Tradução e edição (com reduções) do texto publicado originalmente em espanhol em 2012 na revista chilena Ciudad y Arquitectura, nº150.
A USINA entende que o debate arquitetônico sobre o uso de materiais no Brasil e na América Latina – para além do pragmatismo de uso – tem um viés político. Uma das discussões que têm aparecido nos últimos anos no campo da arquitetura nacional é sobre como a madeira possui um alto potencial construtivo no Brasil. A ideia é de que se usa pouco, apesar de sermos um país com uma alta capacidade produtiva. O autor do texto, o acadêmico brasileiro Fernando Lara, no entanto, desafia essa ideia ao expor como a arquitetura moderna sempre utilizou a madeira abundantemente, mas de uma forma que a invisibilizava. Apesar de ser um texto curto, ele toca direto no ponto e levanta algumas questões sociopolíticas que envolvem o cenário construtivo no Brasil.
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Quando a revista C/A me convidou para escrever sobre a madeira na arquitetura brasileira, minha primeira reação foi utilizar o padrão da historiografia tradicional e responder que o uso da madeira no modernismo brasileiro foi mínimo, quase irrelevante.
Se observarmos o trabalho absolutamente poético de um Zanine Caldas¹, ou a racionalidade estrutural de um Marcos Acayaba², notamos que os dois são importantes, mas ambos são empurrados para a periferia de um discurso cuja centralidade sempre foi o concreto armado.
Poderia falar também das treliças do Grande Hotel de Ouro Preto e como este edifício de Niemeyer³, “colonializado” por Costa4, serviu como xeque-mate dos modernistas em 1940. Ou poderíamos falar do revestimento da Capela de Pampulha, ou da escada de Lina Bo Bardi5 no solar em Salvador, ou das colunas de troncos de árvores utilizados por Artigas6 na casa Elza Berquó. No entanto, a realidade é que a madeira é visível na arquitetura moderna brasileira somente em um papel de acessório ou secundário, como um elemento adicionado a posteriori para trazer calor e humanidade a dureza do concreto. E como disse bem o crítico de arte Paulo Venancio Filho: o brasileiro ama o concreto.
Nesse ponto, cabe chamar a atenção sobre o adjetivo “visível” na frase anterior. Não teria sentido escrever este breve ensaio sobre a madeira se eu não estivesse, como o título diz, interessado na invisibilidade, naquilo que os olhos não podem ver mas que está aí/presente. Como a cegueira do ensaio do Saramago, uma névoa branca e opaca, absolutamente inexplicável, mas não menos aterrorizante.
Jonathan Hill e muitos outros analisaram a obsessão dos arquitetos do século XX pela fotografia. Projetados/projetada para o futuro e para o mundo das ideias de Alberti, a arquitetura do século passado aceitou que prevalecesse uma forma midiática, impulsionadas pelas revistas e fotografias. Basta lembrar que um dos edifícios mais famosos do século, o Pavihão de Barcelona de Mies van der Rohe, existiu somente como imagem por mais de 70 anos, alcançando, apesar disso, uma aura que desafia a ideia Benjaminiana da dissolução por difusão.
Digo isso porque toda vez que olho os edifícios paradigmáticos da arquitetura moderna, no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, raras vezes pensamos em como e por quem foram construídos. Para escapar da sedução da fotografia, é necessário um exercício de contextualização que exige conhecimento e esforço. A imagem é acessível, imediata, fácil de consumir. A verdadeira compreensão da arquitetura exige uma postura ativa, uma ação investigativa e uma reconstrução, mesmo que incompleta, dos processos que fizeram possível este ou aquele edifício.
E aqui entra a nobre madeira, figura esquecida da arquitetura moderna. A próxima vez que você, senhor leitor, ficar encantado com a leveza e as formas audazes de Niemeyer, de Reidy7 ou de Mendes da Rocha8, trate de visualizar mentalmente as milhares de tábuas de madeira que estavam ali para “formar” o edifício, e as centenas de mãos que as puseram e retiraram. Para cada um desses elegantes blocos de concreto, as tábuas foram antes o negativo que lhe deram a forma. Uma existência prévia e invertida, feita de madeira macia pronta para receber a massa de concreto e lhe dar a forma de pedra artificial. E cada uma destas formas foi sustentada por peças cilíndricas que chamamos de estacas. Tais como bastões ou muletas que suportam o peso do concreto até que este alcance uma dureza tal que o permita confiar nas suas próprias pernas.
