Por entre essas terras aí, tinha homem com pele de boi. Se eu tivesse visto teria me perguntado o que era aquilo, mas eu tenho certeza que a resposta teria sido insatisfatória. Meu Deus! Homem com pele de boi pra mim é o próprio Cão disfarçado de demônio, e isso não é pouca coisa não!
Esse homem, por lá dos seus vinte anos, foi quem chegou numa cidadezinha do interior do país carregando uma pele de boi e uma faca. Assim que viu de cima do morro os telhados vermelhos das casas da cidade ele desceu e se prostrou no meio da praça. Com pele e faca na mão. E de lá mandou esperar o comboio de gente que vinha vê-lo fazer a sua mágica. Porque de cada cidade tinha gente que vinha ver com a sua maior curiosidade ele fazendo pele de boi em outras coisas. Nesta cidade no entanto esperou alguns dias, e quando foi aparecer alguém por perto de si foi só pra dizer para ele ir embora, que de lá ninguém queria vê-lo não, não queriam mesmo. E quando ele perguntou porque o homem só respondeu que pele de boi naquela cidade só servia para embrulhar cachorro morto, o que era coisa do capeta!
“Ah, mas que isso macha, isso é coisa de se falar assim? Pele de boi é presente do Homem pra nós!”
Mas enxotado ele foi, e só levantou a pontapés. Saiu da cidade, mas não saiu antes de amaldiçoá-la por inteiro, na escuridão da noite.
E na cidade nada aconteceu de mais nos próximos dias, ninguém mais viu o homem com pele de boi, ninguém mais pensou em cachorro morto, ninguém mais coisa do diabo falou naquelas ruas de terra, e o tempo passou como se ele tivesse só corrido por um instante.
Mas acontece que um acontecimento curioso veio para ocupar a mente das pessoas da cidade. Acontece que depois de alguns dias todos os bois dos fazendeiros sumiram, e sumiram de repente, sem parecer roubo nem nada; foram embora, andando pelas trilhas; e nem de avião os fazendeiros acharam rastro de boi em qualquer lugar, nem na cidade vizinha, nem na outra cidade mais longe e nem na capital. Procuraram até em alto mar, no meio de ilhas, em cima de árvores e tudo! Mas nada de boi!
Depois de toda essa correria veio o vento calmo, e a cabeça das pessoas começou a funcionar. Ora, o que de estranho tinha acontecido a pouco tempo na cidade era que um homem com pele de boi tinha vindo e ido sem dizer palavra com ninguém. E expulso da cidade ele tinha sido. Eis que está: num tem dessas coisas em cidade do interior de homem chegar e ir embora não. Se acontece algo assim é para ter certeza que de ruim algo vai acontecer; e aconteceu, os bois sumiram todos, e agora, o que fazer? Cidade inteira sentou pensativa.
Olhe, o homem com pele de boi ficava só parado, olhando de tudo de cima: os telhados vermelhos das casas. Achou caminho na montanha que levou ele ao topo e de lá ninguém podia ver a sua sombra junto com o preto das árvores quando o sol ia se pondo e se colocava atrás do morro, dando só contorno no céu. Era lá que o homem com pele de boi ficava parado, só olhando o caos se embrenhando aos pouquinhos por entre as cabeças das pessoas, como se fosse só o tempo; e a noite ele fumava seu cachimbo no ar e imaginava que aos pouquinhos a fumaça descia pela trilha carregando consigo todo o mal que ele transbordava, e pela narina das pessoas ela entrava e procurava o mal delas para fazer somar a tudo aquilo que já havia na cidade, misturada ao comércio, ao pleito, e até as crianças que atiravam pedras nos passarinhos só para vê-los piar num sentido de choro ao procurar a mãe que morta jazia nas mãos do caçador. Na imaginação do homem com pele de boi essas coisas se iam embora a seu mandato, e deixavam as pessoas da cidade sendo menos gente do que são. Isso tudo só na imaginação.
Nas próximas semanas a cidade mal falava consigo mesma. Acordavam todos os dias de manhã para se reunirem os poucos homens adultos entre a juventude e a idade da razão, que então permaneciam fechados numa mesa do bar, com as cabeças encostadas umas nas outras, murmurando rápido idéias de onde procurar o homem com pele de boi, e se encontrassem, o que fariam. Tinha até idéia de que ele era o diabo, e o diabo, provavelmente, até sentiria orgulho se ele fosse aquele homem, que diante de tanta harmonia da cidade colocou tanto terror que nem o prefeito saia mais de casa, com medo do homem.
