Os Povos Tradicionais são internacionalmente reconhecidos como guardiões da biodiversidade do planeta. No Brasil, estes povos estão gravemente ameaçados pelos ataques impiedosos e violentos do neoliberalismo e das elites entreguistas e colonizadas. No norte de Minas Gerais não é diferente e a resistência segue firme e forte, produzindo alimentos e cultura, nos garantindo futuro e ensinando outros caminhos e modos de ser sociedade, de ser humanidade.
Nesta publicação, estão alguns registros e histórias da documentação fotográfica que venho realizando na região desde 2015. Este caminho vem sendo feito a partir de uma fotografia compartilhada, fundamentada em uma relação de respeito e afeto com as pessoas, que se fizeram minhas professoras e me ajudaram a re-ver o mundo.
Que encontre em você bons ouvidos e bons olhos. Que fale a você também coisas preciosas.
Os Apanhadores de Flores Sempre-Vivas são um dos povos tradicionais do Brasil. A Comunidade Galheiros planta, colhe e vive da panha de flores. Tem uma dinâmica de comercialização muito bem estruturada, com contratos constantes em diversas cidades do país e do exterior. Neste dia, visitamos a casa de Branca e João, ambos apanhadores desde criança. Branca começou aos 8 anos e nunca trabalhou com outra coisa. É uma artista: o modelo de arranjo de flores que está montando aqui, um dos mais vendidos, é criação de Branca.
Lúcia é guardiã de sementes crioulas. É também uma das lideranças e braços da resistência da Comunidade Geraizeira, que conquistou a proteção e o reconhecimento de suas terras como Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) por decreto presidencial assinado em 2014 pela então presidenta Dilma Rousseff, depois de uma greve de sede que os comunitários fizeram em Brasília.
Nas últimas décadas, a região vive uma disputa entre os que desejam preservar as riquezas do território e os que desejam a expansão da monocultura do eucalipto. Diante dos ataques à RDS Nascentes Geraizeiras, a única barreira impedindo as oligarquias regionais de destruírem a biodiversidade e as nascentes ali foram – e são – os geraizeiros organizados e perseverantes, mesmo frente a ameaças de processo, prisão e morte.
Nascente de água recuperada no território quilombola de Vargem do Inhaí depois de 11 anos de cuidados com a terra pelo cultivo agroflorestal. Os responsáveis por esse milagre são Maria Hercília da Cruz Vale, Imir de Jesus da Cruz Vale e seus saberes ancestrais.
Maria e Imir na janela de sua casa. Casados há 24 anos, começaram um namorinho de criança aos dez anos de idade e nunca mais se separaram.
O Quilombo de Vargem do Inhaí é uma população tradicional de agricultores e apanhadores de flores Sempre-Vivas situado na Serra do Espinhaço e foi impactado pela implantação do Parque Nacional das Sempre-Vivas. Reconhecidos e certificados em 2011 pela Fundação Palmares, lutam pela demarcação territorial que, segundo o levantamento antropológico, corresponde a 16.000 hectares, e pela recategorização do Parque Nacional das Sempre Vivas para uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que permite a manutenção do modo de vida tradicional.
Imir e Maria também são guardiões de sementes crioulas. No momento de nossa visita o casal guardava 14 tipos: gergelim preto, milho preto, milho de pipoca preto, milho de palha roxa, milho branco, feijão miúdo, feijão de bage roxa, feijão rosinha, feijão roxinho, arroz comum, arroz sequeiro, abóbora, andú e fava. Também cultivavam mais de 90 itens para fins de alimentação, ração e ervas medicinais, fora a criação de animais.
Beleza do cerrado brasileiro vista de uma ponte sobre o Rio Jequitinhonha, nas proximidades do Quilombo de Vargem do Inhaí, cujo território é cortado por ele.
Joelice e Orlando, casal inspirador e amoroso.
Orlando é liderança do Movimento Geraizeiro que começou em 2011, quando eles e outras 40 pessoas acamparam por 4 meses na Comunidade de Cutica para expulsar uma carvoaria do território. Joelice conta que foi muito difícil e sofrido o tempo do acampamento. Toda a família sofreu represálias por estarem encabeçando o movimento. Ela precisou deixar as filhas com a avó e até mudá-las de escola, pois eram xingadas e agredidas.
Em 2012, as perseguições se agravaram. Armaram uma casa de caboclo para Orlando que, avisado por um membro da polícia, fugiu quando duas viaturas chegaram numa manhã de Páscoa. Joelice e as meninas ficaram, ela e uma filha foram algemadas e levadas para a delegacia em viaturas diferentes. Os policiais deixaram a outra filha, de 8 anos, sozinha na casa. Desde então Orlando e toda a família entraram para o Programa de Direitos Humanos de Proteção a Testemunha. Obtiveram vitória e os empreendimentos da carvoaria estão parados.