Todo modernismo brasileiro que seduziu o mundo depois da Segunda Guerra Mundial foi construído com madeira, matéria-prima abundante em um país de dimensões continentais, cujo interior ainda era escassamente povoado até a metade do século XX.
No caso da escola carioca, a madeira que possibilitou o concreto está quase sempre oculta por uma camada de gesso, pintura ou placas de pedra. No caso da escola paulista dos anos 60, seu traço brutalista usava e abusava do concreto aparente, na grande maioria das vezes deixando a mostra as marcas que as tábuas de madeira que lhe deram a forma. Ao observar mais de perto algumas construções icônica desse movimento, como a FAU-USP de Vilanova Artigas, o MASP da Lina Bo Bardi, ou o Ginásio Paulistano de Paulo Mendes da Rocha, se pode enxergar não só as formas de madeira, os seus pequenos fragmentos incrustados no concreto e os resíduos do processo de desmontagem. Também é possível enxergar as toneladas de madeira descartadas.
Seduzidos pelo trabalho intelectual, nos esquecemos que a construção é uma atividade complexa na qual centenas de pessoas deixam suas marcas, transformando com criatividade as ideias iniciais de projeto. É uma arrogância dizer que o edifício é uma obra de Niemeyer ou de Mendes da Rocha, como se tivessem criado tudo eles mesmos. No dia em que assumirmos a condição de obra coletiva na arquitetura, poderemos estar mais próximos de compreender a riqueza e a complexidade do processo.
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Madeira e gente, o Brasil sempre teve de sobra.
Duas fontes abundantes e talvez por isso ainda desvalorizados nos últimos cinco séculos de história do Brasil. Mas, se as regras de oferta e demanda ditam nossos valores, não se explica a contínua invisibilidade em tempos de pleno emprego, crescimento econômico e incerteza quanto ao futuro dos recursos naturais. Até quando vamos insistir em entender os 8 milhões de km² de terra fértil e os 200 milhões de brasileiros como ingredientes baratos de uma modernidade leve e elegante que esconde a brutalidade da desigualdade e da exploração predatória da terra e dos homens da terra?
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1 José Zanine Caldas (1919-2001), arquiteto honoris causa baiano responsável por uma das mais expressivas obras de arquitetura com madeira no Brasil.
2 Marcos Acayaba (1944-), arquiteto paulista, cujos projetos de arquitetura com madeira entre a década de 1980 e 2000, trouxeram novos ares ao estudo e produção à área no Brasil.
3 Oscar Niemeyer (1907-2012), arquiteto modernista carioca. Principal nome da arquitetura brasileira, foi responsável, junto com outros nomes de sua geração, de inserir o Brasil no debate arquitetônico mundial. Ganhador do Pritzker em 1988.
4 Lucio Costa (1902-1998), arquiteto franco-brasileiro, um dos fundadores do modernismo no país.
5 Lina Bo Bardi (1914-1992), arquiteta ítalo-brasileira, responsável por obras de grande relevância para a arquitetura moderna. Atuou principalmente em São Paulo.
6 João Vilanova Artigas (1915-1985), arquiteto associado a Escola Paulista de arquitetura moderna.
7 Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), arquiteto franco-brasileiro, um dos nomes mais expressivos da arquitetura moderna carioca.
8 Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), arquiteto modernista com larga atuação, principalmente em São Paulo. Ganhador do Pritzker em 2006.
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Fernando Lara é um acadêmico brasileiro da área de arquitetura e urbanismo. Ele é atualmente professor e pesquisador na Weitzman School of Design, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Sua carreira tem um foco interdisciplinar em questões relacionadas à cultura, identidade e espaço urbano nas Américas, com uma abordagem teórica decolonial. Além disso, Lara tem contribuições significativas no estudo da arquitetura moderna latino-americana.