Até que dia veio em que alguns homens afobados que se faziam, com cheiro de suor, se fazendo de machos, bateram os copos na mesa e se levantaram ao mesmo tempo, e diante de tantas mulheres:
“O que há?” O primeiro.
“Nós vamos pegar esse macho!” O segundo.
“O que há?” O primeiro de novo.
“E vamos enforcá-lo!” O terceiro.
“E depois?” Mais uma vez o primeiro.
“Pegaremos nossos bois de volta!” O quarto.
E uma das mulheres:
“É melhor pegar o boi de volta e depois enforcá-lo!”
“Fique quieta mulher, que isso não é assunto pra buceta!”
A gritaria foi tanta que do alto do morro o homem com pele de boi escutou os brutamontes saírem de dentro do bar, jogando mesas e mulheres para os lados, e os gritos de “Oh! Oh!” das mocinhas mais impressionáveis também veio a chegar no alto de lá. Mas o que os brutamontes esperavam com tanta canalhice ao sair do bar gritando? se nem cabeça direito eles tinham, pensou homem com pele de boi; então do susto que levou ele caiu só em descanso de novo, apoiado entre as árvores, com os pés na terra, assim como Raduan fazia, sacudindo seus ombros e seus braços para se aconchegar melhor no tronco duro em que fazia de cama. E mais uma vez seu cachimbo soltou a fumaça que veio a verdejar por entre as folhas e cair direto, feito tronco em queda d’água, lá embaixo na cidade; e na sua imaginação os brutamontes fizeram cara de burrice e pararam de gritar e quedaram a se sentar no chão de terra, no meio da rua. Fizeram uma roda lá e se puseram a pensar com o queixo apoiado no punho: como é que homem com pele de boi pode ter feito tanto gado a fugir? E ficaram por lá dia e noite. Até que as mulheres cansaram soltando um suspiro longo e desistiram de tanta burrice. Foram chamar alguém que fosse dar resolvas nisso. Foram chamar os fazendeiros donos dos gados.
Olhe, tinham três fazendas naquela cidade e, das três, as três perderam o gado, e dos seus donos os três queriam era mais matar quem tinha feito tal coisa. Mas de fato, dos três um só continuou procurando depois de um tempo, isso porque os outros dois eram só fazendeiros de veraneio, e só final de semana – um ou outro – eles iam para a fazendo sentar na varanda a olhar os bois; nem sabiam nada de boi, nem queriam era muito saber também, gostavam mesmo era de se sentar em varanda e ver mar de pontos brancos se mexendo de lá pra onde, (mas eles juravam que se encontrassem os bois iriam vir correndo da cidade matar o sujeito que tinha feito tal coisa). De então dos três só morava mesmo era um, e esse possuía o nome de Plínio Pentegrosso.
Uma breve história de Plínio Pentegrosso:
(vamos lá, com muita rapidez para se voltar a história)
Na história da humanidade tem dessas coisas de uma pessoa ou outra se nascer com um nome que não gosta, e se eu pudesse arriscar eu diria que muitas pessoas não sentem muito gosto pros nomes que têm, sentem mais é desgosto mesmo, e se pudessem mudariam logo essa coisa, mas o que de fato é: é que de todos os problemas que elas já tem o nome é dos menores, e dar corrida até cartório para esperar em fila grande homem de bigode chamar pra fazer interrogatório é muito do tempo desperdiçado, e mais assim: dinheiro desperdiçado. Pois bem, Plínio Pentegrosso desde que se lembrava por gente nunca tinha gostado do seu nome de batismo que era ——, e então a mudança para ele era a grande questão de sua vida, desde que tinha por lá dos seus tempos de flores juvenis (de pular em árvore, e de querer botar piru pra fora toda vez que via menina de vestido na rua). Mas essa questão da vida só veio a ser eliminada quando ele atingiu a sua maior idade e saiu de casa chutando a cadeira de balanço com seu pai velho em cima dela (e o velho gritou enquanto caía: “Ahooóooh!” e bateu de cotovelo no chão), mas isso não importa; o que importa mesmo é que ele tinha muita raiva de seus pais, principalmente quando a Maria – menina muito de boniteza – não quis que ele chegasse perto dela no baile de fim de ano da cidade por causa de nome feio (ela também tinha lá seus motivos: que o nome lembrava a ela coisa estragada à muito tempo dentro de armário); dessa história a partir de diante ele ficou bem raivoso mesmo com o nome. Mudou-se-o então para Plínio Pentegrosso, e desde então saiu a cavalo da cidade em que morava e foi percorrendo o interior até chegar nessa cidade que a história se encontra, e por lá roubou vários escravos, e roubou várias terras, e roubou várias ferramentas, até se tornar o homem mais importante da cidade, em que ninguém se atrevia a tocar. Fim.
