O sertão de João Guimarães Rosa é um mundo que só existe como linguagem. Escrito em língua estranha, costuma assombrar leitores, que se queixam por não compreendê-lo de todo ou apenas de forma presumida e bastante duvidosa. Uma dificuldade que afugenta incautos e desconcerta até mesmo o mais miguilim de seus leitores, o tradutor, que busca reescrever o texto por inteiro em outra língua, com os olhos colados em cada palavra, imerso numa leitura atenta e apaixonada.
Penetrar nesta linguagem obscura e nas razões de sua pena é o mote da empreita deste ensaio.:1 Seu ponto de partida: o diálogo de Guimarães Rosa com Edoardo Bizzarri, tradutor italiano de Corpo de baile, acerca de uma única página “intraduzível” desse imenso livro de novelas.2
Bizzarri começou a traduzir Corpo de baile em junho de 1963. Durante cerca de dez meses, através de inúmeras cartas trocadas com o escritor, acompanhamos passo a passo o árduo percurso de seu trabalho. A tarefa de transmitir o sertão de Rosa aos “degenerados descendentes do pai Dante” é vivida por Bizzarri como uma aventura amorosa com o texto, que muitas vezes o leva a penar no leito de Procusto. É diante das dificuldades encontradas que ele pede “socorro” ou “alívio” ao autor, consultando-o acerca do sentido de passagens herméticas, palavras e expressões escorregadias ou completamente desconhecidas.3 À maneira de um oráculo, as respostas de Rosa são bastante ambíguas. Explicitando aqui e ali a sua poética, suas cartas acabam por compor um imenso glossário comentado, repleto de indagações, que bem poderia ser publicado como um apêndice ao Corpo de baile, para o maior deleite, alívio ou assombro de seus leitores.
Após seis meses de trabalho intenso, a tradução avança de vento em popa e o tradutor já vislumbra a terra firme, quando uma súbita tormenta o abandona em alto mar. No meio da tradução de “Buriti”, a última das sete novelas que compõem o Corpo de baile, Bizzarri “esbarra” e “empaca” numa página intraduzível, que “derrota todos os seus brios de tradutor”:
Meu caro Guimarães Rosa, Tinha que acontecer. E aconteceu, mesmo. Já estava galopando no “Buriti”, animadíssimo e prestes a cantar, com o tio Ariosto, “Or, se mi mostra la mia carta il vero, non è lontano a discoprirsi il porto”, quando, de repente, esbarrei, empaquei. Foi na pág. 694. Passei um dia de profundo descordo, inerte. Voltei à carga, no dia seguinte, esperando reestabelecer a sintonia. Nada feito. Para não parar definitivamente, o único jeito foi deixar de lado a diaba da página; o que fiz, retomando meu caminho na 695; e pedir socorro, para pegar a môrma; o que faço; mais uma vez aproveitando da bondade e paciência do Amigo. (“Carta de Bizzarri a Guimarães Rosa”, São Paulo, 30/11/1963. p. 72. Negritos meus).
A leitura dessa carta não deixa de causar espanto e desperta intensa curiosidade: que página bizarra é essa, num livro imenso de 823 páginas, bravamente percorridas por seu tradutor? O que faz com que sua linguagem desponte como uma barreira intransponível?
A resposta do autor, dez dias depois do impasse, não é menos intrigante, pois invoca Dante para penetrar naquela página diabólica. Como uma prévia à longa explicação que se segue, a carta começa com duas citações do “Inferno”. A primeira nos conduz ao Quarto Canto da Divina Comédia, onde vemos Dante e Virgílio percorrendo o limbo luminoso do Primeiro Círculo Infernal:
Meu caro Bizzarri, “Io non posso ritrar di tutti a pieno, peró che sì mi caccia il lungo tema, che molte volte al fatto il dir vien meno.” (Inf. IV, 145-147) (“Carta de Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri”, Rio de Janeiro, 10/XII/63. p. 78).4
Extasiado diante dos mais eminentes poetas e filósofos – Homero, Horácio, Ovídio, Lucano, Aristóteles, Heráclito, Tales, Sócrates, Platão, Averróis… –, Dante lamenta não poder reproduzir plenamente a sua viagem, pois longo e sem termo é o assunto que se abre, e nem sempre a palavra é capaz de expressar tudo que há, tudo que a mente grava e dita.
A segunda citação provém do Sétimo Canto, das trevas profundas e tenebrosas do Quarto Círculo Infernal, onde Dante e Virgílio são interpelados por Plutão, lobo demoníaco que tenta barrar-lhes a passagem com palavras iradas:
“Papè Satàn, papè Satàn aleppe!” (Inf. VII, 1) (“Carta de Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri”, Rio de Janeiro, 10/XII/63. p. 78).
Proferido numa língua incompreensível, muito já foi escrito sobre este verso, que parece figurar a própria linguagem do demônio. Os que se arriscam a interpretá-la, vêem nela palavras de desafio – “Aqui reina Satanás! Ousas entrar?” –, baseando-se na própria resposta de Virgílio, que rechaça Plutão com veemência e prossegue viagem, mostrando a Dante que não teme a palavra do demo.
Se a invocação a Dante é pertinente pela própria língua de destino da tradução – além de Bizzarri ser um estudioso de Dante e de sua correspondência com Rosa estar recheada de passagens da Divina comédia –, também os versos selecionados compõem um comentário extremamente sagaz de Guimarães Rosa à demanda e ao sofrimento de seu tradutor. Pois é através de Dante, e de forma enviesada, que o autor aflora o problema dos limites da linguagem – que “nem sempre pode expressar tudo que há” – e da atribuição de sentido à sua própria obra. É difícil deletrear rastro tão grande e são inúmeras as possibilidades inerentes à linguagem, à revelia de qualquer intento ou impulso, aspiração ou desejo que se possa ter. É citando Dante que Rosa brinca com a “tarefa”, “dom” ou “renúncia” do tradutor,5 que ousa transitar no campo minado da relação entre as línguas, onde o demônio anda à solta. Sim, carece de ter coragem.