“Como é que a partir da comida e de quem consome, a gente consegue comunicar as lutas? A gente percebe que muitas vezes o público consumidor se interessa pela qualidade daquele alimento, muito relacionado à questão de saúde, mas não sabe nada do que está acontecendo, de toda luta que é para chegar até ali (na feira). […] Para se ter comida de verdade, comida de qualidade, é preciso apoiar as várias lutas, a luta pela soberania alimentar, que envolve a luta pela terra, pela semente, pela água.
Porque a gente, muitas vezes, vê que o mesmo consumidor que vai lá numa feirinha e compra esse alimento que tem tanta luta para chegar até ali, é o mesmo que não vai apoiar uma luta pela terra, não vai entender que aquelas pessoas, agricultoras e agricultores, vem de uma trajetória de muita luta que precisa de apoio. A gente entende que a comida pode criar essa comunicação e ir conectando consumidores e produtores no sentido de reforçar que essa luta pela terra também é uma luta que está relacionada com a gente ter direito a comer.”
Fala de Vanessa Schottz, professora do Curso de Nutrição da UFRJ Macaé e integrante do GT Mulheres da Articulação de Agroecologia Serramar, no documentário Cochichos de Cozinha – afeto e política na mesa.
Quando perguntei onde queriam que eu os fotografasse, Orlando escolheu as parreiras de chuchu. Disse, com lágrimas nos olhos, que é o alimento que salvou ele e sua família da fome e da morte. Ele tinha 13 anos quando seu pai adoeceu fortemente e foi internado na cidade, por isso, Orlando teve que assumir a chefia da família de 10 pessoas e foi cultivando e vendendo chuchu, carregando por horas a pé até a feira mais próxima, que ajudou sua mãe a criar ele e todos os seus irmãos. Na época de nossa visita conseguimos listar, entre animais, frutas, legumes, verduras e ervas medicinais, 125 itens sendo criados e cultivados pela família no território de sua chácara.
Maria Inês exibe os belos produtos sem veneno de sua horta. Casada há 31 anos com Joaquim, formam um casal de agricultores que são filhos de agricultores da região, onde criaram seus 3 filhos, dos quais 2 também são agricultores. Na época de nossa visita encontramos mais de 90 itens sendo cultivados, entre animais, frutas, legumes, verduras e ervas medicinais.
A Comunidade Vacariana vem sendo assediada e ameaçada pela mineradora chinesa Sul Americana de Metais (SAM), subsidiada pela China e cujo projeto de barragem, se implementado, afetará drasticamente a vida da comunidade e as possibilidades de vida no território. O casal relatou que eles e outros moradores são visitados mensalmente por um empregado da mineradora. As visitas tem o intuito de mapear a disposição dos moradores e de convencê-los que a barragem é uma boa coisa para a comunidade. A SAM tem distribuído adesivos para os moradores que a apoiam colocarem em suas casas e estabelecimentos: “Eu apoio o bloco 8.” O mesmo adesivo foi colado em todas as cestas básicas que mineradora distribuía durante a pandemia.
Ivânia e Raimundo, casal de vazanteiros e pescadores. Ivânia nasceu na comunidade de Pau Preto e Raimundo se tornou morador pra viver com Ivânia.
Pau Preto é uma comunidade vazanteira: vivem da pesca e do plantio às margens do Rio São Francisco, em estreita relação com ele e seu movimento de cheia e vaza. A comunidade vem sendo fortemente afetada com uma gradual seca do rio causada pelo enorme Projeto Jaíba de irrigação, voltada para criação de um centro agroindustrial na região.
Conhecer Mãe Piana é uma experiência que te rouba as palavras. Além de parteira, é matriarca, rezadeira e erveira. Isso tudo sem ter podido estudar, nem aprender a ler e escrever. Senti uma reverência enorme ao estar ao lado de tanta sabedoria e presença. Por isso, seis anos depois, voltei. Pude estar e ouvir com mais tempo e atenção. Perguntei-lhe, onde e como aprendia tantas coisas. “É Deus que me fala, minha filha”, ela respondeu. Todos dos dias, Piana segue devotamente sua rotina de rezas e missas assistidas pela televisão, nessa sala azul em sua casa. No dia desse retrato, assisti um pedaço da missa de meio dia em sua companhia.
Travessia de balsa intermunicipal Manga x Matias Cardoso x Manga.
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As fotografias desta publicação estão disponíveis para venda, com metade do valor sendo encaminhado aos fotografados e/ou suas comunidades. Para mais informações, entrar em contato com saragehren@gmail.com
Para saber mais e colaborar com a luta dos Povos Tradicionais, acompanhe pelo instagram:
@codecex – Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas
@caa.nm – Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas
@cooperativagrandesertao – Cooperativa Grande Sertão de Economia Solidária
@institutopequidocerrado – Instituto Pequi do Cerrado
@oleirasdocandeal – Oleiras do Candeal – Cultura quilombola