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Estética, corpo e imanência em Exu: Entrevista com Déa Trancoso

dezembro, 2022

Foto: Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França. Figurino: Acervo pessoal.

Cantora, compositora e pesquisadora, Déa Trancoso ressoa mais do que nunca as conversas que teve com o Exu Zambarado no final dos anos 90. Relação que reverbera hoje no Doutorado em Educação pela Unicamp, cuja tese, intitulada “Catimbó Zen: existências compartilhadas – linhas de produção de clínica e educação entre uma filha da folha e os exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande”, será defendida em março de 2024.

Seu primeiro álbum é “Tum Tum Tum”, lançado em 2006 e relançado em 2010 pela Biscoito Fino, depois vieram “Serendipity” (2011), “Flor do Jequi” (2012) com Paulo Bellinati e “Líricas Breves para a Construção de uma Alma” (2020). Além dos trabalhos musicais, entre 2016 e 2018 fez Mestrado em Estudos Rurais pela UFVJM, momento em que mergulhou na filosofia de Deleuze. Em 2022, Déa voltou a ministrar a oficina “A lembrança de si mesmo” e fez apresentações com seu novo repertório “Cartas ao Vento”, que ficou registrado como exercício de qualificação em sua recente passagem por Istambul, com a colaboração de Geovana Jardim. (acompanhe aqui)

A presente conversa aconteceu em Belo Horizonte, logo que Déa retornou de sua gira nordestina, realizada entre julho e agosto desse ano, e foi revisitada nas últimas semanas durante o estágio de doutorado sanduíche em Portugal, onde esteve nos últimos meses e quando aproveitou para visitar San-Jean-Pied-de-Port na França, cumprindo um pedido que Zambarado lhe fez há 25 anos e que proporcionou o ensaio fotográfico que acompanha a entrevista.*

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Vitor Faria: Então Déa, gostaria de começar te perguntando do processo de construção de Tum Tum Tum, seu primeiro álbum, que foi lançado em 2006, mas que foi resultado de uma longa trajetória. E você fala que o álbum foi encomendado por um Exu, como foi isso?

Déa Trancoso: Então, esse processo de Tum Tum Tum, eu acho que foi um rito iniciático. Ele demorou muito pra ser feito. Ele não foi um disco meu, foi um pedido do Exu, que portava uma insígnia dos encantados.

Então, ali, já tinha uma ficha que só caiu muitos anos depois. De que de fato eu era uma indígena perdida na cidade. Venho, talvez, de uma cosmologia borum. Depois, quando eu fui mergulhando nisso, eu fui compreendendo que eu estava ali, nessa nação Borum, que é uma nação muito parecida com a nação Tupinambá, que são indígenas muito ancestrais do Brasil.

Porém, esses borum fizeram parente, né? E aí a gente é esses mamelucos, que tem essa ancestralidade borum, que é muito presente na formação humana do Jequitinhonha. No Vale do Jequitinhonha, onde eu nasci, no Baixo Jequitinhonha especialmente, que é uma região muito específica do próprio Vale. Se o Vale é específico em Minas e no Brasil, o Baixo é diferente do Médio que é diferente do Alto.

Eu acho que a régua, o compasso e tudo, é no Médio, né? Que espraia assim pro resto do Vale, mas o Baixo ele tem… Talvez o Baixo seja o Santo Amaro do Vale do Jequitinhonha, sabe? Aquele Santo Amaro de Caetano e de Bethânia, que quando aquele povo fala você sabe o que eles tão falando, você se reconhece nele, você reconhece um trem. Quando acontece o Santo Amaro, ou através da Bethânia ou através do Caetano ou através do Sérgio Mendes… Enfim.

V: Então você veio do Baixo.

D: É, eu sou do Baixo Jequitinhonha, Almenara. Que é uma região assim, que a geografia é super diferente, é a região que ainda tem um restinho de Mata Atlântica. O Jequitinhonha, pouca gente sabe disso, é uma das poucas regiões do Brasil que tem os três biomas. Então ele produz um povo diferente. Que assim, no final das contas, quando a gente fica decupando os estudos, conversa com um, conversa com outro, a gente tem concluído nas mesas dos bares que o Jequitinhonha pode ser mesmo uma sociedade alternativa.

Com todos os problemas de mínguas, os problemas políticos, históricos. Mas nós temos ainda um modo, um modus vivendi de dentro, do Brasil de dentro. A gente ainda tem isso. E mesmo que a UFVJM, que é a Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri que foi ampliada no primeiro governo Lula, mesmo que ela esteja hoje sob intervenção do governo Bolsonaro, ela é produção de vida. Porque, veja bem, esse mestrado em Estudos Rurais que eu fiz, o que ele era? Qual era a vocação desse mestrado, lá em 2016?

Era falar do Brasil de dentro, com gente do Brasil de dentro, com temas do Brasil de dentro, em uma universidade do Brasil de dentro. Com quatorze pessoas que não eram só da região, mas tinha muita gente da região e tinha gente de Brasília, tinha gente do Rio de Janeiro. E essas quatorze pessoas, esses quatorze pesquisadores do mestrado estavam estudando o Vale do Jequitinhonha.

Então olha que coisa linda que esse primeiro governo Lula fez. Olha o pensamento na frente, moderno, maravilhoso, que o primeiro governo Lula teve, que é assim: nós vamos devolver à região, ao território, um pensamento sobre o território, reconhecimento sobre as pessoas do território. Bicho, isso é muito bacana, isso é muito revolucionário!