Foram falar com Plínio Pentegrosso então, soltando a exclamação “De que só homem burro se faz dessa cidade!”. Eram as mulheres mais decididas, e arrastando a saia longa pelo chão de terra seca andaram em bando até a varanda de Plínio Pentegrosso. Ele já as esperava quando as viu de longe contornando a curva que ia dar na entrada da sua casa: pensou: “Quantas mulheres! Quantas mulheres, e esperála-las-hei-o!”, e foi se sentar na varanda, na cadeira de balanço, mas antes foi pegar seu longuíssimo cachimbo dentro da caixa de madeira na estante da sala. E voltou correndo para a varanda, para fazer pose que estava lá já há horas, contemplando seu império, pensando nos seus bois sumidos. Acendeu rápido o cachimbo antes delas aparecerem pela outra curva que era logo perto da varanda, cercada de árvores frondosas, e flamboyants. Fingiu mais um pouco que não as tinha visto, e que perdido dentro da própria cabeça estava; só quando de bem perto que elas chegaram é que ele levantou a sobrancelha ensaiando susto.
“Ôô, minhas belas, o que querem? O que fazem andando em cima dessa poeira, em seus vestidinhos tão limpos?” E elas chegaram juntas e se pararam uma do lado da outra formando um contingente bem organizado de mulheres aborrecidas, de que brincadeira não estavam, e muito menos de receber lisonjeiras de velho safado.
“Ó, seu Plínio – começou falando uma delas – acontece que o macho que roubou os bois ta aí! Na cidade. Em cima da Montanha do Azul, esperando que alguém vá lá buscá-lo e dá-lo uma bela de uma surra, mas os homens da cidade são de pouca coragem e acabaram por sentar em chão de terra e de nada fazer. O que fazer então? Pensamos nós, fortes mulheres, que a única coisa é pedir para seu Plínio ir atrás dele com os homens que lhe pertencem, porque esses sim são homens de grande porte e coragem para ir atrás de macho safado!”. Nesse meio tempo, Plínio Pentegrosso já tinha levantado com a história do macho que estava na cidade, e foi com raiva que teve acesso: como ninguém tivesse tido a coragem de vir dizê-lo que o macho ladrão de bois estava na cidade? – Numa meia história: as mulheres não sabiam aonde estavam o homem com pele de boi, mas para empolgar Plínio Pentegrosso elas supuram que ele estava na Montanha do Azul. Essa invenção viria a culminar no que se seguiria – “Como que o grande Pentegrosso não recebe esse tipo de informação? Como pode? – e começou a gritar – Laranja! Laranja!” e depois parou e bufando esperou Laranja aparecer a sua frente.
As mulheres se empolgaram com chamada de camarada Laranja, porque da história de Laranja tinham muitas coisas interessantes que seriam dessa forma: Laranja era quando ainda criança vivente das florestas, e foi encontrado por Plínio Pentegrosso quando estava nessa idade. Daquele menino de gente só tinha o formato, porque sendo criado no meio dos bichos, sem saber falar uma palavra, ele agia com um tal, e corria com eles, e caçava com as próprias mãos. Contam que Plínio Pentegrosso o domesticou como se fazem com cachorros, e foi o ensinando aos poucos os modos dos homens, para que quando ele crescesse se torna o seu braço direito nas decisões sobre seu império. Mas de temperamento forte ficou sempre e mesmo em idade de mais adulto, com seus vinte anos, ele matou três dos homens da cidade numa briga no meio da rua. Se fosse sujeito normal teria sido julgado como tal, mas como era protegido de Plínio Pentegrosso ele correu solto pelos anos seguintes e até então. Se deu para ilustrar quem era Laranja então.
