Autora chilena nascida em 1910, Maria Luisa Bombal é uma das poucas autoras latino-americana a conseguir prestigio fora do círculo da sua língua nativa. Grande amiga de Jorge Luis Borges, seus romances, sempre curtos, evocam uma atmosfera onírica e fantástica. Suas narrativas tratam da feminilidade, da submissão ao homem, o casamento deprimente – situação que ela mesmo viveu quando se casou com seu primeiro marido, que o levou a uma tentativa de suicídio.
As passagens foram retiradas da edição A Última Névoa seguida de A Mortalhada de 2013 da CosacNaify, com tradução de Laura Janina Hosiasson.
Excerto de A última névoa
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Duas mãos que parecem brutais atraem-me com vigor para trás. Uma rajada de vento desliza com estrépito diante de mim. Cambaleio e me apoio contra o peito do imprudente que pensa ter me salvado.
Aturdida, levanto a cabeça. Entrevejo o rosto vermelho e murcho de um estranho. Em seguida me afasto violentamente, porque reconheço meu marido. Faz anos que olhava para ele sem vê-lo. Que velho me parece de repente! É possível que seja eu a companheira deste homem maduro? Lembro, no entanto, que tínhamos a mesma idade quando nos casamos.
Assalta-me a visão de meu corpo nu e estendido sobre uma mesa do necrotério. Peles murchas e coladas a um esqueleto, um ventre sumido entre as cadeiras… O suicídio de uma mulher quase velha, que coisa repugnante e inútil! Minha vida por acaso já não é o começo da morte? Morrer para fugir; que novas decepções? Que novas dores? Há alguns anos talvez tivesse sido razoável destruir, num só impulso de rebeldia, todas as forças acumuladas dentro de mim para não vê-las se consumirem, inativas. Porém o destino implacável roubou-me até o direito de procurar a morte; foi-me encurralando lenta, insensivelmente, numa velhice sem fervores, sem lembranças… sem passado.
Daniel me pega pelo braço e começa a andar com a maior naturalidade. Parece não ter dado importância alguma ao incidente. Lembro da noite de nosso casamento… Ele, por sua vez, finge agora uma absoluta ignorância da minha dor. Talvez seja o melhor, penso, e o sigo.
Sigo-o para levar a cabo uma infinidade de pequenos afazeres; para cumprir uma infinidade de frivolidades amenas; para chorar por hábito e sorrir por dever. Sigo-o para viver corretamente, para morrer corretamente algum dia.
Ao nosso redor, a névoa empresta às coisas um caráter de imobilidade definitiva.
Excerto de A amortalhada
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Desejos absurdos e frívolos me assediavam de repente, sem razão, e com tanta fúria que se transformavam em agoniante necessidade. Primeiro quis no café da manha um cacho de uvas rosadas. Imaginava o cacho apertado de bagos, a polpa cristalina.
De pronto, como para me convencer de que era um desejo impossível de satisfazer – não tínhamos parreira nem vinhedo e o vilarejo ficava a dois dias da fazenda -, tive vontade de morangos.
Não gostava, porém, dos que o jardineiro colhia para mim no bosque. Eu as desejava gelados, muito gelados, vermelhos, muito vermelhos, e que também tivessem um pouco o sabor da framboesa.
Onde eu tinha comido morangos assim?
“…A menina saiu então ao jardim e se pôs a varrer a neve. Aos poucos, a vassoura começou a descobrir uma enorme quantidade de morangos perfumados e maduros, que, prazerosa, ela levou a madrasta…”
Aqueles! Eram aqueles os morangos que eu queria! Os morangos mágicos do conto!
Um capricho engolia o seguinte. Eis que suspirava por tricotar com lã amarela e ansiava por um campo de girassóis, para poder fita-los horas inteiras.
Oh! Afundar meu olhar em algo amarelo!
Assim, vivia gulosa de cheiros, de cores, de sabores.
Quando a voz de alguma inquietação acordava-me inoportuna: “Se seu pai souber!”. Procurando me tranquilizar, eu respondia:
“ Amanhã, amanhã, vou procurar essas ervas que… ou quem sabe consultarei a mulher que mora no barranco…”
“Você precisa tomar uma decisão antes que seu estado se torne irremediável.”
“Amanhã, amanhã….”
Lembro. Sentia-me protegida por uma cortina de preguiça, de indiferença; invulnerável, tranquila para tudo que não fosse os pequenos fatos cotidianos: subsistir, dormir, comer.
Amanhã, amanhã, eu dizia. E assim chegou o verão.
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