Então, veja bem, por que eu tô falando da UFVJM? Porque mesmo que ela esteja hoje sob intervenção, com uma certa tristeza, porque nós estamos lidando com isso no Brasil de um tempo pra cá, a gente ainda consegue produzir vida, porque a memória é vida, antes de tudo. Então nós estamos falando aqui dum trem que não vai morrer nem com essa intervenção.

Na hora que a gente conseguir retomar a vida, esse território tá lá, essa plataforma tá lá nos esperando pra gente poder continuar fazendo vida. E mesmo assim, ainda continuamos brechando, que a gente sempre brecha, né? Sempre.

Então eu venho desse lugar. Eu tô falando tudo isso pra localizar que Tum Tum Tum deu nisso. Então ele não foi meu, foi um pedido que eu aceitei; e eu não sabia o que significava aceitar esse pedido. E isso mexeu profundamente com a minha vida.

Eu lembro da mãe Luiza, que é a Preta Velha que eu fui cambona, falar assim:

“fia Déa, Tum Tum Tum quer fazer o serviço dele na sua vida e no mundo, pra isso você tem que terminar o disco.”

Por quê? Eu demorei 12 anos pra terminar o disco. Foi um processo longuíssimo.

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

V: Desde o pedido do Exu?

D: Isso, desde o pedido, ao pensamento, a reunião da pesquisa, ao fluxo, que é assim: não vou ficar correndo atrás de repertório, vai chegar. Então eu ganhei de presente Tupinambá, ganhei de presente Rainha.

V: Isso era uma coisa que eu queria te perguntar, de onde vieram as músicas.

D: Tupinambá foi um presente que eu ganhei da Boca do Acre.

Uma amiga minha bebia Daime na Boca do Acre com a madrinha Chica, famosa no Daime. Hoje ela mora em Londres, essa amiga. E eu lembro que uma vez ela veio visitar o Exu Zambarado e falou assim:

“Eu posso cantar um negócio pra você?”

Ela cantou Tupinambá. Aí eu falei assim:

“E eu posso ser a guardiã dessa canção?”

“Pois não, você pode ser a guardiã.”

Aí fizemos uma cerimônia pra me fazer guardiã dessa canção, Tupinambá, que é o hit! Por quê? Porque Taba e Kris tiveram a manha!

Kristoff Silva, que é o grande arranjador e pensador junto comigo nesse trabalho e Taba, que é o nosso convidado. Que depois que o Kris sai da cena, o Taba assume. Então o Kris não foi pra estrada, ele arranjou o disco, entregou e o Taba foi pra estrada. E na sequência a gente chamou o André.

Então Tum Tum Tum tem esse layout, eu e o Kris pensamos, concebemos. E ele arranja maravilhosamente bem. Porque Kristoff Silva é um gênio! Entrega pro Taba, um irmão, genial também. O Taba foi meu professor, foi uma universidade aberta de música que eu fiz. Essas universidades fora da escola, fora dos muros. Taba e André foram duas universidades abertas que eu fiz. Que me qualificaram como cantora, que ia dar na compositora.

Porque eu lembro que eles abriam o tempo e começavam a tocar e improvisar e eu tinha que me virar. Não tinha essa de você entra aqui e sai aqui, não. Eu tinha que me virar, a hora de entrar, a hora de sair. Então foi uma escola, não tem preço isso, foi uma escola da vida.

V: A produção desse disco, né?

D: É, a produção dele. E ele ficou muitos anos na estrada. Depois que ele foi feito, realmente abriu muitas portas. E uma dessas portas que ele abriu foi Egberto Gismonti, que chegou nele esse disco. E essa chegada do disco no coração do Egberto me fez ficar amiga do Egberto, que eu acho que é o grande presente que eu ganhei, do fato dele ter conhecido o disco. Não foi nem depois o que aconteceu, o que ele fala do disco, a posição que ele tem sobre o disco… É o disco me proporcionar conhecer o Egberto.

E, assim, o Egberto virou uma espécie de guia. Um cara que eu escutava pouco, conhecia pouco a música. Depois eu fui mergulhar na música, mas, assim, de quem eu fui gostando de conversar. Eu gosto do pensamento de Egberto, Egberto é um mestre, ele é um índio.

Então, o Egberto foi virando meu amigo, apresentou o disco pra Biscoito Fino, que fez uma reedição e eu tornei a viajar pelo Brasil com o disco. Então foi um disco muito importante, que não fui eu exatamente que concebi. Eu acho que a primeira concepção de Tum Tum Tum é do Exu Zambarado. Eu fui um veículo, esse veículo catou o Kristoff Silva, que arranjou e que me apresentou o Taba. [Tabajara Belo]

Aí eu e o Taba um dia pensamos: vamos convidar mais um violonista. Vamos fazer tipo assim, dois violões e às vezes percussão ou às vezes só dois violões e vozes. E chamamos o André Siqueira. E aí, bicho, o meu maior prazer do André ter vindo pro trabalho, grande músico, também genial, foi que a amizade entre ele e o Taba é absurda. Eu promovi esse encontro, fico muito feliz, os dois se amam musicalmente, pessoalmente. Eles colaboram entre si. Então eu fico tão feliz de ter promovido isso. E pro trabalho foi muito lindo, porque aí, sim, aconteceu a estrada de Tum Tum Tum.

