I
Como minha vó me ensinou
rezo todos os dias
acordo sem o toque
do despertador, às 8
levanto, rezo, me troco
e como, café e pão
a preguiça me chama tanto
quanto o trabalho e sentada
no chão da sala
eu imploro pra que o dia tenha 48 horas
enquanto busco na lembrança
uma sensação da infância
em que minhas mãos
e meus braços flutuam pelo campo
sem precisar escondê-los
jamais
e é assustador
enquanto levanto, procuro minha avó
meus pais
meus bichos
meus irmãos
mas estou só, o que não é absurdo
naquele campo de silêncio profundo
só estávamos 2 cobras corais
e eu, que então me ponho de pé,
e em minha própria casa possuo
3 doses de lsd, 4 litros de água,
7 minutos para respirar com o peito
aberto o ar que me faltará metade do dia
enquanto não perco a vida por um triz
enquanto não beijo a menina que sempre quis
enquanto não
mas antes de sair preciso escovar os dentes e lavar a cara
beber o máximo de água gelada enquanto
a garota com quem dormi me deseja bom dia
e só então eu posso partir
ouço o barulho do topo da avenida
e quando viro a esquina
me esperam ali
minha avó
meus pais
meus bichos
meus 2 irmãos.
II
como minha vó ensinou
acordo todas as manhãs e rezo
ajoelho em qualquer que seja o leito
e me vejo em toda dor que me caiba no peito
então os joelhos são ardidos
quase sempre encardidos
mas eu não
eu não fiz nada
como te dizer que a dor que sinto
é parte da herança
mas que você não
não foi você quem causou aquilo
então passo o café preto
e esquento um pão
os farelos já fazem parte do tampo envelhecido
parte do hábito de amassar com murros incontidos
os restos daquilo que não levei comigo
então meus dedos são feito cascas
e a madeira, avermelhada
mas eu não
eu não fiz nada disso
mas como te dizer que a dor que sinto
é parte da lembrança
mas que você não
não foi você quem causou nada daquilo
então como sempre eu volto pra cama
e como sempre você não acordou
e o melhor dos apoios são mãos e joelhos
rentes ao seu rosto e contornos
e é bem aí que as dores me vêm
mas eu não
eu não fiz nada e pior ainda
como te dizer que a dor que sinto
é parte de um rito que meu corpo não controlou jamais
mas que você não
não foi você quem quis aquilo
então há um tempo me vem à cabeça
que não seria nada mal abdicar da herança
nada mal desfragmentar a lembrança
e então me vestir desse novo ritual
mesmo que seja ainda mais banal
mas que usa pernas e braços
pra aprender a dança.
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Como minha vó me ensinou
outubro, 2019
Gabriel Gorini, Pablo Cruz Villalba
Victor Pitanga
Vitor Faria