E Laranja saiu de trás da casa, vindo por fora, pisando em terra seca; veio com os braços encaixados nos ombros e sua cabeça no tronco; bem duro, via-se que era um conjunto todo. E de todas as mulheres elas se entreolharam, porque algo de estranho tinha nesse Laranja, que dava medo nas mulheres, que dava ânsia nas mulheres, que dava desejo nelas; em indecisão de pular em cima ou de fugir elas ficaram paradas no meio termo e esperaram a ordem vir de cima da varanda. Era certo, o que Plínio Pentegrosso vinha a ordenar a Laranja seria mais que feito, porque Laranja nunca tinha deixado em história de vida ordem nenhuma deixada de ser cumprida; e nada seria do possível que o homem com pele de boi, pequeno do jeito que tinha passado por lá, fosse ganhar briga com homem que nem Laranja, nem teria chance, a cidade iria ver os bois de volta logo naquele dia mesmo, e ainda teriam um homem para ser enforcado na praça, para orgulho da população. As mulheres já viam o prefeito saindo de casa embaixo de chapéu, e com o peito estufado de orgulho – como se ele mesmo tivesse capturado o ladrão – diria que preparassem a corda e fossem todas para a árvore! E depois teria uma festa sim, bancada pelo próprio Plínio Pentegrosso, que bateria nas costas de Laranja e pensaria “Esse rapaz, fui eu que criei!”.
O que de fato é interessante pensar em como que o mal pode ser colocado em ponto de vista certo: em cidade em que ninguém é boa pessoa – e se vê nisso que o homem com pele de boi foi expulso injustamente como se fosse só algo de ruim a ser tirado dali; e então depois que fosse morto festa teria para comemorar a grande justiça que se fez na cidade; ora, que justiça? que justiça que se fez? em cidade de homem ruim tem que mais é que se fazer o mal. Mas em história da cidade o relato iria ficar justificado como se o homem com pele de boi tivesse sido só intempérie. Arre! Gente nojenta!
Plínio Pentegrosso já foi falando, ainda bufando com os olhos vermelhos de cólera: “Laranja, eu quero esse homem, olhe bem: ele está na cidade, na Montanha do Azul, eu quero esse homem hoje logo rapaz, quero que vá buscá-lo para mim que dele eu mesmo vou tomar conta, vou lhe dar do meu velho chicote. Ouviu bem? quero ele agora – e cuspindo junto com o berro – agora! agora! agora! – e nesse instante bateu pé que nem garoto, e todas as mulheres deram passos pra trás com medo de varanda cair em estrondo ali mesmo. Depois se acalmou, passou as mãos colando os restantes de fios de cabelo para trás na cabeça, e deu uma respirada funda colocando a mão sobre o nariz, e olhou para baixo pensando um pouco – É isso, vá lá.”. O que Laranja obedeceu sem nem fazer mais perguntas porque perguntas nem tinha, queria ir logo lá para resolver o problema de seu padrinho, que era homem bom, mas que antes teria só que se preparar um pouco para subir lá na Montanha do Azul que era montanha um pouco da alta.
De história da Montanha do Azul que era bem velha: de fato, tinha tanta idade quase quanto a terra mesmo, e existia lá, agora, cheia de árvores no topo, mas ela mesma lembrava de época que tinha sido moradora do embaixo do mar, e que também tinha tido só pedra no topo em época de muito calor na terra, e que também uma vez já tinha quase desabado por causa de uma tempestade de proporções absurdas. A pouquíssimo tempo – em idade de montanha seria só de algumas horas comparada a do homem – uns tipos de criaturas vieram morar a seu pé e construíram demasiadas coisas lá embaixo (que ela achava bem esquisito na verdade), e as criaturas se faziam muito de barulho, que se subia a altura dos ouvidos de montanha. De fato, as criaturas incomodavam bastante a montanha, mas como ela não tinha muita coisa a se fazer só ficava lá olhando e esperando que outra tempestade de proporções absurdas se abatesse por ali pra levá-las embora. Mas, em questão do morador que agora habitava o topo da sua cabeça: este não fazia muita bagunça não, a montanha gostava também da companhia dele, que tinha algo de diferente do resto das outras criaturas lá de baixo, coisa que ela não sabia explicar, mas sabia que tinha.
