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Domingo de sol

novembro, 2023

Naquele dia era um domingo de sol. Na semana anterior, o chefe da Vila tinha arranjado um caminhão de sardinha. Marcos, meu irmão mais velho, que tinha ido pegar. Chorei por não ter sido deixada ir também. Queria entrar na fila não por querer pegar a sardinha. Queria conhecer o dono da favela. Meu pai contava que o via andar a cavalo pra cima e pra baixo por ali.  E que, sim, era bonito quando jovem. Ah, que os olhos claros não eram lentes. Crescer naquele espaço onde o tempo era estranho, entre silêncio, confusão e relação com os outros sem muitas conversas, era também viver do mesmo modo, era começar a gostar de homens do meu bairro. E eu era apaixonada por ele, o dono da favela.

Ele foi nascido e criado no lugar onde eu também morava. Sua risada era estrondosa e contagiante. As motos dele eram mais bonitas que todas as outras que passavam pela rua. Sabíamos histórias de fuga das mais irreais e verdadeiras. Quem duvidava, podia até parar na esquina junto com ele pra saber do porquê não acreditarem que o que dizia era verdade. Quem era parado, já sabia que algum sermão ou medo da morte teria que levar pra casa. As regras de convívio eram todas seguidas por algum tipo de raciocínio que os cria viam como legítimo. Quem desobedecia, levava o chamado. E aí, seria olhado com mais atenção entre a comunidade. O fato final sempre vinha com outros avisos. Quem ia até o final dessas etapas todas sabia que queria mesmo é dá de cara com ele e pagar pra ver. E ele cobrava.

A história é de que entrou nessa vida porque estava cansado. Da sacanagem que os de fora faziam com os que tava dentro. Com a politicagem que faziam com a gente em troca de voto. Eram coisas que todos contavam que conseguiam escutá-lo falando. O chefe falava aos ventos.  Um dia consegui chegar mais perto dessa voz, que era rouca e alta. Tinha ido ver a madrinha que fiz minha, quando virou a melhor amiga da minha mãe. Minha mãe não gostava que eu fosse pra casa dela porque seu portão era no beco onde era passagem pra eles, que queriam cortar caminho pelo campo de futebol. E ele sempre passava. Sentia raiva por isso. Entre algumas tentativas de passar de ano, um dia consegui fazer com que a madrinha me ajudasse no dever de casa. No sono de uma tarde, daquela mulher que era faxineira em Botafogo, ouço um carro parar. Me arrepiei por completo e por algum segundo tive a certeza de que ele podia saber que alguém o escutava só pelo meu cheiro. Tinha chegado a minha vez, também, de acessar a sua voz.

Aquele beco era como uma ponte entre a rua mais longa do começo da favela, que também era a saída mais tranquila, a Estrada do Engenho,  e o espaço vazio que o campo de futebol ocupava pra gente. Até atravessar totalmente o campo, era possível chegar pelo centro da favela, indo na direção Senador Camará e depois Campo Grande. A viagem dali era de uma hora quase. Era fato que em algum momento aquele beco poderia ficar bloqueado porque faziam uma parada pra saber qual direção tomar. Na vez que pararam, lembro de ter agradecido a Deus por estar do outro lado do portão. Era como se eu estivesse com eles, como um fantasma. Um portão me separava dele e dos outros que estavam ali – um deles foi o primeiro da rua que percebeu que meus seios cresciam, e disse que iam crescer mais.

Se apaixonar pelo dono da favela em que eu morava era também me declarar pros meninos, garotos e homens que eu já conseguia sentir algum desejo. Mas era com ele que sentia essa mulher que estava brotando em mim. Essa mulher que eu também admirava. As mulheres deles. Mulheres muito bonitas. Muito alegres. Muito bem vestidas. Elas não tinham medo. Isso era o que mais me intrigava. Como não conseguiam sentir medo perto daquele grupo que o que mais causava entre nós era isso: o medo de ultrapassar a linha do respeito? E aquelas mulheres, também com suas motos-biz, com seus filhos dentro do carro, causavam o respeito quando passavam. Eram tipos de respeito para cada grupo.

Para eles, o respeito de acreditar exatamente no que podiam dizer para a comunidade, de informação, de ensinamento, de conduta. Para elas, era o respeito em relação à presença delas como uma garantia de fazer parte da comunidade. Era só chegarem que os caras paravam de falar besteiras. Não por não saberem o que estava rolando, porque muitas das vezes eram elas que explanavam qual era o assunto, de jeito debochado, na rua mesmo, mas por conceberem que aquilo que se dizia ninguém deveria escutar.

– Esses caras são fodas – ouvia pelo terreno.
– Homem é um saco escrotal que só serve pra gente chupar e rir com eles se tremendo todo – diziam ao vento.
– Fica com medo não, menininho – adorava ouvir uma que sempre passava pela minha rua. Eu ria junto.
– Aqui só é meu quem saiu do meu ventre, ela falava. De resto quem chegar pode ficar sabendo que fui eu quem deixou entrar. Falava mais alto antes de entrar nas esquinas. E se ficou vivo, fui eu quem mandou perdoar daquele jeito bem manhosinha – lançava antes de desaparecer.