Então a fase dois de Tum Tum Tum foi minha estrada com o Taba e o André. Porque a gente viajou muito, a gente fez muito por aí esse disco. Ao vivo, ao vivaço! Às vezes a música vinha e abraçava a gente, às vezes não vinha de jeito nenhum. Então foi uma escola, Tum Tum Tum foi uma universidade em todos os sentidos, de produção, de pensamento, de concepção, de execução na estrada. É maravilhoso.

V: É como o Egberto disse, né? Se espremer sai vida, sai alegria.

D: Exato. É impressionante.

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

V: E onde que você conheceu o Zambarado?

D:  Um dia eu tava vendo a família N’Diaye Rose no FAN, Festival de Arte Negra de Belo Horizonte. A família N’Diaye Rose é do Senegal, uma família clássica de percussionistas conhecidos no mundo inteiro. Fazedores de tambores de tronco de árvore e grandes percussionistas. Enfim, eu tava nesse show na Praça da Estação e encontrei uma amiga chamada Alba, que hoje mora em Almenara, foi secretária de cultura de Almenara, minha cidade. E ela estava indo pra uma sessão com o Exu Zambarado.

“Vamos Dedéia!?”

“Exu? Quem é exu? Mas vamos.”

Então, cheguei lá, tinha umas trinta, quarenta pessoas, e ele estava conversando com uma menina de sete anos. Inclusive esse diálogo está na tese. Diálogo mais lindo que eu já vi na minha vida. Diálogo sobre apego e desapego. Aquilo chamou tanto a minha atenção, eu nunca tinha visto um adulto tratar uma criança com aquele nível de respeito, conversando um assunto extremamente filosófico, pura filosofia.

“Mas Pazinha, esse negócio que você ganhou aí, hein? Você reparou que antes de você ganhar você não tinha esse negócio?”

“Reparei zambarado.”

“Pazinha, e se a vida te levar a um lugar que você não tenha mais isso que você ganhou? Que agora você tem.”

“Ah zambarado, você é tão esquisito. Olha, eu não sei filosofar não, tá? Eu sou criança, zambarado.”

E aí vai esse assunto, muito lindo. Eu reconstituí esse diálogo, maravilhoso. E não só atencioso, não, ela fazia uma pergunta e ele dava tratos à bola, não interessava se tinha quarenta, cinquenta ou sete anos. Ele foi conversar com aquela pessoa, conversar com aquele ser, né? Eu achei aquilo fantástico.

“Vou voltar, gostei muito desse tal de exu, viu”. Quinta-feira que vem eu volto. Só que nesse meio tempo eu tive um sonho com Chico César cantando Folia de Príncipe, que parece que é uma canção que ele fez pro pai e pra mãe dele, que eram foliões de reis.

Sonhei com Chico César, na sequência com Chico Lobo, explicando o valor das cores das fitas de Santo Reis. Não entendi o sonho, cheguei pra Zambarado na próxima quinta, falei: “Zambarado, posso falar?”, “Pode”. Contei o sonho pra ele, falou assim:

“Olha, tem muito tempo que eu tô esperando um maldito pássaro entrar por essa porta, trazendo esse augúrio que você me trouxe. Não sei porque o poder te escolheu, problema do poder. A partir de agora você é bemtevi, seja bem-vinda a esse trabalho.”

Então foi assim que eu o conheci e fui desenvolvendo um trabalho com ele.

V: E essa relação chegou no seu mestrado também?

D: Meu mestrado foi sobre Seu João do Lino, né? João do Lino Mar, capitão dos Catopês de Bocaiúva. Meu mestrado é uma cosmologia sobre ele. Ele dialogando com Deleuze. Porém, Zambarado também cantou essa pedra, um pouco antes dele ir embora, ele falou assim:

“bemtevi, nunca se esqueça do mestre dos espelhos.”

Que era Seu João do Lino. Por que? Os chapéus dos Catopês são cheios de espelhinhos. E eu só fui lembrar disso quando eu tava escrevendo o texto do João. Tem dobra do tempo aí, né? O cara canta uma pedra do mestrado, no mestrado você lembra dele de novo e resolve isso daí no doutorado. Tem várias brechinhas sendo feitas aí. Então tem esse tipo de ligação, meio quântica. Tá tudo emaranhado acontecendo agora.

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

V: Bom, e então depois de Tum Tum Tum vem Serendipity, seu primeiro trabalho autoral.

D: Sim, ele é fruto de um exercício que eu fazia quando o Zambarado estava aí, chamava exercício de letramento poético para um bemtevi. Foi um trem que ele inventou. Ele era bem desse grupo dos experimentadores, ele gostava de experimentos.

A gente fazia esse exercício de letramento poético para um bemtevi, que é assim, ele falava uma frase e eu tinha que continuar, aí a gente ia concluindo o texto poético.  Então, por exemplo, Castiça, que é uma das canções de Serendipity, ele fala assim: “um dia eu vaguei vestido apenas de sol” e eu tive que continuar e botei melodia. Então Serendipity, ele é fruto de uma habilidade desse Exu, né? Vou deixar pra ela um jogo de memória e ela vai fazer algo com isso. Ele era grande, esse exu!

Ele instigou, deu o start. É isso que eles adoram, eles sopram você. E aí você venta aquele sopro se você quiser, se não quiser também, joga no lixo. Eles falam isso: “faça bom uso ou jogue no lixo”. E aí ficou Serendipity.