Desde que a cidade foi iniciada ali nunca ninguém tinha pensado em subir o topo da montanha, porque nada se sabia do que se poderia fazer lá em cima, e também não interessava ninguém essa empreitada, mas como Laranja era homem de tudo ele ousou subir sem nem titubear quando Plínio Pentegrosso deu a ordem, só se sentiu um pouco na dúvida de quanto iria demorar e de como era lá em cima, então resolveu preparar um saco com algumas coisas que talvez fossem necessárias, entre elas, comida e pele de lã, levou também água, que era de sempre necessidade. Fez isso só num pulo só, porque também criado em selva tinha muito sabido do que se encontra no meio do mato e de lá conseguiria tirar o que quer que fosse. Só o topo lhe dava alguma angústia, porque em topo de montanha nunca tinha estado. Escondeu isso, no entanto, de todos, das mulheres e do padrinho. E seguiu caminho pra cidade, quando já era quase noite, e as mulheres o seguiram mantendo passos de distância do homem, que ia sem dizer uma palavra que o fosse.
No meio da andança de volta a cidade Laranja parou e resolveu, depois de passar um tempo pensando, que era mais seguro subir a montanha de manhã cedo, quando o sol já iluminava o caminho. E se sentou na beira da estrada de terra. As mulheres pararam ao seu lado e ficaram em dúvida, se perguntar ou não, porque além de ter parado subitamente, sem nem avisar nem nada, o homem olhava cheio de estranheza para frente como se visse algo que elas não conseguiam. Ficaram nessa de dúvida de dizer algo, e Laranja ainda em olhar vidrado em nada por alguns dez minutos, até que a mais alta das mulheres se incomodou e perguntou alto “O que foi homem?” e nada dele responder, ficaram mais um tempo em silêncio, e então mais uma vez: “Porque parou homem?” ela perguntou querendo saber; depois, percebendo claramente que ninguém ia falar com ninguém, sentaram então juntas de Laranja todas as mulheres. E foi descendo a noite junto com o silêncio, que ficou instalado lá, caído entre o chão e o meio deles.
Dentro da cabeça das mulheres, que eram três, se passavam as coisas distintas de que se pode pensar. Em momento de ficar parado assim, e tendo que esperar, a cabeça sabe que voa e nem se lembra mais do que se trata a realidade quando então volta:
Da primeira: Hoje tem caldo de cana, e hum, que doce que é, poderia beber um agora, poderia sim. Lá em casa, com os filhos esperando tem o pai também, que traz sempre a cana, e então a gente corta e serve nos copos. Filho primeiro sempre tem que vir correndo dando truncada nos ombros dos irmãos menores pra pegar primeiro. É coisa de primogênito achar que tem direito a tudo na frente de outros. Mas o pai sempre briga e diz que menino mais velho tem que esperar. Esperar os mais novos que ainda estão no desenvolvimento dos corpos em sentido de crescer. E de cara feia ele espera de braços cruzados. Mas também só obedece o pai, que a mim ele nunca obedece. Mas é diferente também, a mim ele sempre vem contar tudo que sabe, enquanto que ao pai ele se mantém mais longe. Num sei, é coisa de mulher, saber mais das coisas que os homens… num sei, mas ele vem de sempre falar comigo. E conta das meninas e das suas brigas… menino que já é homem já…
Da segunda, que não pensava nada, só lembrava de canção de terra, que cantarolava com a boca fechada, pelo nariz. Depois lembrou um pouco do namorado e deu suspiro pensando em quanto dos abraços dele se faziam amor.
E, por último, da terceira, que de paciência não restava mais: Se é possível é? esses homens dessa cidade estão perdendo suas botinas…
E então de súbito levantou-se para dar bronca em Laranja, que da mesma posição permanecia, e nem abrira a boca, nem pra respirar que o fosse. Mas a mulher alta, crescendo na frente dele, já era algo de se chamar a atenção: despertou do seu sonho. E a mulher:
“Vamos embora, homem, ou está com medo? Anda-lhe, levante-lhe. Vamos embora! Não é o grande Laranja, matador de três homens numa braçada só? Não é Laranja, que viera das florestas, morador de lá desde pequeno? Ou essas histórias não passam de mentiras? Se é o tal homem que todos julgam ser porque não o demonstra? Que nada, homem de grande bravura que nada! Homem, nada de respeito tenho a você.” E imitando gesto de sujeito mais macho que pode existir, cuspiu no chão e pisou em cima, e com olhar de grande gesto magistral ficou lá, com as mãos nas cinturas, com os lábios contraídos de orgulho.