Pensava em como era possível terem conseguido isso: outras pessoas sentirem medo delas igualzinho como os homens sentiam medo de outros homens – só que diferente. Era um começo de tudo. Mas a paixão era real. Podia dizer que amava o chefe. Me preocupava se ele tinha conseguido fugir das operações policiais que o BOPE fazia na favela, cada vez de um jeito. Um dia me disseram que ele colocou a roupa de um morador de rua e saiu de bicicleta como se fosse alguém comum.  Era um tempo que o chefe tinha umas fotos de rede social e oficiais muito antigas. Os policiais já não sabiam como ele estava esteticamente. Tinha histórias de cirurgia no rosto. De que ele tava mais magro ou mais gordo. A característica da perna era sempre uma marca. Mas também não sabiam se ainda conseguia andar. A favela, que também era muito grande, tinha as mesmas dúvidas e outras histórias em cada região da comunidade. Naquele dia, consegui  encontrar a voz que só ouvia falar. Sobre o seu corpo, não tive coragem de tentar ver pela fresta do portão. Se me vissem eu poderia ser interrogada como uma X9 recém-adolescente-mulher. Meu irmão já tinha sido perguntado sobre isso. Se algum dos moleques que estava com ele me reconhecesse como irmã do Marcos, ia ser na certa a desconfiança com a família toda. Mesmo assim, a vontade de ficar perto não passou. Fiquei parada em frente ao portão de ferro que mais parecia ser papel ou um véu transparente que só ele poderia rasgar. Foi o silêncio mais presente que fiz em toda a minha vida. Ele tava muito bolado. Os meninos falando algo como um “que isso, chefe”. “Chefe é o caralho”, ele dizia.

– Aqui quem fala sou eu mesmo, não é chefe não. Cadê o Vasco?
– Vasco tá contando os malotes.
– Ih, quando vejo que tenho o que não consigo mensurar, gosto de fazer com calma.
– É, mas tem que contar.
– Contar é o caralho! Chama ele lá. Fala pra ele largar isso, guardar tudo e vir pra cá. Fecha o beco!

Tinha visto o momento que decidiram fechar aquele beco. Quando isso acontecia, alguma decisão estava sendo tomada. Minha madrinha me acordou do sonho. Me pegou pelo braço e me levou pro quarto no fundo da casa. Pegou um terço de Nossa Senhora e, eu lembro, que mesmo meus pais me proibindo de adorar imagens, rezei junto dela.

****

– Tem certeza, pai?
– Sim, são olhos verdes de verdade mesmo. É que hoje ele só anda com o grupão, e ninguém pode olhar diretamente. Só se ele quiser falar com você, aí olha.
– Se eu entrar na fila, pai, esperar, e pegar a sardinha na mão do Vasco, o braço direito do dono, será que posso olhar pra ele?
– Acho que vai ser impossível você não olhar, Marina. Ele vai tá do lado do Vasco.

O corpo colando rapidamente. Pra cada banho só tínhamos uns minutos de frescor, de resto era só mosquito e ventilador quebrado no sovaco que suava. Minha mãe entrou pelo portão avisando que tinha caminhão parado do outro lado do campinho de futebol. Falaram que não era comida. Era gás.

– Tola conseguiu gás! Tá distribuindo pra gente. Seu pai já não tá em casa. Cadê teu irmão mais velho?
– Foi na Vila com o Maycon.
– Avisa pro Iago que quando seu irmão passar pela rua, falar pra ele voltar pelo campo. Eu vou lá ficar na fila, e seu irmão leva o gás.
– Mãe, posso ir com você?
– Pode, mas segurando a minha mão.
– Será que é hoje que a gente conhece o Tola?
– O Tola? Ele nunca fica lá direito. É o Vasco só.

Ah, o Vasco sempre vejo nos jogos de futebol dos garotos. Ele pega a bola com a bruxa da Rua A. A gente tem medo dela. E ele sobe no muro pra pedir pra ela devolver.

Quando tento lembrar do trajeto, parecem quilômetros. A quentura daquele chão era outra. O nosso asfalto era diferente. Às vezes, sentia o ar seco. A terra dura. E o céu, longe demais. O sol era uma bola gigante, e tinha a sensação de que aquela estrela poderia ser, na verdade, um meteoro na nossa direção. No contorno do campinho de futebol, depois de ter virado o primeiro vértice da quadra, vimos. Pessoas de vários tipos, no dia de mais quentura de um dia quente, esperávamos o gás. Quando o dono aparecia, era festa. Parava numa esquina e era certo que aquela batida grave do funk  ia rolar. Quem não saía de casa, teria que sair. Até quem tinha gás apareceu pra pegar. Os crentes da Assembléia. Galera dos becos. Os que tinham carro. As famílias magrelas. Aquela mãe que tem uns sete filhos que todo mundo conhece. Era mais ou menos no final da manhã, começando o almoço,  que ele aparecia. Sumia. E depois aparecia numa festa no Centro da Vila Aliança. Tinha história de que ele não gostava que cantassem a música do cavalo manco da cantora Joelma, porque achava falta de respeito com o fato da perna dele ser aleijada. Por conta de tiros na perna, ele andava mancando. Nunca vi o chefe em pé. Sempre estava em alguma cadeira rodeado de segurança, sentado. Entre várias coisas que aquele homem entregava, eu, enquanto criança, queria ao menos ver o dia que poderia até, também, cozinhar alguma coisa que tínhamos em casa. Os presentes vinham como uma surpresa. A quase brincadeira de adivinhação sobre o que poderia ser o caminhão que chegava de madrugada, salivava nossa imaginação de uma cozinha com materiais, que simplesmente, apenas, apareciam. O dia tinha chegado de novo, e junto dele o seu dono.