V: Eu sinto que Serendipity tem uma mensagem de muita paz, nas próprias melodias mesmo. E ele ainda começa com Água Serenada, que é maravilhoso, “fiquei em paz, serenei”, e termina com Serendipity, que pra mim é o auge, “capte o vigor das escolhas felizes / opte pelo pote no fim do arco íris”.

D: Água Serenada, por exemplo, foi minha mãe que achou nos escritos do meu avô. O primeiro verso é dele. “Eu não canto do jeito que eu já cantei / bebi água serenada e até a voz eu mudei”. Isso é dele. Eu continuei os versos e botei uma melodia. Mais brechas, né? Meu avô, minha mãe, eu, Zambarado, Serendipity.

É um disco articulado, tem música pra Tavinho Moura, tem música pra Egberto Gismonti. Zambarado coordenou um fluxo de exercícios, fazer poesia a partir de algo. Por que você faz poesia? Por que que você faz versos poéticos? Como é que nasce o texto poético? Nasce de um exercício de um exu? Nasce de uma admiração que você tem por alguém? Onde nasce isso, né?

V: E em Serendipity que você assume a composição.

D: O exercício de letramento poético para um bemtevi já era o Exu querendo que eu chegasse nessa atitude, né? Vou compor. Entre esse letramento e a composição tem o Dércio Marques, que me entregou uma letra e falou assim, “põe uma melodia e faz uma canção”. “Dércio, eu não sou compositora não, fofo”. Ele falou assim:

“Eu vou te ensinar. Já que você tá aí na estrada, memo, vou te ensinar. Fica bem quietinha que a música vem. Toda vez que você fizer isso, ela vem. E você vai virar uma compositora.”

Deixou uma letra quilométrica lá em casa, um texto de quatro páginas, falando sobre o amor. “Transforme isso aí numa letra e põe uma melodia”. Todo dia ele ligava, “Pôs? Já pode mostrar? Cadê?”.

Aí realmente nasceu Cirandinha do Amor, fiz uma letra e não gravei ainda, vou gravar. Que é linda, linda, linda, linda. Começa com uma frase que ele falava quando ele ia buscar os filhos dele na escola.

“Os Meus amores estão no pólen, os meus amores estão no ar, os meus amores estão na rede, os meus amores vão passar.”

É linda, linda. Tabajara uma vez arranjou, a gente cantou isso uma vez só. Enfim, o Dércio arrematou. Quando ele ouviu Serendipity, ele me ligou, falou assim:

“Minha filha, você é a trovante sinistra do Jequitinhonha. Você é a Adriana Calcanhoto do Jequitinhonha.”

Porque ele amava a Adriana Calcanhoto, o modo dela escrever, o modo dela cantar.

“Então tenha paciência e saiba que talvez você nunca seja reconhecida no lugar aonde você nasceu. Porque você não se parece com as coisas que o lugar que você nasceu produz.”

Isso eu achei muito legal.

“Então saiba, Serendipity é primo de Segredos Vegetais.”

Aí acabou. Que eu acho o melhor disco que já foi feito na vida, né? Então, tchau. Ele falou isso.

V: E onde você conheceu o Dércio?

D: Eu conheci o Dércio muitos anos atrás em Almenara, ele cantando O Peão na Amarração. Eu era muito novinha. Aí, anos depois que eu fiquei amiga dele. Conheci ele no auge da beleza, ele era um homem lindo. No auge da voz, cantando uma das músicas mais emblemáticas da obra do Elomar.

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

V: E aí teve o álbum Flor do Jequi também…

D: Teve Flor do Jequi, com Paulo Bellinati. Revisitando temas do Vale do Jequitinhonha e arranjado pelo Paulo Bellinati. Que foi um processo também muito interessante porque eu fui para São Paulo. E o Bellinati… Eu cantei muito pra ele ver… Pra ele saber como é que era a pegada do meu canto, né? Como que era aquela cantora. Então foi interessante isso.

Também era um repertório muito caro pra mim, que eu tava regravando cantigas que eu aprendi com o Zé Mulatinho, que era outro Exu de quem eu tava participando de um trabalho na época. O ponto de Exu, que é uma entidade de força, ficou quase um acalanto, tipo assim, quase uma balada. Então isso me chama muita atenção no disco, como que a gente conseguiu extrair doçura de uma entidade tão forte como é Exu, né?           

Gravei Gonzaga Medeiros, que é meu primeiro ídolo, do Vale do Jequitinhonha. Porque assim, meus ídolos eram autóctones, eram pessoas do meu lugar. Meus primeiros ídolos: Gonzaga Medeiros, Foka Sena, Nildon Sena, Lima Júnior, gente pouco conhecida, assim como eu.

Enfim, então Flor do Jequi, Egberto acha o melhor disco. Quer dizer, realmente ele gosta mais de Tum Tum Tum, mas ele fala que no Flor do Jequi é onde eu tô mais madura como cantora. Uma voz mais pronta, mais disponível praquelas canções.

V: E depois vem o Líricas, que é um portal da mulher selvagem?

D: O Líricas já é uma mulher bem madura. Separada, criando um filho sozinha, coisas que são assim, bem do mundo feminino.

V: É um álbum bem grande, com várias participações, né? Tanto mulheres quanto homens.

D: Foi um disco que eu pensei assim, em fazer uma ode à voz humana. Porque eu acho que a voz humana é um território sonoro muito rico. Que é isso que os indígenas falam, né? É bem indígena isso, o som ele em si já é uma produção de pensamento, de conhecimento. Isso os guaranis falam, os yanomami falam, várias nações, os krenaks. O som pensa.

