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Quatro Parábolas Fantásticas

setembro, 2014

Ele amanheceu parado aqui mesmo. Na noite anterior tinha entrado no escuro. Demorou para voltar. Quando voltou – foi amanhecido – disse que noite anterior tinha sido perdida. Na noite anterior, quando entrou no escuro, correu alguns passos procurando o que lhe fazia falta. Quando amanheceu no dia seguinte ainda pensava no que tinha perdido. Na noite anterior procurou pelos bolsos. Procurou pelos bolsos o que lhe fazia falta.

O que ela lhe disse:
– Se tivesse me dito não teria feito a procura. Esteve bem aqui. Esteve todo tempo aqui. Se tivesse me perguntado, se tivesse tido a coragem, ele já estaria contigo.
O que eu percebo é o sumiço, que lhe convém.
Que não se esqueça que se tivesse perguntado estaria já contigo. Que procura no escuro não é diálogo. Que perdido no escuro não tem o que se encontrar.

Foi perdido no escuro que amanheceu parado no dia seguinte, aqui mesmo. Não lhe convém procurar coisas no escuro (isso já sabia, não precisava dizê-lo). Sabia que procurar coisas no escuro era estar fadado ao fracasso. Estaria iludido de pensar que ao procurar coisas sem enxergar teria chance de encontrá-las. Mas não pode se esquecer que há o tato.
O tato quieto.
Apreciado quieto.
Apreciado tato.

Mas ela lhe disse:
– E pra que lhe serve tal coisa? Por que passou noite procurando coisa no escuro que nem lhe serve? Se soubesse que estava comigo já poderia ter lhe entregado. Mas não vou.
E agora, quem procura o que?
Estou com eles em mão, e se você tivesse procurado aqui, onde ele deveria estar, estaria já contigo.

E que coisa a se dizer!
Logo após amanhecer, parado no dia seguinte, para si mesmo conversou, assim sozinho, como quem não quer nada, disse: se o quisesse de verdade já o teria em mãos. Não o queria de verdade. O queria longe, o queria que não se visse mais.
Procura no escuro tem dessas verdades: procura no escuro quem não quer encontrar.

 


 

Tinha uma ovelha parada no meio da estrada. Disse para o carro que a buzinava em cima:
– Saio, não.
Ao que do carro desceu outra ovelha. Sem dizer mais. Não impressionou a outra:
– Ainda saio, não.
Ao que entra em cena uma ovelha vestindo chapéu. Causa impressão no carro de trás, onde vinha uma família triste, que não conversava mais desde Belo Horizonte. A ovelha de chapéu diz:
– Fui chamada aqui. Expliquem-se!
Ao que a primeira ovelha comenta devagar:
– Estive aqui eu comendo. E me veio um buzido muito perceptível. Do colega ovelha.
A segunda ovelha nem tenta se defender quando a ovelha de chapéu, sacudindo a cabeça em decepção, vai em sua direção com algemas na mão.
Sabe-se muito bem que, em mundo de ovelha, é o egoísta aquele que não permite que outras comam. Crime inafiançável.
Pode até dar pena de morte.

 


 

No princípio era a liberdade. Depois veio a domesticação. Mais tarde, o aprisionamento. Por fim, a morte.
E o que se dizer disso tudo?
Nham, nham, nham! Nhac! Hum, que delícia!
Crônica do desapego a vida de outrem.

 


 

Um calor de quarenta graus matou um estúpido russo que veio morar em terra de índio.
Dizia que era isso que queria quando deixou a gélida terra natal. Dizia:
– Quero morrer de calor. Cansado sobre os pés de dezenas de transeuntes.
Veio da Rússia vestindo casacos de pele, e não os tirou nenhuma vez desde que chegou aqui.
Dormia em cama sobre cobertor de camurça. Suava e adorava. Suava e dizia:
– Acho que está próximo!
E o próximo logo veio. Antes de poder nem receber do correio sua nacionalidade.
Caiu numa tarde de verão, em rua do centro da cidade do Rio. Avenida Passos. Caiu e logo fez-se o amontoado de curiosos.
– O que é que o gringo tem?
E ele dizia, com sorriso nos lábios:
– Cheguem mais perto seus ignorantes! Sufoquem-me!
(e era claro que ele não tinha essa fluência toda na nossa língua luso-tupi, mas morreu aqui, em terra de índio, como bem se faz entender que é onde há mais calor)

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