Mas a presença de Dante também se impõe pelo próprio conteúdo da página intraduzível que “descordou” seu tradutor. Pois é nela que encontramos o Chefe Ezequiel, estúrdio personagem da novela “Buriti”, que passa as noites divagando em plena boca do Inferno.
Os doidos de Guimarães Rosa
A página diaba que impede a passagem do tradutor contém a fala de um “doido”, talvez o mais desconcertante de todos os personagens tresloucados que povoam o sertão de Guimarães Rosa. Basta mencionar a novela “O recado do morro”, do Corpo de baile, de onde emerge toda uma galeria de “bobos” e “alucinados”, como o velho Gorgulho, meio surdo, que mora numa gruta, isolado como um bicho, e conversa com a própria montanha em linguagem arcaica; o profeta Santos-Óleos, também conhecido como Jubileu ou Nominedômine, que anuncia o fim do mundo correndo afoito pelo sertão afora com os pés envoltos em trapos, como se usasse travesseiros ao invés de sapatos; Catraz, que sonha em percorrer os céus pilotando seu próprio engenho, o “arioplãe”, um carro voador puxado por duas dúzias de urubus; ou o Coletor, que passa os dias fazendo contas nas paredes da igreja, num incessante recalcular da imensa fortuna que imagina possuir.
Os “doidos” de Guimarães Rosa diferenciam-se por suas estranhas moradias, roupas e trejeitos, por suas manias e linguagens insólitas. Inspiram receio ou tristeza e provocam risos com seus disparates. São seres excepcionais, alguns híbridos ou cruzados, que brotam dos ocos e desvãos da terra. Dotados de uma percepção aguçada, ouvem e distinguem coisas incompreensíveis para os demais, como a voz da natureza, de Deus e seus profetas. Vivem na encruzilhada entre o que é definido como humano ou natural, e pensam em lógica diversa do senso comum, por isso mesmo desqualificada como impossível ou inverossímil. Falam línguas estranhas, de conteúdos enigmáticos, freqüentemente atribuindo outros nomes para as coisas e novos significados para os nomes, ou simplesmente criando nomes motivados por inusitadas sinestesias. Deslocam as designações correntes, priorizando a rima e o ritmo. “Despossuídos pela cultura de qualquer competência para falar”, são “sujeitos de discursos e ações que, no seu nonsense, estabelecem pelo avesso os limites do discurso tido como de bom senso” (Hansen, 2000, p. 65).
Não é por acaso que tais personagens se destacam na obra de Guimarães Rosa. Na verdade, é através deles que se realiza mais plenamente o seu audacioso projeto de reescrever a própria língua para expressar o que normalmente não se vê, o que não fala ou não deveria estar falando como sujeito – não só o doido, mas também a criança, o sertanejo, o índio, e até mesmo a própria natureza, como o morro, o boi, o burrinho e a onça. Sempre em busca de formas que expressem aquilo que não tem voz nem contornos definidos, a escrita de Guimarães Rosa brinca entre a linha tênue e arbitrária que distingue as coisas do mundo. Ela quer captar o que é ambíguo e escorregadio, ignoto ou difícil de ser apreendido, figurar o fugidio, as diferenças sutis – a própria “matéria vertente” das coisas, seu constante vir-a-ser, tantas vezes tematizado em Grande sertão: veredas. É este o seu horizonte de busca. E, para tanto, é preciso revirar a linguagem ao avesso. Nos termos de Deleuze (2011), diríamos que Guimarães Rosa faz a linguagem “gaguejar” ou “delirar”, para dela extrair visões e sonoridades outras, etéreas, inusitadas.
É este o trabalho de linguagem que conforma o sertão de Riobaldo e a espantosa metamorfose do onceiro em onça, em “Meu tio o Iauaretê”, e se expressa no mundo miúdo do menino Miguilim e de todos os “bobos” e “alucinados”, profetas e poetas que circulam pelo sertão. É este o trabalho de linguagem que produz a página intraduzível de Bizzarri: a fala obscura do Chefe Ezequiel.
O inferno de Ezequiel
Caminhando no vau da noite, se chega até na beira do Inferno.
(“Buriti”, Corpo de baile, 1956, v. 2, p. 664).
Em “Buriti”, a estória se passa no umbral do sertão, na fazenda do Buriti Bom, onde um belo dia aparece um “pobre diabo”, um “bobo risonho” vindo não se sabe de onde, que por ali é acolhido em caridade. Ele passa a residir no moinho, na beira da mata, e planta o que quer numa rocinha a ele próprio destinada, “seguindo sua vidazinha no bem-querer das obrigações”. É o Chefe Ezequiel, um sujeito miúdo e desdentado, muito afável e cordato, que quando fala, ri, e também se coça, desdobrando-se em toda espécie de gestos estapafúrdios, por vezes tirando o boné para mirar o céu em respeito a Deus. Rejubila-o “o de-comer” e aprecia ouvir música quando as moças da casa ligam a vitrola. E nunca dispensa uma missa ou reza, ajoelhado circunspecto. Sempre à cata de qualquer pedaço de papel, logo se bota a ler com seriedade, mesmo que desconheça a leitura. Todos na fazenda o aceitam com graça respeitosa, deixando-o “viver a sério em sua tolice”.