Então eu queria que tivesse diversas vozes e que a gente ficasse parado só ouvindo aquela voz. Como que Mônica canta… Como que Ná canta… Como que Egberto fala… Eu queria muito Egberto falando nesse disco. Ele falou assim, “não sei”. Eu falei, “não, você pode gravar na sua cozinha, no seu celular, tranquilo”. Aí ele topou falar o texto que a Mônica canta, né? Dona Música, que nasceu de um processo parecido com o do Zambarado, de exercícios de letramento poético para um bemtevi.

O André me mandou um mote: “esse tambor de corda, cardia de arsis e thesis, tornou-se refúgio, verteu-se cordão…”. Me mandou esse mote, aí eu fiz pra cima e continuei. Foi um trabalho mais sofisticado, porque o Zambarado começava e eu continuava, tinha uma cronologia ali. André não, ele mandou esse mote, eu falei assim, não vou começar por esse mote, vou botar ele no meio.

V: Pois é, queria saber também desse processo mais artesanal que tem no Líricas, de gravação e produção do disco.

D: Isso. Aí eu já tava desiludida, na acepção mais metafísica da palavra mesmo, de desilusão não como uma coisa negativa em sua vida, mas um portal que se atravessa. Seu corpo encarnado atravessa um portal de luz mesmo, um portal de autoconhecimento, um portal de energia que é essa desilusão, sabe?

Eu tava desiludida de um modo de produzir, de um modo de apresentar a produção, de um modo de pensar, de um modo de tudo. Porque eu tava no meio do mestrado e o mestrado mexeu muito comigo. Eu já tava mergulhada no Deleuze.

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

V: Como foi essa relação com o mestrado?

D: Eu entrei na academia com uma sorte, que eu acho que eu tive uma sorte, mas também tinha uma pulsão minha que era assim: eu quero conseguir ser eu aqui dentro. Eu quero ver se é possível continuar sendo eu aqui dentro. Eu quero poder ser feliz aqui. Quero poder produzir vida aqui, pensamento aqui, conhecimento aqui e alegria aqui. Eu quero poder continuar sendo artista aqui. Por que aqui é tão diferente dos palcos? Eram as minhas perguntas. Por que aqui tem que ser diferente de quando você apresenta um repertório no palco?

E aí eu fui fazer esse mestrado em Estudos Rurais e o primeiro conceito com o qual eu entrei em contato foi circuito curto, que é um conceito da sociologia rural, um conceito muito antigo da sociologia rural. Eu estiquei um pouco mais esse conceito, que é assim: diminuir o desejo de chegar tão longe; agir grande e longe, mas no entorno.

Então, assim, circuito curto é esse conceito, como é que eu vou usar ele agora? Com os meus colegas, com os meus professores, no meu escrito, na minha fala, na minha intervenção na sala de aula. Depois, como é que eu vou usar o circuito curto na defesa, na qualificação, dentro da própria universidade. Como é que eu vou usar esse conceito aqui na vida, no mundo?

Na sequência veio parar no meu colo, dentre várias filosofias, a do Deleuze. Eu poderia ter ido por outro caminho, poderia, por exemplo, ir pelo caminho decolonial clássico, que é estudar os filósofos da América Latina. Eu tomei outro rumo. Quando eu conheci o Deleuze eu entendi que eu poderia meter a mão naquela cumbuca e fazer aquela cumbuca ser nossa. Botar aquela cumbuca conversando com a cumbuca do João do Lino Mar, que era um cara de segundo ano primário, cheio de filosofia! Que era um filósofo, mas que não era um filósofo de academia, que não tinha nascido na França.

Então eu queria muito que ele conversasse com o filósofo da academia que tinha nascido na França. E o Deleuze, ele tem uma importância, ao meu ver, que é assim, o Deleuze, além do pensamento dele, do pensamento que ele consegue fazer, ele é um cara que tem o despudor de agenciar outras filosofias malditas e/ou pouco visitadas. Que ninguém tava falando sobre elas.

Então ele resgata Espinosa, ele resgata Nietzsche, resgata Étienne Souriau, ele resgata Henri Bergson! Que é considerado, talvez, um dos primeiros filósofos que está falando da mística que envolve a física quântica. Porque a física é a filosofia sentada numa cadeira nobre da academia. É só isso que é a física.

Por que a gente não gosta de física? Porque a gente tem péssimos professores, que não instigam a gente. Por que que a gente tem problema com matemática? Porque a gente tem péssimos professores de matemática. Matemática é poesia pura! Porque uma ciência que se arvora a dizer que dois mais dois são quatro, diante de uma existência tão imponderável, de uma terra tão lisérgica, de uma vida tão imanente, ela é poesia.

E os matemáticos, os físicos, os químicos, o povo das chamadas ciências duras, é o povo mais disruptivo em termos metodológicos. A revolução do método não é das ciências humanas, as ciências humanas são envergonhadas, medrosas. Por quê? Porque elas têm que provar a priori e ad aeternum que elas são boas. As ciências sociais e humanas tão, segundo Giorgio Agamben, nesse lugar até hoje: o lugar da vergonha de falar de magia, de amor, de intimidade, de poesia. De por isso na conta das pesquisas.

