Escapa, tanto é que até hoje os estudos cinematográficos e a crítica cinematográfica não deram conta do que é o cinema dele.
U: Para terminar, como você vê o futuro do cinema, levando em conta a multiplicação de telas luminosas, meios de reprodução facilmente acessíveis e a inteligência artificial?
C: Já decretaram a morte do cinema muitas vezes. Eu acho que o cinema tem uma coisa: não é só o filme que a gente produz, a gente está produzindo documentos visuais de um tempo e de um lugar. Isso não é qualquer brincadeirinha do tiktok, não é isso. Não é nas redes sociais, porque não tem coisa mais volátil do que as redes sociais. Então o cinema é a tela. Porque tem uma coisa que é mercadológica e de dominação, que vem do cinema norte-americano. O cinema brasileiro é invadido, é atacado o tempo inteiro, porque somos um grande mercado para eles. Eles mexem na nossa legislação. E todas as vezes que o cinema brasileiro começou a ter uma boa desenvoltura de público, eles atacam com alguma coisa.
Aí veio uma questão dos roteiristas, porque o cinema lá é muito formatado. Então os roteiristas começaram a querer um pouco mais de liberdade de criação, que no cinema eles não estavam conseguindo por causa do orçamento, do filme ter que ter um resultado, um retorno. Começaram a achar esse espaço nas séries, e quando as séries vieram para cá, já veio uma outra coisa, não veio essa liberdade. Série para mim é Twin Peaks, Berlim Alexanderplatz, é O Decálogo. É outra potência, não essas que são novelinhas envernizadas. Mas as séries bombaram, aí dizem que vai acabar o cinema.
Depois veio a pandemia e ficou todo mundo em casa. As pessoas compraram uma puta tv e querem ficar em casa que ninguém incomoda. Só que elas esquecem que o cinema é uma atividade coletiva e esse coletivo implica também em assistir coletivamente, que é totalmente diferente. Tem uma coisa que falo pela intuição, sem muita base teórica, o sentimento que tenho: o que se processa numa sala de exibição não é só um filme. Porque você tem um filme que vem da tela, esse filme penetra na cabeça de cada um que está assistindo e o pensamento, tudo que a pessoa reflete ali dentro em função do filme que ela está vendo, ela devolve um outro filme para a sala. Então você tem vários filmes acontecendo ali naquele momento. Não é uma coisa visível, perceptível, mas é sensível. Por isso temos essa sensação de plenitude quando assistimos um filme na sala de cinema.
E tenho falado muito para as pessoas: você pode fazer um filme sobre formiga, você pode fazer uma comédia, um filme de animação, o que for, mas você está gerando documentos visuais de um tempo e de um lugar. Tenho plena certeza que conheço a população iraniana, conheço o jeito de ser deles pelos filmes, pela integridade dos filmes deles. Então é você trazer essa integridade. Por isso que falo, a gente não tem mais nada para inventar no cinema, mas tem uma coisa para a gente colocar, que é a sinceridade do olhar. Essa é nossa contribuição ao cinema.
Fico sempre pensando que tem um rearranjo a ser feito. Porque lá fora os canais de streaming já tem uma discussão e aqui não se fala disso ainda, mas as pessoas se cansam porque fica muito repetitivo. E a TV à cabo também está mal das pernas, eles não dão conta de fazer uma curadoria, uma pesquisa ampla. Você imagina a quantidade de filmes maravilhosos que a gente poderia assistir na TV à cabo e que a gente não vê! Precisa ter um movimento de formação de público, fazer os filmes chegarem às pessoas.
Tem que ter dois movimentos, um de formação de público e outro de conversar com os donos das salas de cinema para baixar o preço do ingresso. Vão ganhar até mais dinheiro do que estão ganhando, porque ficam mantendo ingresso caro com meia dúzia de gato pingado na sala. A gente vê quando tem mostra, que às vezes é de graça, as salas lotam. Então tem que baixar o preço, porque uma das intervenções do cinema americano foi acabar com os cinemas de rua, enfiar tudo em shopping e custar caro. Temos que retomar isso para que as pessoas possam voltar a ter convivência. Porque a gente teve a pandemia, que foi um trauma, era para a gente repensar o modo de viver, mas aparentemente não se fez isso. A gente tem que conviver com a cidade, então acho que tem que se reeducar para isso. A gente precisa de uma reeducação dos sentidos.