Mas o coitado do Chefe Ezequiel sofre de uma “mania” que não lhe dá repouso: ele “padece de má insônia”. Em vigília solitária, passa as noites no moinho, deitado, mas acordado, escutando sem fim, “de escarafuncho”, perscrutando barulhos que ninguém nunca ouviu nem saberia distinguir. Durante o dia, não escuta os “selvagens rumores”; de noite, sim, como um condenado: “– Nhossim, escutei o barulho sozinho dos parados…”. Ele chama “os segredos todos das trevas para dentro de seus ouvidos”, escuta “até aos fundos da noite”, até as minhocas no seio da terra, devassando a escuridão “em estudo terrível”. E o que descobre na noite escrutada daria para encher as páginas de muitos e muitos livros.
“Envigiando” sem tréguas, o Chefe aprende com destreza a “dentreouvir”, e se alguém da casa solicita, interpelando-o sobre o que escutou “de transnoite”, prontamente ele descreve o divulgado em sua vigília. Ezequiel pode dizer, “sem errar”, qual é o mais tênue ruído, relatando “imensa e pequenamente” tudo que vem parar em seus ouvidos, para o maior espanto e deleite de todos. Se os moradores do Buriti Bom por vezes “riem do que ele contasse”, no entanto é um riso de orgulho por esse “talento da fazenda”, sentinela sempre a postos, equipada com o dom da escuta. O próprio senhor daquelas terras exibe o Chefe para as suas visitas, instigando-o a definir de ouvido tudo o que ao redor transcorre, valorizando o seu poder de agarrar, no instante, os sons que a todos escapam.
O saber de Ezequiel encanta porque não é alheio ao mundo do sertão, onde a noite é presença palpável. Como “no meio de um mar”, basta guardar um pouco o silêncio para o confuso de sons vir crescendo em volta, tomando conta, em amontôo contínuo. Agregadas, as pessoas até brincam de escutar a noite, como em jogo de adivinha: “E esse bicho-do-brejo, que dá o outro som, que ranhe? É o socó […] Ele vigia é de noite, revoa para ir pegar piabas nas lagoas…”. Sozinhas, não. As pessoas receiam visagens, sobretudo as crianças, e também os velhos, que vivem em pontos extremos do contínuo da vida, em regiões que confinam com o desconhecido, com a presença da morte e sua crueza, da violência e maldade do mundo. Mas todos evitam o “miolo maior das trevas”, onde habitam coisas que não querem descobrir, nem convém desvendar, eliminando-o de sua linguagem. Território da continuidade acústica e visual, da escuridão profunda e rumor confuso, a noite esconde o que todos temem e procuram negar. Todos, exceto o Chefe, que mergulha fundo nos desvãos das trevas. Ele ultrapassa os limites do humanamente nomeável, resgatando a noite na linguagem6.
O dom de Ezequiel de decifrar os sons remete ao saber dos caçadores, que também dominam a arte de separar “os envios contínuos do mundo de lá”. Assim como o Chefe, reconhecem por sua voz cada bicho percebido em fina escuta. Mas fazem isso por dever de ofício. Vigiam por precisão, em necessidade prática e pontual. Se possuem o dom de ouvir, é com limites claros e definidos: seu poder de detecção termina onde o chumbo da espingarda alcança. Senhores de uma “paciência dormida e sagaz”, sua observação imóvel prepara bote súbito e certeiro; seu silêncio contido se rompe com o estrépito da pólvora. Eles identificam as vozes da natureza para localizar e capturar as fontes, com o que comprovam seus achados. A vivência dos caçadores engatilha uma seqüência de ouvir, nomear, atirar, matar – calando o som inicialmente decifrado. O Chefe, não. Sua tarefa nominadora não tem limites, porque nunca silencia as vozes que penetram em seus ouvidos. Ele vive num mundo que perdeu as paredes. Seu inferno é a ausência de silêncio do mundo. Sua loucura, o excesso de linguagem, a nomeação transbordante e infinda.
Das pessoas que convivem com Ezequiel, se as mais próximas lhe atribuem um talento e admiram suas descobertas, as mais distantes desconfiam de tal dom. Acham que, por “erro de ser”, ele ouve o que não era para ser ouvido. E concluem que é por isso que “deu em doido, para divulgar fantasmas”, “desandado” numa “mania-de-perseguição”: “– Zequiel, você foi ouvir, agora teme!”.
De fato, por mais que se esforce em suas vigílias, o Chefe nunca consegue levar a cabo a sua tarefa de dizer o mundo como ele é, pois as palavras são poucas para dar conta do continuum da noite, da multiplicidade infinda de vozes que a povoam. Há sempre um fundo disforme e incontrolável que resiste à nomeação, “custoso de se conhecer no som em sons”. Ele entra em pânico diante dessa “não-linguagem absoluta”, “materialidade bruta da natureza”7 que emerge “no vaporoso”, rosnando desmesurada como um bicho selvagem e hostil, prestes a dar o bote. Isolado na solidão extrema de seu pavor noturno, Ezequiel se transforma em presa, alvo de caça do “bicho da noite”, o “inimigo”:
Como era o “inimigo”, ô Chefe? – “Vai ver, é uma coisa, que não é coisa. Roda por aí tudo. Se a gente dormindo, ela tira as forças da gente... Vem, mata. É uma coisa muito ligeira esvoaçada, e que não fala, mas com voz de criatura...” [...] Evém, vem: é a coisa. A môrma. [...] Essa que revém, em volta, é a môrma. Sobe no vaporoso. – Desconjuro! (“Buriti”, Corpo de baile, 1956, volume 2, p. 676; p. 693).
Exilado na terceira margem da noite, no território da continuidade absoluta, o Chefe sofre e se atormenta porque descobre nas trevas alguma coisa “de enorme conteúdo e significação”, que está “muito acima de seu poder de discernir e abarcar”, e todas as noites não lhe bastam para perseguir o entendimento daquilo. Ele paga ao medo todas as horas de sua vigília, sempre esperando “a coisa, que não é coisa”, que toda noite “revém”, “sem nunca lhe dar pestanas”.