Da parte de Laranja, que de mulher nunca tinha vindo tal afronta, se sentiu a princípio colocado dentro da confusão inteira e não sabia bem o que dizer, mas aos poucos, seus instintos de macho como nunca se viu, vinha o colocando de pé bem devagar – e quem assistia de fora via aquilo tudo como um gesto bem dramático – e num sopapo só fez da mulher alta perder toda a pose que tinha se apossado dela. E Laranja ficou lá ainda mais, com a mão erguida. As outras duas mulheres já tinham se perdido do que pensavam e a cena na frente delas agora era o que se passava dentro de suas cabeças, e assustadas elas estavam agora, um pouco só, porque com elas duas não eram o que se acontecia, mas com a terceira – e se pode dizer aqui que, na verdade, assim como se passa com todos os seres humanos, as duas tinham mais era uma espécie de curiosidade com o que ai se ia suceder, e, no fundo, a expectativa de que fosse o pior – então elas ficaram lá, com os olhos bem abertos e com a respiração bem calada para perder pouco da briga que se começava ali. Agora da parte da mulher alta, que depois de tomar o sopapo tinha ficado era com muita raiva e que nunca em sua vida tinha tomado sopapo de homem, subia o sangue para sua cabeça e, como faz a raiva, se esqueceu de que com quem estava lidando era com o Laranja, e que desse sujeito se pode imaginar de tudo acontecendo quando se menos se espera. Olhe, a raiva foi crescendo e então tomou por completo sua cabeça, e foi então no reflexo que ela deu uma bofetada de mão bem aberta na cara de Laranja – e, apesar dela não ter escutado nada, as outras duas mulheres soltaram gritinhos parecidos de susto.
Laranja agora se via mais confuso do que nunca antes tinha em sua vida e levantou as sobrancelhas em surpresa como também nunca tinha feito, tanto que até sentiu uma fisgada no músculo da testa (que até então nunca tinha sido obrigado a fazer esse tipo de movimento. Aconteceu que quando chegou o mensageiro do cérebro com as ordens dadas o músculo teve que se esforçar bastante para acatá-las sem que errasse na manobra. Digamos que foi por sorte que o músculo acertou de primeira, senão seria de uma expressão muita estranha que Laranja iria se fazer naquela hora e talvez assustasse as mulheres), mas a expressão foi muito bem colocada porque, as mulheres, elas se sentiram todas de coração leve e prontas para se entregarem por inteiras a Laranja. Nunca se sabe bem o que se passa no coração das mulheres, e por isso que eu não tenho lá que me justificar dessa ação repentina das três, que logo se viram sem roupa rolando no mato com o homem. E passaram os quatro durante a noite inteira num bacanal muito do exemplar. Sim, sim, foi uma beleza.
No dia seguinte, Laranja nem deu tempo a si de acordar e já foi-se andando pela estrada que deveria ter seguido no dia anterior, e logo se deu na entrada da cidade, sozinho, sem as mulheres, que tinham ficado deitadas dormindo em cima de pelo de urso, debaixo de quaresmeira, em tempo de flores.
Ainda era bem cedo, e sol mal tinha levantado quando ele bateu na porta do bar que já estava aberto, porque em cidade pequena bar tem dessas funções de vender pão. Mas de ninguém se fazia lá, só o dono, que deslizava a cabeça em cima do balcão de madeira, querendo dormir. Mas ao bater de Laranja ele se levantou e se colocou mais reto, tentando disfarçar o peso do sono que o dominava. Laranja pediu nada, só sentou pensando, e deixou dono do bar lá, em meio a tensão, porque ficar sozinho com Laranja só se tinha como ter esses sentimentos. Mas Laranja agora pensava em como iria subir a montanha, e que de nada queria ouvir da boca do dono do bar. Estava lá para pensar, em suma. Mas fazer palavra de boca de dono de bar não sair é igual a querer que a igreja doe dinheiro aos pobres. Se então foi o que ele falou: “Olá meu rapaz, quer algo?”, o que Laranja ignorou de pronto e fez cara de desgosto. O dono do bar fez que não viu e entrou na cozinha para fingir que tinha que lavar a louça; ficou lá, fazendo barulho fingido de copo com copo. E logo era hora de partir porque o sol já estava em tempo de esquentar as coisas; Laranja saiu pela porta.
Do lado de fora quando andava em direção a montanha do Azul ele passou pelos homens que no dia anterior tinham estado em estado de pensamento, e em mesma posição de sentados em roda com o queixo em cima de punho eles estavam. Laranja estranhou tal coisa, mas em concentração que estava nem parou. E assim, como burros eram os homens, eles nem perceberam que sujeito macho Laranja tinha passado por ali em tal concentração de matar o homem com pele de boi.