Você pergunta pro matemático, como é que você chegou nessa fórmula? Ele fala assim, “no meio da noite eu botei uma música e cheguei nela”. E esse “Eu cheguei nela” é que vai dar suporte a uma teoria da física, por exemplo. Da física quântica, da mecânica quântica, da química, de quem quiser. Esse fechamento da forma matemática, ela nunca é racional. Você pode conversar com qualquer matemático.

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

Então, eu tava nesse ponto. Quando o Líricas estava sendo gestado, eu estava de saco cheio de coisas prontas, de fórmulas prontas. Ela tem que ser torcida, retorcida. Ela pode chegar na academia e começar desde os corredores a ser artista. Eu sou artista, vamos pensar a partir desse lugar aqui, né? Desse devir aqui.

Aí eu falei assim, bom, então vamos bancar esse lugar da arte. Aí eu fui correr atrás disso, de matemático, de físico, de químico, porque eles defendem esse modo. Deleuze também defende. Antonin Artaud também defende. Bergson também defende. Bergson começa Matéria e Memória, que é o livro mais importante dele, assim: então tá, vamos estabelecer algumas regrinhas antes da leitura. Regra número um, aborde esse livro como se você nada soubesse.

É uma frase simples, mas ela quer dizer muito. Ela é um conceito muito importante. Disse Étienne Souriau: faça infância aqui nesse livro, deixa esse livro te tomar a partir do que você não sabe, que é o que Deleuze sugere ser o mantra do bom filósofo. O Deleuze também diz: deixa o livro criar ligações elétricas com o seu corpo e nunca esqueça que mente, coração, pulmão, imaginação, é tudo órgão do corpo.

Pra você chegar no corpo sem órgãos, que é o conceito mais temido do Deleuze, você tem que reconhecer que tudo é órgão. A pele é um grande órgão, o pulmão é um órgão, a imaginação é um órgão, a sinapse feita pelo cérebro, é tudo órgão. Esse órgão se chama corpo. Mente e corpo, não existe isso. Isso é envenenamento da Grécia. Você tem que ir lá na Grécia e falar: “Grécia, ó, um beijo. Tchau, Grécia”. Félix Guattari diz em sua última entrevista, antes de morrer, “refazer o elo entre a cabeça e o corpo e entre o corpo e o mundo”.

Enfim, eu fui ocupando esse lugar do pensamento imanente. Do pensamento que Espinosa consegue sistematizar, um pensamento muito anterior a ele, que era pensamento de mulher. Porque um dia eu fui numa palestra de um químico na UNESP e alguém falou assim: os alquimistas estão chegando.

“Os alquimistas? Não, alquimia é uma ciência feminina. São as alquimistas que estão chegando!”

O Jorge viu o galo cantar mas não soube onde ele cantou, porque são as alquimistas! Alquimia é uma ciência que começou, nasceu, foi atravessada pelos corpos femininos. Isso da boca de um homem, químico da UNESP. Eu achei lindo, porque assim, a gente tá fazendo esse pensamento, que foi sistematizado por um homem híbrido, que a gente sabe que Espinosa foi um homem híbrido. Ele inclusive foi perseguido por ser um homem híbrido e ele falou explicitamente, na Ética que é o livro mais importante dele:

“Este livro não é meu, isso é fruto de muitas cabeças pensantes, de muitas mãos escrivãs. Eu sou apenas o cara que amarrou o laço final.”

Que ele é foda mesmo. Deleuze sem Espinosa não é nada. Tudo que vem depois de Espinosa, sem Espinosa não é nada. O Espinosa é um filósofo fundante, porque ele representa Trismegisto, que não está na academia nem nunca vai entrar. Ele representa o pensamento imanente de Hermes Trismegisto, dessas alquimistas.

V: Pensamento imanente que você fala é…

D: Não acreditar na separação entre cabeça e corpo, entre o corpo e o mundo. Corpo é poder. É tudo imanente, não tem nada transcendente. Não tem nada pra depois de amanhã. É tudo endógeno e agora. É tudo agora e devir. Devir é você fazer parente com seu telefone, fazer parente com seu gravador, fazer parente com o chão, fazer parente com o ar, fazer parente com a árvore, fazer parente com os rios, com as nuvens…

Agora, transcendência é empurrar o agora mais pra lá. Imanente é agora. Não é assim: amanhã eu vou transcender minha mágoa e vou virar puro amor. Eu sou o amor agora. Eu sou fluxo de vida, pura corrente de consciência sem sujeito, aqui, agora, nesse momento. Consciência sem sujeito, a gente vai encontrar num tanto de pensamento. Espinosa, Deleuze, Bergson, Zambarado. Zambarado gostava disso. Ressonando eles todos, seria algo como “uma duração qualitativa de uma consciência sem um eu, uma certa impessoalidade pré-reflexiva”.

Zambarado gostava de uma imagem:

“Consciência, Bemtevi, é um pedaço pequeno de seda pura pendurado num varal sem hastes sob a ação de um furacão.”

Isso é pensamento imanente pra Espinosa. Pra Espinosa, tudo é natureza. É um pensamento oriental, de cosmologia ancestral dos povos originários ao redor do planeta.

V: Você inclusive tem feito bastante essa ligação entre ciência e magia.

D: Tenho. Porque magia pra mim não é fenômeno. Magia é você desembolar a vida onde ela tá embolada. Isso é magia. Isso é fazer magia. Milagre é outra coisa, milagre já é outra palavra que a gente poderia lavar… É uma palavra muito envenenada pela religião. Geralmente o envenenamento das palavras, da linguagem, começa com a teologia. Por isso que eu gosto de Agamben, porque ele vai nessa fonte teológica para lavar palavras. Para destituir o veneno dessas palavras.