O que Ezequiel teme é o “o com o til do Cão, o anhanjo” – espírito do mal ou demônio, também denominado por ele de “tagoaíba”, “aventesma”, “visonha vã”, “visagem”: a “môrma”.8 Como Guimarães Rosa procura explicar a Bizzarri, a “Môrma” é “como um embrião demoníaco”. E ele mesmo se indaga se não seria um “ser ou entidade monstruosa que o delírio do Chefe inventou?”.9 Esse fundo disforme e incontrolável que emerge no indiferenciado dos sons da noite, transformando-o em animal caçado, semelha o demo de Riobaldo, em Grande sertão: veredas: é “o que-não-há”, “não é, mas finge de ser”, a “figura”, “o O”, que aceita e rejeita todos os nomes, figurando o próprio vazio, nonada: a potência infernal da designação.10
O desafio da Môrma
Habitante das trevas profundas, Ezequiel vive num mundo onde a audição é a modalidade sensorial dominante para codificar o que transcorre ao seu redor. Dotado de uma excepcional sensibilidade acústica, ele é capaz de ouvir o que os outros não conseguem, penetra no rumor, na mistura confusa, extraindo daí vozes tão límpidas que Bizzarri julgou tratar-se de uma verdadeira sinfonia: a noite no mato.
O mundo de Ezequiel é um mundo escutado, um mundo de timbres e nuances em refinada escuta. Ele é capaz de ecoar a voz de cada bicho, do vento, da água, da chuva e da mata, do moer do moinho a um roçar de asas, da morte cruenta na coruja em garras, expressando-se numa linguagem incrivelmente rica em iconismos fonológicos. A cada voz apreendida, uma onomatopeia que evoca ou imita acusticamente os sons escutados: o “seriado túi-túi dos paturis”; o “grôo-só do macuco”; o “crocitar grosso do jacu-assu”; o “ururar do uru”; o “gugugo da juriti”; o “bubulo do corujão-de-orelhas”; “frulho de pássaro arrevoando”; o “gougo do raposão”; o “cricril” dos grilos; o “clique-clique de um ouriço”; o “fanhol” da porteira; “o cochicho do cocho se enchendo d’água, e o intervalo, choòcheio”; a folha do coqueiro, que “se despenca das grimpas, dá no chão com murro e tosse. A tão! – tssuuu…”11
Ezequiel encena a utopia linguística de designar o mundo termo a termo, expressando-se de forma condensada e icônica ao próprio modo como percebe os sons da noite. Ele comunica a imediatez de suas percepções, levando o leitor a desfrutar das mesmas sensações auditivas por ele experimentadas.12 Sua linguagem mais parece um imenso léxico sonoro, uma listagem de todas as vozes decifradas, transmitidas segundo a sua própria ordem de ocorrência.
Ao longo da novela, há várias passagens com a fala de Ezequiel, mas apenas uma paralisou Bizzarri. Sem dúvida, a mais estranha de todas. A leitura de “Buriti” esbarra de fato na página 694, como presa no torvelinho de um mundo desconhecido: o divagar do Chefe em pleno “miolo maior” das trevas:
[Mas o que demora para vir, o que não vem] é mesmo esse fim da noite, a aurora rosiclara. Onde agora, é o miolo maior, trevas. Horas almas. A coruja, cuca. O silêncio se desespumava. A coruja conclui. Meu corpo tremeu, mas só do tremer que ainda é das folhagens e águas. Para ouvir o do chão, a coruja entorta a cabeça, abaixando um ouvido despido. Ela ouve as direções. A jararaca-verde sobe em árvore. – Ih... O úù, o ùú, enchemenche, aventesmas... O vento úa, morrentemente, avuve, é uma oada – ele igreja as árvores. A noite é cheia de imundícies. A coruja desfecha os olhos. Agadanha com possança. E õe e rõe, ucrú, de ío a úo, virge-minha, tiritim: eh, bicho não tem gibeira... Avougo. Ou oãoão, e psìuzinho. Assim: tisque, tisque... Ponta de luar, pecador. O urutáu, em veludo. Í-éé... Í-éé... Ieu... Treita do crespo de outro bicho, de unhar e roer, no escalavro. No tris-e-triz, a minguável... É uma pessoa aleijada, que estão fazendo. Dou medida de três tantos! Só o sururu... Chuagem, o crú, a renho... Forma bichos que não existem. De usos, – as criaturas estão fazendo corujas. Dessôro d´água, caras mortas. Quereréu... Ompõe omponho... No que que é, bichos de todos malignos formatos. O uivo de lobo: mais triste, mais uivoso. Avoagem, só eu é que sei dos cupins roendo. Para outros, a noite é viajável. Que não tenho pai nem mãe, meus menos... É a môrma, mingau-de-coisa, com fogo-frio de ideia. Dela, esta noite, ouvi só dois suspiros, o cuchusmo. Mortemente. Malmodo me quer, me vem, psipassa... Quer é terra de cemitério. Um som surdoso. Izicre, o iziquizinho, besouro que sobe do cano dum buraco. Divulgo de bichos que vão ferrar o dente no canavial. Uê, uai, a árvore sabe de cor suas folhas secas todas. O monjolo bate todos os pecados... – Raspa, raspa, raspador... Porco-do-mato, catete. Porco-do-mato morre de doença. Tamanduá também morre de doença. Lobo. Tem horas em que até o medo da gente por si cansa, cavável. Uixe, ixinxe, esses são os que estão aprendendo o correr d´água do rego. (“Buriti”, Corpo de baile, 1956, volume 2, p. 694).