Laranja se postou no pé da montanha, onde depois de reflexão, achou que fosse o melhor lugar para subir. E agora sem hesitação enfiou o facão nas primeiras plantas que impediam o seu caminho.
Voltemos ao homem com pele de boi que foi esquecido pelo narrador desde que os rudes homens resolveram matá-lo: acontece que nesse meio tempo ele também não fez muita coisa além de ter ficado com os pés enterrados em terra fresca fumando seu cachimbo. De vez em quando também levantava para pegar fruta nas árvores, mas logo voltava a sentar. Então o narrador achou que valesse mais a pena contar história de Laranja ao invés de calmaria em cima de montanha. Agora, no entanto, tinha muito interesse da parte do homem com pele de boi, ele ajudava a subir o homem que vinha matá-lo, porque de fato o que ia acontecer em seguida era de curiosidade grande para ele. Olhe, Laranja, que era o homem mais macho da cidade, vinha lhe prestar visita, só se podia ser que coisa boa lhe viesse, pensava o homem com pele de boi. E a montanha também ouvia os passos de Laranja subindo as suas costas, e queria ajudá-lo, porque de fato tinha alguma coisa naquele homem que subia, que de algum interesse tinha a todos nós. Laranja em tanto quanto homem com pele de boi tinham em comum o fato de serem dois homens que a tudo sabiam das coisas que os cidadãos da cidade lá de baixo pouco se importavam, e por isso tinham no seu destino se encontrarem. Era coisa estranha.
O tempo passa e o dia vai caindo.
Quando já era tarde, quase noite, mas ainda dia, Laranja se viu então de encontro com o homem com pele de boi no topo do lugar mais alto, e sobre o olhar da montanha eles pararam entre um e outro, e só se olharam. Se não fosse pelo cansaço, Laranja já teria feito logo o ato ali, mas ele em si estava morto da subida, e vendo figura tão inesperada como o homem com pele de boi ele pensou em descansar antes de fazer carnificina. Mas – coisa muito do estranha – no tempo em que colocava sua mochila no chão e se sentava apoiado em árvore já tinha mudado de idéia e já tinha em sua sabedoria sabido que tal homem em sua frente não teria roubado mais de mil cabeças de boi sozinho, e mais, ele não teria feito porque não precisava por onde. Sujeito há mais de quatro dias subiu na montanha sem menos de um copo d’água beber nesse tempo todo não tinha a mínima necessidade de roubar boi, além do mais, sujeito que vive em cima de montanha por quatro dias e ainda se encara com tanta serenidade não é ladrão, é outra coisa, só não se sabe o que; estes foram os pensamentos de Laranja.
Depois de tempo em silêncio, e recuperado fôlego, e descansado das pernas, Laranja ergueu a voz primeiro.
“Vamos lá homem, porque está aqui em cima, fugindo da cidade, se nem foi tu que roubou os bois?”
E homem com pele de boi se fez de espera para responder com esmero.
“Ora, veje lá, e tu não acha que é mais diversão ver todos esses homens nessa preocupação toda?”
“Mas homem, e deixar que pensem que tu, rapaz calmo das bravarias, vivendo de fruto e flor, em calmaria de montanha, seje ladrão barato de boi?”
No que homem com pele de boi ri, muito do singelo.
“A, que não me importo. Se faz diferença, é ver de cidade tão pequena já tão esquisita dos pensamentos, tudo trocado, acabando de dar rolo na cabeça de quem aqui chega. Ver ela nessa mistura toda é bom pra formação do caráter. Mas olhe, já que tu perguntou, porque deixam que pensem de tu, macha tão são no meio disso tudo lá embaixo, que pensem que tu é o louco?”
“Só. É esconderijo.” Respondeu Laranja entre sorriso disfarce. Homem com pele de boi riu, na concorde.
“Tem razão, é esconderijo. Mas é logo que tu se transforma num deles se não toma cuidado, sabe disso? O tempo chega e se põe do teu lado, macha, e tu nem o vê lá, quieto como brisa, e ele vai colocando coisas na sua cabeça, te enchendo de memórias, e lá se vai aquilo que tu foi já um dia.”
“É o que acha?” Laranja fez pergunta descrente.