***

– Que bom, né?
– O gás tá caro mesmo.
– Às vezes, Márcia, quando consigo comprar as coisas, acendo o fogão, é na certa: sinto cheiro de gás. – Ih, aí a gente até já sabe. Acabou, né?
– Exatamente! Parece que é uma coisa isso. Aí, a gente, que já gastou o dinheiro com a comida, fica sem dinheiro pro gás. Avisei mais pros próximos. Pros que precisam mesmo. Você com três filhos trabalhando como manicure, não é fácil.

Eu olho pra minha mãe e ela dá um sorriso constrangido. Nunca tinha escutado que era difícil a nossa vida. Sabia que a gente não tinha algumas coisas. O café, ela fazia cantando. A mistura do pão picado com café com leite apresentou pra gente como uma ideia muito maravilhosa.

– Olha filha, assim a gente consegue sentir um gostinho diferente do pão. Não é legal? Quentinho, ó!
– Que estranho, mãe.
– Tá uma delícia. Botei açúcar também. Se quiser colocar menos café e leite e mais pão, acho que fica melhor. O pão fica menos encharcado.
– Gostei mais assim, mãe.
– Então toma tudo.

A lembrança passa por mim como uma apresentação de teatro que veria de novo. A alegria da minha mãe era estranha, porque me contagiava. Ao mesmo tempo que sua tristeza era um momento em que nos olhávamos e o nosso silêncio sempre foi a resposta de que sim, a vida era pouca.

– Ah lá seu irmão. Marcoooos! Ué gente, ele tá vindo com um gás.
– Não vamos mais chegar até o início da fila? Ele pulou?
– Filho, que coisa boa.
– Eu tava passando aqui, aproveitei e fiquei. Trouxe o carrinho de obra do Raimundo.

Enquanto meu irmão levava o gás ao carrinho, minha mãe continuou na fila. Ela tinha ficado porque Maria, a senhora solitária da nossa rua,  estava chegando.

– Pelo menos, a gente não ficou na fila à toa. Ajudar os mais velhos cura!
– Posso ficar com a Maria e voltar depois?
– Que isso? Por que quer isso?
– Quero conhecer o Tola.
– Para com isso, Marina. Não quero você falando isso alto. Maria já tá lá, ali. Vamos pra casa.

A fila se desmonta. Todos começam a correr. O meu irmão corre pra esquina com o carrinho. Fui atravessada por um homem. Levantou o gás, produziu uma alavanca como uma máquina em seus braços para suspender o objeto. Enquanto isso tento correr pra minha mãe. A força daquele levantar do gás me interrompeu e veio em pancada na minha cabeça. Eu caio. Levanto tonta. Tento achar minha mãe. Muita gente corre.  Corro na direção de todos que correm. Entro no ferro velho que também tinha um sonho em saber como era. Tinha ninguém. Olho pela fresta e vejo o camburão e os polícias de preto que passam gritando:

– Cadê o Tola, porra? Quem aparecer com esse gás, explodo junto perto da cabeça.

Na minha rua sempre víamos o camburão de longe. Víamos eles tentando passar pelos quebra-molas que pareciam muralhas. Mas nunca de perto. As janelas eram tão pequenas, que só cabiam a ponta do instrumento que eles usavam. Eu me perguntava como conseguiam mirar.

***

Não sei por quanto tempo fiquei. A Rua B estava vazia. O barulho, só com os cachorros. Tinha certeza que Marcos e minha mãe tinham explodido. De longe, consegui escutar. Seu grito. No meio da rua vazia e barulho de cachorro: MA RI NA. Eu saio por aquele portão de ferro colocando primeiro a cabeça pra fora. Minha mãe me abraça.

– Meu coração ia morrer se você não estivesse aqui.
– Não quero voltar. Tô com medo. Os policiais que vieram de preto disseram que vão explodir a cabeça junto com o gás.
– Vão não, filha.
– Eles querem o Tola.
– Aí, viu? Eles também querem ver o Tola. Que nem você. Por isso filha, você não pode ficar perto. Tá ouvindo? Segura minha mão. E não solta.

Volto com a cabeça latejando. Era dia de sol. Quentura do chinelo fino. O ar, seco. Eu, explodida por dentro.

 

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