Para penetrar no inferno de Ezequiel e dar voz à escuridão, Guimarães Rosa arrasta a linguagem para fora de seus sulcos costumeiros. É nessa página diabólica que vemos o efeito devastador de uma escrita que mergulha fundo nos abismos da indeterminação e da ambiguidade, trazendo à tona novas potências gramaticais e sintáticas.
De modo diverso do que ocorre nos demais relatos de suas noites insones, aqui a linguagem de Ezequiel é obscura porque não se limita a captar e distinguir os sons, apropriando-se apenas dos significantes prontos, em claro mimetismo sonoro – como ocorre quando ele profere que “o vento úa” ou que o urutau (a “mãe-da-lua”, ave noturna), em seu vôo macio e silencioso (“em veludo”), semelhante ao vôo da coruja, grita “Í-éé… Í-éé… Ieu…”. Se Bizzarri pede socorro a Rosa para traduzir o que “não entendeu de todo” nessa passagem, é porque agora a linguagem icônica do Chefe não tem referente claramente explicitado: “o úù, o ùú”; “e õe e rõe, ucrú, de ío a úo”; “tiritim”; “avougo”; “ou oãooão, e psìuzinho”; “assim: tisque, tisque…”; “sururu”; “chuagem”; “quereréu… ompõe omponho…”; “avoagem”; “cuchusmo”; “izicre, o iziquizinho”; “uixe, ixinxe”.
A longa carta-resposta que Guimarães Rosa envia a Bizzarri contém muitas explanações e algumas dúvidas sobre cada uma das inusitadas onomatopeias por ele criadas para expressar o descomposto das visões que os ouvidos do Chefe enxergam:
6) “E õe e rõe, ucrú, de ío a úo, virge-minha, tiritim: eh bicho não tem gibeira...” õe = (onom.) se refere às unhas e bico da coruja. rõe = (onomatopeia; de roer) se ref. também à coruja. ucrú = (onom.) refere-se ao rasgar (cruel) da carne (crua) da vítima. ío = (onom.) corresponde aos gemidos-guinchos da vítima. úo = (onom.) idem. E também ao rumor geral, dos dois, a coruja batendo e a vítima se debatendo. virge-minha = (Minha Virgem-Maria!) é exclamação do próprio Chefe, horrorizado com aquilo tudo. tiritim = (onom.) (indica coisa rápida e limpamente feita, pronta, realizada) E já é o próprio Chefe, em sua instabilidade de primitivo, se entusiasmando com o poderoso, isto é, com o agressor, se identificando com ele, com a coruja, e deliciando-se com a presteza da cena. eh bicho não tem (al)gibeira = a coruja comeu tudo, não dispõe de bolsos para neles guardar comida para mais tarde... 7) “Avougo” = Outra onomatopeia, esquisita, do Chefe. Quase tudo o que ele pensa ou diz, “non è um discorso, ma uno sfogo subitaneo”... (Terá a ver com ave, com agouro, com regougo?) 8) “Ou oãoão, e psìuzinho.” (Onomatopeias.: de eco; de chamar alguém, assoviadinhamente.) 9) “Assim: tisque, tisque...” (Onom.) [...] 12) “Í-ééé... Í-éé... Ieu...” (Onomatopeias) [...] 17) “Só o sururo...” = (Onom. do vento que mata, entrecortado de silêncios, mas suavemente, não violento como o úuu ou o avuve.) 18) “Chuagem” = onom. de água corrente, o rio. o cru = a coisa crua (a Môrma) a renho = atacante, vesânica.13 [...] 22) “Quereréu... Ompõe omponho...” (Simples complicadas onomatopeias do Chefe.) [...] 29) “...o cuchusmo” = (cochicho + chusma?) Onom. (Um coro de cochichos, uma multidão estranha a sussurrar? Coisa entre cochicho, suspiro e soluço.) [...] 31) “Izicre” = onom. “o iziquizinho” = (do besouro que surge de seu buraco no chão) [...] 35) “Uixe, ixinxe” = onomatopeias (referem-se aos bichos cujo rumor imita, de propósito, o ruído da água do rego. Mimetismo sonoro. (“Carta de Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri”, Rio de Janeiro, 10/XII/63. p. 79-83).
Numeradas de 1 a 35, as explicações ponderadas ou indagações sugestivas do escritor são verdadeiros convites à reflexão. Mais do que fixar um sentido único, o que elas buscam é incitar o tradutor a especular sobre os sentidos possíveis – e sempre em aberto – da linguagem delirante do Chefe Ezequiel. É o que ocorre, por exemplo, quando Rosa indaga se “avougo” – um de seus “desabafos súbitos” – não teria a ver com ave, agouro e regougo? E se “cuchusmo” não seria alguma coisa “entre” cochicho, chusma, sussurro, suspiro e soluço?
Mas não são apenas as onomatopeias que impedem a tradução da página 694. Com a ideia presa na Môrma, apavorado com a figura diabólica que emerge incontrolável, a enunciação do Chefe é incompreensível porque transborda para muito além do dado bruto, “obrigando o significante a entrar em uma verdadeira cadeia simbólica, ao lhe conceder significados alheios ao que diz, de imediato, o corpo significante” (Costa Lima, 1974, p.171).
Para socorrer Bizzarri, Guimarães Rosa procura “decifrar”, “um pouco”, a linguagem tortuosa de Ezequiel – não sem antes adverti-lo de que estão pisando no solo movediço do possível e do múltiplo:
Tudo ótimo. Coraggio! Você é que é um homem temível’terrível – graças a Deus. E o Chefe Zequiel, um pobre-de-Cristo, semi-enlouquecida sua ignorância. Vamos ver se o deciframos, um pouco, ao longo de alguma de suas possíveis “variantes”, e até onde. O melhor, creio, sempre é a gente partir o difícil em reles pedacinhos. (“Carta de Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri”, Rio de Janeiro, 10/XII/63. p. 79. Negritos meus).