“É sim, digo mais, tenho certeza. O tempo é o diabo, se me permite dizer, vestido em pele de nada, só pra fazer enganar os homens, que de nada sabem, só querem.”
Laranja passou tempo pensando em coisa dita por homem com pele de boi, e de perto achava que ele tinha certas razões, porém, dúvida ainda lhe restava.
“Sabe, talvez tenha razão, viver da montanha não deve ser de mal. Mas em cidade se sabe mais das coisas, e se ergue o que se deseja. Aqui de nada tem que se evoluir. Tu fala de tempo ficar te tomando aos poucos: aqui você o sente ao seu lado, donde tem gente ele se aparece despercebido.”
“Mas macha, e como tu pensas que isso é melhor? Só vejo o ruim nisso.”
“Homem, o que se faz com o tempo? o percebendo, não o percebendo, nada se faz a ele. E isso é de mais verdade que se tem.”
“Aí que tu se engana, o tempo, macha, só se faz a quem não o vê. Se tu o toma por inteiro ele se vai embora, e tu fica só pra si, sem ele a te azucrinar a cabeça. E isso é a mais verdade que se tem.” A isso Laranja não sabia responder, e não sabia se sua cabeça tinha entendido o que tal homem com pele de boi tinha dito, então preferiu nada mais dizer. Se convenceu, no entanto, que de homem aquele sujeito tinha muito pouco, mas depois de pensar um pouco se viu em conta de que de todos os homens que tinha conhecido os via como sendo demasiado homens, e que de nada valia a pena ser como eles.
Homem com pele de boi se pôs a acender seu cachimbo novamente, e do fogo acendendo perto do seu rosto Laranja se apercebeu que já era noite. Depois que acendeu seu cachimbo homem com pele de boi se levantou, e virou atrás de árvore.
“Venha, macha, venha ver a cidade toda clara no meio da escuridão, – e Laranja o acompanhou tateando no escuro o que se achava que era caminho seguro a frente – eu me rendo a isso no entanto. Tu não acha que é bonito visto daqui de cima, agora a noite? – Laranja a nada de respondendo, ainda pensativo em meio ao tempo – É tão bonito que é quase que se como não existisse os homens lá embaixo a titubear, a espernear, e a erguer-se meio que acabando com as coisas ao redor. – se deram mais um pouco a olhar lá embaixo, os dois quietos, só se ouvindo som de brisa – Vamos, vamos macha, que já é hora de se dormir. – e voltaram andando aos tatos para onde se encontraram pela primeira vez. e com voz de pouco caso continuou falando como se estivesse ali sozinho, o homem com pele de boi – O que se sabe ao redor do país, é que quando se está assim no escuro não há muito do que fazer sem ser pensar ou dormir – e dos dois os dois se fazem em silêncio. – Sim, é isso. – se ajeitou deitado em cima de terra fofa, a respirar o ar que a montanha exalava – Macha, a vida é feita dessa forma. – sorriu dentro de conforto – Do que sabem os homens? e mais, de que importância tem o que se pensam? num momento é de uma coisa, mas no próximo sempre vai ser outra. Isso é a verdade, macha, isso é a verdade. Boa noite.” Virou pro lado e quase que no segundo dormiu. Laranja, no entanto, ainda acordado a um tempo, se fez a fazer o que de resto tinha no escuro.
…
Na manhã seguinte, quando o sol se pôs a clarear o dia, o que a montanha percebia em cima de si eram só as árvores e alguns pássaros a verdejar; de homem em cima dela não se fazia ninguém. O que se aconteceu durante a noite nem ela se sabia a dizer, olhe, nem se atrevia a tentar adivinhar. Só se sabe que de homem não se sobrou nenhum: fizeram puf que nem fumaça. E foi do some é que eles fizeram o que tinham de si mesmo, para nunca mais por pé em cidade de gente.
Comentário acerca d’O diabo, provavelmente, em terra de Brasil.
O que foi então: o fato histórico se confunde: porque nunca teve boi na cidade? (em situação de dúvida). Ou na verdade teve? Pode ser que nunca tenha existido boi na cidade e os cidadãos tenham se confundido: a partir do momento que traço nenhum de boi existe pode-se dizer que eles nunca existiram de fato; e o que acontece é que por mais que na memória do cidadão eles estejam lá isso não tem a mesma importância que o fato do próprio boi concreto nunca ter estado na cidade; e então o fato histórico se confunde… a memória nunca conta. E resta a dúvida.