Demônio, por exemplo. É uma palavra envenenada, porque ela vem de daimon que não tem nada a ver com isso que as igrejas nos venderam sobre o demônio. Que que é daimon? Pulsão de vida no corpo. Sabedoria de vida no corpo.

V: E os exus também são relacionados ao demônio…

D: São! E, veja, eles são puro daimon! Movimento, vida ininterrupta, não para nunca, só vai desembolando, isso é magia pura. Daimon é pura magia. Então eu acredito nessa magia.

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

Então, Líricas é fruto dessa cabeça grande aí, né? O que eu tava pensando e nessa idade, cinquenta anos realmente mexe muito com a gente. Você acabar de criar um filho sozinho também, mexe muito. Você realmente ficar de cara com o mundo patriarcal. O mundo é patriarcal, o mundo é machista! Então isso tudo é um negócio que desconfigura seu corpo e reconfigura em outro lugar.

E esse lugar é um lugar de fronteira, meu lugar é um lugar de fronteira. Eu Bemtevi, pássara, fui virando cogumelo, coisa que eu nunca achei que eu ia ser. Porque quando o Zambarado me deu esse apelido de pássaro, ele ainda falou, “olha bemtevi, você não é cogumelo não, tá? Você é pássaro. Você é um bemtevi cujo desejo é somente voar daqui prali, circuito curto”.

Então agora que eu tô entendendo que mesmo nesse circuito curto eu estou fazendo um trabalho de cogumelo, que é aonde o vento leva, você vai. Então eu tenho assumido esse lugar da ínfima rachadura ir alterando outras rachaduras mais ínfimas ainda, radicalizando a encarnação. Como diz o Ailton Krenak, corpo taru andé, radicalmente vivo. Vai alterando com o vento, num tempo-espaço alterado. E acho que com o meu pensamento produzido e cantado e encantado, eu tenho conseguido.

Falar o nome de Exu em alguns lugares pra mim, tem sido muito caro. Pessoas que nunca ouviram falar essa palavra na vida, Exu. Eu gosto de entrar na universidade e falar assim, vou cantar pra Exu, vou cantar pra Tranca Ruas, o doutor dos doutores. Já acho um presente maravilhoso poder fazer isso, que foi isso que eu fiz nessa gira nordestina que antecedeu o estágio de doutorado sanduíche que eu fui fazer em Portugal. Eu fui derramando conceito no chão das oito cidades por onde eu passei (Juazeiro do Norte, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Petrolina, Jacobina e Coité), derramando conceito nos territórios, né? E colhendo várias respostas.

Tinha públicos mais fáceis, públicos mais difíceis, mas o que mais me chamou atenção foi uma cozinheira em Petrolina, que sentou na primeira fileira do show e que foi uma das poucas pessoas que vieram conversar comigo no final e falou assim: “olha, não entendi tudo, mas muita coisa ficou dentro do meu corpo”.

Então isso eu achei um presente sem precedentes. Poder tocar um corpo daquele, não porque ela é cozinheira, mas poder tocar um corpo que tem esse nível telúrico com a terra. Um corpo que não passou pela academia e que tem esse nível de sensibilidade extrema. Sensibilidade não é uma coisa que o livro te dá, que a academia te dá. O corpo te dá isso.

É isso que fala o Calunga da Calunga Grande. A tese de Calunga é isso: intuição é um grau de amizade que o corpo faz com a terra. A terra lança uma flecha, se o corpo tá no grau x de amizade, ele recebe a flecha no corpo e tem uma intuição e aumenta a realidade de outras sensibilidades, produzindo conhecimento mesmo tendo o primeiro ano primário.

Por que? Pra produzir conhecimento você precisa de um corpo. Produzir conhecimento é de quem tem corpo! De um corpo encarnado no mundo.

“Seu João do Lino, como é que o senhor conseguiu chegar nessa conclusão?”

“Não, conhecimento é assim, você abre um tempo, vai lá, cata o conhecimento.”

Olha o grau de sabedoria, de profundidade filosófica desse corpo. Quem deu isso a ele? Eu ouso dizer que é um nível de atenção que ele desenvolveu com aquilo que ele chamou de Nossa Senhora do Rosário. Um devir-rosário. Nossa Senhora do Rosário foi um disparador, um dispositivo, um devir… Pra Agamben o que que é magia? Intimidade construída. Isso é mágico. A única coisa mágica que Agamben reconhece é a intimidade construída.

Por que que João do Lino era mágico? Porque ele construiu intimidade com esse tipo de conhecimento, que aquele dispositivo, aquele disparador atravessou o corpo dele e ele prestou atenção, sacou, catou. A flecha atingiu e disparou o conhecimento.

“Seu João do Lino eu queria cantar essa loa.”

“Não, ano que vem tem mais, você vem. Quando minha boca abrir, você fica prestando atenção na minha boca. No outro ano você vai cantar tudinho.”

E assim foi. No quarto ano tá lá eu, cantando tudo. Ele falou assim: “olha, você não sabe tudo que você está cantando não, mas sua boca não para, isso é bom”. Bicho, isso é conhecimento, isso é método. Ele estava me dando aula de método!

Déa Trancoso por Geovana Jardim, em San-Jean-Pied-de-Port/França.