É assim que Rosa se aventura na “perigosa” tarefa de “sondar as anfractuosidades infra-lógicas, hiper-sensoriais” do delírio do Chefe, procurando resgatar, na medida do possível, as associações simbólicas que o conformam, para “tentar traduzi-lo” em “linguagem lógico-reflexiva”:
1) “O úù, o ùú, ENCHEMENCHE, aventesmas...” úù, o ùú = onomatopeias enchemenche = (enche-m(e) -enche? enche-m (exe) ?) é algo que o Chefe quer mas não consegue traduzir dos hiper-rumores da Noite. aventesmas = (avantesmas) fantasmas. Tentativa de tradução para a linguagem lógico-reflexiva: – Esses (sons de) húûh-úhhú, de imenso mexer-se-e-encher-se-me... são ossos-sons, de extintos fantasmas... (Perdoe-me, carreguei na mão. Mas é que é perigoso tentar sondar essas anfractuosidades infra-lógicas, hiper-sensoriais, elas contagiam-nos, e “estou com a cachorra”, a invenção é um demônio sempre presente...) 2) “O vento úa, morrentemente, avuve, é uma oada – ele igreja as árvores.” úa = onomatopeia avuve = onomatopeia (do vento) oada = onomatopéia de (panc) ada, (z) oada; pode provir também de ôa! (= a voz com que o carreiro manda parar os bois do carro-de-bois). igreja = Para o Chefe, o que dá mais idéia de respeito sério e pânico, de suspensão cósmica, coitado; de misterioso silêncio e grave ambiente (Cf. sacer = na sua ambiguidade ou ambivalência de ao mesmo tempo “venerável” e “execrável”) é uma igreja. Daí, o verbo “igrejar”. Trad.: O ventoventovento hhh-úiva, feito para morrer morrendo, venta-vôa-úiva, e – de só o fim-de-pancada, pára, então dentro de silêncio as árvores todas estão dentro de igreja... (“Carta de Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri”, Rio de Janeiro, 10/XII/63. p. 79-80).
Ainda que descortinem caminhos, as muitas indagações presentes nas “traduções” sugeridas por Rosa das “traduções” ensaiadas pelo Chefe propõem novos problemas para o tradutor enfrentar. Brincando com o “intradizível” (ou “infraduzível”), e com o “demônio da invenção” à solta, a resposta de Rosa contém um recado inequívoco: Bizzarri precisa renunciar ao Graal do sentido original, único e estável, que não existe e que nem o próprio escritor poderia acessar ou controlar, para que a tradução – alguma tradução – seja possível.14 Exibindo a ausência de um significado imanente à linguagem de Ezequiel, de forma jocosa, o que Rosa evidencia é a instabilidade do texto original, que também sofre daquele “estranhamento de toda linguagem consigo mesma – de toda linguagem quando se descobre como uma tradução”.15 Mesmo tendo o privilégio de se comunicar com o autor, a tarefa do tradutor permanece em aberto, e cabe a ele somente descobrir o que deve e o que pode fazer para que a tradução “ressoe” aquela “música que ecoa do original”.16
Em sua carta sobre a página diabólica de “Buriti”, Bizzarri pede ajuda a Rosa para “pegar a môrma”, traçando um claro paralelo entre a sua tarefa de tradutor e a tarefa que o Chefe se impõe. Ao descrever seu personagem como “tradutor” da linguagem da noite, a resposta do escritor retoma a comparação sugerida: o Chefe quer, mas não consegue “traduzir” os hiper-rumores, da mesma forma como Bizzarri não consegue “captar a sinfonia inteirinha”. Sem dúvida, os paralelos não se esgotam aí, pois o Chefe Ezequiel é como um duplo do próprio escritor, que vive a experiência terrível da escrita, em sua busca incessante para captar e expressar o fugidio. Figurar o vaporoso: nuvens e neblinas. Tarefa trágica que se impõe.17
Mas a Môrma que assombra Rosa, Ezequiel e Bizzarri seria, de fato, a mesma?
Kati ena.
Página 694 do Corpo de baile, na tradução de Edoardo Bizzarri
(Guimarães Rosa, João. “Buriti”, Corpo de baile. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, volume 2. p. 694).
[Mas o que demora para vir, o que não vem] é mesmo esse fim da noite, a aurora rosiclara. Onde agora, é o miolo maior, trevas. Horas almas. A coruja, cuca. O silêncio se desespumava. A coruja conclui. Meu corpo tremeu, mas só do tremer que ainda é das folhagens e águas. Para ouvir o do chão, a coruja entorta a cabeça, abaixando um ouvido despido. Ela ouve as direções. A jararaca-verde sobe em árvore. – Ih... O úù, o ùú, enchemenche, aventesmas... O vento úa, morrentemente, avuve, é uma oada – ele igreja as árvores. A noite é cheia de imundícies. A coruja desfecha os olhos. Agadanha com possança. E õe e rõe, ucrú, de ío a úo, virge-minha, tiritim: eh, bicho não tem gibeira... Avougo. Ou oãoão, e psìuzinho. Assim: tisque, tisque... Ponta de luar, pecador. O urutáu, em veludo. Í-éé... Í-éé... Ieu... Treita do crespo de outro bicho, de unhar e roer, no escalavro. No tris-e-triz, a minguável... É uma pessoa aleijada, que estão fazendo. Dou medida de três tantos! Só o sururo... Chuagem, o crú, a renho... Forma bichos que não existem. De usos, – as criaturas estão fazendo corujas. Dessôro d´água, caras mortas. Quereréu... Ompõe omponho... No que que é, bichos de todos malignos formatos. O uivo de lobo: mais triste, mais uivoso. Avoagem, só eu é que sei dos cupins roendo. Para outros, a noite é viajável. Que não tenho pai nem mãe, meus menos... É a môrma, mingau-de-coisa, com fogo-frio de ideia. Dela, esta noite, ouvi só dois suspiros, o cuchusmo. Mortemente. Malmodo me quer, me vem, psipassa... Quer é terra de cemitério. Um som surdoso. Izicre, o iziquizinho, besouro que sobe do cano dum buraco. Divulgo de bichos que vão ferrar o dente no canavial. Uê, uai, a árvore sabe de cor suas folhas secas todas. O monjolo bate todos os pecados... – Raspa, raspa, raspador... Porco-do-mato, catete. Porco-do-mato morre de doença. Tamanduá também morre de doença. Lobo. Tem horas em que até o medo da gente por si cansa, cavável. Uixe, ixinxe, esses são os que estão aprendendo o correr d'água do rego.
(Guimarães Rosa, João. “Burití”. Corpo di ballo. Ciclo romanzesco. Traduzione dal brasiliano, nota, avvertenza e glossario di Edoardo Bizzarri. Milano: Feltrinelli, 1964. p. 617-618).
[Ma quel che tarda a venire, quel che non viene,] è proprio questa fine della notte, l‘aurora chiaror di rosa. Dove adesso è il nucleo maggiore, tenebre. Ore alme. La civetta cuculia. Il silenzio si schiumava. La civetta conclude. Il mio corpo tremò, ma solo del tremito che ancora è delle fronde e delle acque. Per sentire quello del suolo, la civetta inclina la testa, abbassando l’orecchia nuda. Lei sente le direzioni. Il jararaca-verde sale sugli alberi. Ih... L’ùú, l’ùú, rigonfiamento, fantasmi... Il vento uúa, lugubre, aú-uúa, è un salmeggiare – lui inchiesa gli alberi. La notte è piena di immondizie. La civetta vibra gli occhi. Artiglia potente. E on e ron, crrru, iío, e uúo vergine santa, ecco fatto: eh le bestie non hanno saccocce... Av-oug-o. O o-an-an, e psss. Cosí: tischi, tischi... Sorge la luna, o peccatore. L’urutau, vellutato. I-ée... I-ée... Ieu... Avanzata tortuosa di un’altra bestia, l’unghiare e il rosicchiare, nello scavato. E tutto a un tratto, eccola... È una cosa informe, che si sta formando. È già tre volte tanto! Solo il vento, sussurroso... Fiumando, la cosa crudele, insana... Forma bestie che non esistono. Di norma, le crature dormendo formano civette. Trasudio d’acqua, facce di morti. Chereréu... Ompon ompogno...In quel che è, bestie di tutte le forme maligne. L’ululare del lupo: piú triste, piú ululoso. Svolii, solo io so delle termiti che stanno rodendo. Per gli altri, la notte è transitabile. Io che non ho né padre né madre, i miei perduti... È la gibbuta, ammasso di cosa, con fuoco-freddo di mente. Di lei, questa notte, ho sentito solo due sospiri, un borboglio. Di morte. Mi vuol far male, mi viene contro, mi alita intorno... Quello di cui ha bisogno è terra di cimitero. Un suono soffocato. Un raspio, uno scalpiccío, lo scarabeo si affaccia al buco tondo della tana. Riconosco le bestie che vanno a raschiare i denti nel canneto. Ué, uái, l’albero sa a memoria le sue foglie secche. Lo sgranatoio batte tutti i peccati... Raspa, raspa, raspatore... Porco selvatico, quello piccolino. Il porco selvatico muore di malattia. Il formichiere anche muore di malattia. Il lupo. Ci sono momenti in cui perfino la paura finisce per stancarsi, si lascia esplorare. Uisci, iscinsci, questi sono quelli che stanno apprendendo il correr dell’acqua nel fiume.
Notas de Rodapé
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Este ensaio retoma, com alterações, “O mundo escutado” (Scripta, v. 9, n. 17, p. 47-60, 2º. Semestre de 2005).
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Composto por sete longas novelas, Corpo de baile foi publicado em 1956, em dois volumes, somando 823 páginas. Em 1960 (2a. ed.), sai como um único livro (513 páginas), que é tripartido na edição seguinte: o volume Manuelzão e Miguilim (com as novelas “Campo geral” e “Uma estória de amor”) data de 1964; No urubùquaquá, no pinhém (com “O recado do morro”, “Cara-de-bronze” e “A estória de Lélio e Lina”) e Noites do sertão (com “Dão-lalalão” e “Buriti”), datam de 1965. Corpo de baile permaneceu tripartido por cerca de 40 anos, o que não deixou de ter conseqüências em sua leitura. Somente ao completar 50 anos, a editora Nova Fronteira relançou Corpo de baile (Edição comemorativa) como um único livro de 832 páginas. Bizzarri traduziu o exemplar da 1a. edição.
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Ele chega a dizer que traduz no “sistema à Procusto”, pois suas cartas (ou “Procustos”) são um imenso “rol” de suas “ignorâncias miúdas”. A “Procustíada” – nome atribuído por Bizzarri à sua correspondência com Guimarães Rosa – foi editada em 1972, reeditada em 1981 (ambas pelo Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, em São Paulo) e em 2003 (pela editora da UFMG/Nova Fronteira). As cartas originais estão preservadas na Biblioteca José e Guita Mindlin (São Paulo), que gentilmente me permitiram consultá-las.