Enfim, eu gosto dessa parte, se a gente fosse falar astrologicamente, eu gosto dessa coisa uraniana. Eu tenho um urano no meio do céu, sou uma figura uraniana, eu gosto de romper.

Já ocupei vários territórios que eu jamais achei que eu ia ocupar. Gosto muito de ter chegado aos cinquenta anos, quase fazendo sessenta agora, daqui dois anos, advogando nessa brechinha cuja pretensão filosófica é encostar a universidade na vida mesma. Botando pensamento arte, pensamento cantado. Produzir pensamento é uma arte. Isso foi a gira nordestina, cantar e encantar os pensamentos, os conceitos. Jogar os conceitos na caixa do peito das pessoas comuns como eu.

V: Maravilha. Déa, pra finalizar, eu gostaria só que você comentasse sobre essa ideia do catimbó zen, que inclusive é o nome de uma das músicas do Líricas, e que faz essa junção de uma filosofia oriental com uma tradição daqui.

D: Catimbó zen seria, então, como uma usina de tornar corpos radicalmente vivos num cotidiano heterogêneo reavivador da graça capaz de refazer o elo entre o humano e o mundo, capaz de colar novamente a cabeça no corpo, capaz de assumir os desafios da junta híbrida negra, índigena, branca e e e e/com com com que nos compõe numa singularidade sertaneza de um brasil profundo.

O catimbó zen é, também, a movimentação artística de pedir a quem tem para dar: a terra e os seres encantados da terra. Essa movimentação artística de que fala Zambarado não pertence a um sujeito artístico que movimenta um objeto ou uma obra artística. Essa movimentação pertence à carnação humana.

Toda e qualquer.

E, até mesmo, e muitas vezes, inumana.

Nesse ponto, Zambarado é espinosano, ressonando, também, Deleuze e Nietzsche: não há em nós uma inteligência especial desligada da natureza. Somos corpo da terra e podemos instaurar uma alma no corpo, através, por exemplo, dessa usina que ele chama de catimbó zen, que nada mais é do que a compreensão de que clínica e educação são indissociáveis. Ao final, e ao cabo, o que o exu quer é produzir vida e alegria ininterruptamente e, daí, mais vida e alegria, sempre.

Então catimbó zen é Exu movimentando a vida, o mundo, os corpos. Zambarado era totalmente deleuziano, o movimento era a base do trabalho dele. Eu fiz inúmeros movimentos com ele, movimentos de por o couro à prova, que ele chamava de coragem. Coragem é isso, botar o couro… Fazer o movimento, estar em movimento, experimentando na experiência. Além da experiência, tem o experimentando, o gerúndio, o experimento dentro da experiência.

Então, nove luas sem trepar, vamos ver o que que acontece. Venda tudo que você tem, fique dois anos sem casa, vamos ver o que que acontece. Vários. Muitos. Pedir perdão das dívidas para os seus devedores.

“Ah, zambarado, tá constrangedor.”

“O constrangimento faz parte do perdão.”

Coisa de Exu, trabalho de Exu.

O que eu penso hoje, assim, o que eu fico vendo, ainda não conclui isso, é que o Exu tem o mesmo interesse de Deleuze, que tinha os mesmos interesses do oriente. Minha professora de estágio sanduíche, Ana Godinho Gil, diz que o oriente já respondeu várias demandas deleuzeanas… Quem sabe, um dia, cheguemos ao corpo sem órgãos. Abordando a vida a partir deste lugar, do lugar de um corpo sem órgãos, de uma consciência sem sujeito. Nesse lugar desconhecido, nesse lugar impessoal, dessa consciência sem sujeito, que era o que ele falava. Isso é frase de Zambarado, hein?

“Consciência sem sujeito”, é Maravilhoso!

 

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*San-Jean-Pied-de-Port é uma pequena comuna da província da Baixa Navarra, região basca francesa dos Pirenéus Atlânticos, fronteira com a Espanha, que Zambarado dizia lembrar o Vale do Jequitinhonha. Nos tempos atuais, Pied-de-Port, “pé da porta” ou “em pé no porto”– em tradução livre do próprio Zambarado – é , também, entrada alternativa para o “Caminho de Santiago”. Zambarado me disse, em 1997: “Bemtevi, vá ao pé da porta, peça um marc [a cachaça francesa], dê um gole e jogue o resto para trás, sem olhar para trás, e se lembre de mim na comuna encantada, para intensificar exu”. Em 2022, numa dobra do tempo, como um exercício do estágio de doutorado sanduíche, pelo Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa/Portugal, sob a orientação da professora Ana Godinho Gil, cumpri a dica. Passei 36 horas em  Pied-de-Port fazendo ressonâncias entre os exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande e Etiénne Souriau e David Lapoujade e Gilles Deleuze e Félix Guattari. Índices heterogêneos instaurados em modos de existências nômades que perguntam por onde ver, o que ouvir, como refazer o elo entre a cabeça e o corpo e entre o corpo e o mundo. Achei que Pied-de-Port seria, então, um bom termo para nomear o sumário de uma escritura exuniana de uma tese de Doutorado em Educação, intitulada “Catimbó Zen: existências compartilhadas – linhas de produção de clínica e educação entre uma filha da folha e os exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande”, a ser defendida em março de 2024 pela Unicamp, sob orientação da professora Alik Wunder.

Veja o momento da dica sendo cumprida aqui.

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