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“Tudo não posso referir a pleno, / que a vastidão do tema o não consente; / nem sempre segue a voz da mente o aceno.” (tradução de Cristiano Martins, 1989). Há outras tentativas de transposição para o português: “Resenha não me é dado fazer plena / De todos; longo o assunto está me urgindo, / E a ser omisso muita vez condena.” (Xavier Pinheiro, 1956); “Dizer eu os que vi, coisa é sem termo: / Urge o tema, e não raro acode à mente / Primeiro o próprio assunto do que o termo.” (Domingos Ennes, 1947); “De cada um narrar não posso os feitos: / Breve dicção não cabe em longo assunto; / Pois à concisa frase opõe-se o tema.” (Barão da Vila da Barra, 1942); “Não posso dar de todos nome pleno, / porque tanto me impele o longo tema, / que ao caso é tanta vez o estro pequeno.” (Vasco Graça Moura, 1995; agradeço a Arnaldo Saraiva por me enviar essa versão de Moura). Traduzido como “referir”, “dizer”, “narrar”, “fazer resenha” ou “dar nome”, ritràrre é também retratar, reproduzir, transcrever.?
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Segundo as reflexões de Walter Benjamin sobre “A tarefa do tradutor” (“Die aufgabe des Übersetzers”), no famoso ensaio escrito como introdução à sua própria tradução dos Tableaux parisiens, de Baudelaire. O termo “aufgabe” pode ser traduzido como “tarefa”, “missão”, “dever”, “lição”, “problema”, e ainda, segundo Derrida (2006, p. 27), como “o que é designado”, “dado a fazer”, “dado a devolver”. “Aufgabe” é também “abandono” (nas acepções de “dedicação integral”, “desamparo” e “afastamento”), “renúncia”, “derrota” ou “desistência”. Segundo Haroldo de Campos (1992, p. 78), aufgabe é “uma dessas palavras bissêmicas e oximorescas em alemão, que contem ao mesmo tempo a afirmação e a negação”: “aquilo que é dado ao tradutor dar, o dado, o dom, a redoação”, e aquilo que ele abandona (como se abandona uma herança) ou renuncia.
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Ezequiel, o “mestre” da noite, da linguagem e do descontínuo, que “nomeia o que a todos seria improvável”, proferindo os “limites da enunciação” (Costa Lima, 1974, p. 129-79).
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Em O O. A ficção da literatura em Grande sertão: veredas (2000, p. 66; 80; 90), Hansen desenvolve bem esta temática.
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São todos termos que designam a visão de algo medonho, aparição terrificante, assombração ou fantasma, espectro, alma do outro mundo. “Tagoaíba”, como Rosa também explica a Bizzarri, é “(em tupi): fantasma, aparição sobrenatural, assombração” (“Carta de Guimarães Rosa a Bizzarri”, Rio de Janeiro, 2/01/64. p. 87). O mesmo pode ser dito de “anhanjo”, que seria uma derivação de “anhã” – termo tupi traduzido por fantasma ou assombração, espírito que anda, demônio. É curioso notar que uma das acepções da palavra “medo” é justamente a de visão aterradora.
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Rosa ainda resgata a etimologia da palavra, que provém do grego (mormô, oûs): “Mas há: Moρμω’ oνos = ‘figura apavorante de mulher velha, espectro, máscara assustadora, etc.’ Não sei como foi que eu a vim trazer para o sertão…” (“Carta de Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri”, Rio de Janeiro, 10/XII/63. p. 82).
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“Todos os nomes e todas as coisas podem ser usados como tradução de ‘O O’ ou como seus lugares de emergência e possessão” (Hansen, “As falas na fala”, op. cit., p. 88-104)
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“Paturi”, “macuco”, “jacu-assu”, “uru” e “juriti” são aves do sertão de Minas Gerais, cujos nomes provém da língua tupi. “Túi-túi”, “grôo”, “ururar”, “gugugo”, “bubulo”, “gougo”, “fanhol”, “frulho”, “choòcheio” e “a tão! – tssuuu” são neologismos sonoros criados por Rosa para designar os sons emitidos por animais ou coisas. Por exemplo, “grôo” remete a “engrolado”, “grolado”, “mal pronunciado” (como o “gró” do papagaio); “fanhol” seria um “ruído fanhoso, roufenho” (de “fanho”); “ururar”, a “voz do uru” (Martins, 2001).
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Para uma análise da “estética do imediato” e da linguagem icônica dos povos da floresta, ver Kohn (2002) e Gell (1995). Agradeço a Eduardo Viveiros de Castro a indicação desses autores, fundamentais para a leitura de “Buriti”
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“Renhir”, do latim ringi, grunhir mostrando os dentes; estar furioso, irritar-se; “vesânica”, do latim vesanìa,ae, “loucura, desvario, delírio” (Dic. Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0).
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“O tradutor tem que renunciar à tarefa de redescobrir o que estava no original” (De Man, 1989, p. 109).
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Em “Tradutor une cacos da língua”, Nestrovski (1992, p. 4) discute esta instabilidade do original.
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Haroldo de Campos (1992, p. 78) retoma a teoria da tradução de Walter Benjamin, destacando que ao tradutor é dado recriar as “formas de dizer” ou o “modo de significar” do original. O que ele tem que “abandonar” ou “renunciar” é “Die Wiedergabe des Sinnes, a redoação do sentido, do sentido referencial, o comunicativo; o dado que cabe ao tradutor dar ou redoar, Wiedergabe, é a forma, Wiedergaberder Form, ‘redoação da forma’, desonerando-se da transmissão do sentido referencial, do trabalho de transmitir esse sentido raso e comunicacional. Isso permite que o tradutor se concentre na sua missão doadora essencial, que é justamente aquela de perseguir a Art des Meinens, a Art der Intentio, o ‘modo de significar’, o ‘modo de intencionar’ do original.
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Rosa chegou a dizer que Grande sertão: veredas “é um livro terrível: não é à toa que o Diabo é seu personagem” (“Carta de Guimarães Rosa a Harriet de Onís” [sua tradutora americana], 23/04/1959).
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