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Civilização Escrita e Cultura de Massa

1977

Publicado originalmente em Aprendendo a Pensar. Editora Vozes, Petrópolis, p. 155-162.

Arabian Palace

O tema Civilização Escrita e Cultura de Massa abre para o debate um horizonte muito vasto. Tão vasto que cobre todo o país da História do Ocidental, de seus primórdios até hoje. Porque o tema é assim vasto, o debate, perdido na paisagem, corre o risco de prender-se tanto às árvores que já não encontra a floresta. Nestas condições a tarefa do expositor é tentar recolher o debate num caminho de concentração. Um caminho assim é talvez o caminho do pensamento. Por quê? – Porque a Saga é a estância necessária de todos os caminhos do pensamento. Trata-se de uma necessidade tão essencial que o pensamento não passa de Saga. É a Saga do caminho.

Não vivemos apenas na era da comunicação. Vivemos sobretudo a virulência de uma comunicação planetária. Hoje tudo não só se comunica. Em tudo, que se comunica, age o vigor de uma comunicação bem determinada. De todos os teóricos e técnicos desta comunicação Marshall McLuhan é o único que procura apreender-lhe a força histórica na Saga do pensamento. Sua presença tem sido uma constante provocação. Seus temas ocupam espaços de jornais, reportagens de revistas, programas de televisão. Sua interpretação do mundo moderno é discutida, combatida, celebrada. Só não é pensada nas dimensões de diálogo que lhe abre o pensamento.

A exposição de hoje visa a ressaltar em forma de teses três sagas do pensamento de McLuhan sobra a importância da comunicação no fazer-se mundo do homem moderno.

A primeira tese é fundamental: as relações de comunicação constituem a estrutura de sustentação e desenvolvimento de todo o processo da história.

Na perspectiva do sistema de comunicação estamos ligados ao mundo pelos sentidos. Tudo que imaginamos, construímos ou descobrimos, resulta de uma elaboração longamente sentida de nossa sensibilidade. A tecnologia é a expressão fundamental desta elaboração. Toda técnica constitui uma projeção extensiva de uma função humana, embora nem sempre seja tão visível como a relação martelo-mão.

Historicamente a tecnologia, enquanto projeção sensível, é muito mais do que simples extensão dos sentidos. Toda técnica, além de permitir um progresso material, introduz uma reestruturação global e profunda de todo o comportamento humano. Neste sentido, a história da humanidade é um jogo sem fim, a tensão sempre renovada das tecnologias: “Toda extensão, diz McLuhan, seja da pele (as roupas, a casa), seja das mãos (as ferramentas), seja dos pés (os veículos), afeta o homem em sua totalidade. atinge em sua estrutura global o psíquico, o físico e o social”. Para se compreender a História, é preciso analisar, numa espécie de processo de desmontagens, as estruturações técnicas em que o homem foi entrando, e entrando bem. Deve-se despi-lo, numa espécie de strip-tease histórico, não só do avião e da carroça, mas dos sapatos, das cidades, do papiro, do alfabeto, de toda projeção tecnológica que constitui o seu “meio”, este elemento marinho em que se acha mergulhado a ponto de se esquecer de suas origens. McLuhan analisa os dois processos básicos dessa estruturação mecânica da história ocidental: o alfabeto e a impressão. É a segunda tese.

A alfabetização é uma esquizofrenia histórica.

A história do Ocidente se implanta numa dissociação de vida e trabalho. Antes do alfabeto não havia separação. É que o homem não estava cindido. Os sentidos se achavam em perfeita harmonia entre si e dentro do todo. Com o alfabeto, no entanto, a visão começa a impor-se aos outros sentidos, desenvolvendo-se desproporcional e exageradamente. Uma letra, uma palavra, uma frase são extensões do olho. A forma escrita não apresenta nenhuma relação direta com a realidade. Separam-se rhema e pragma. O olho transmite ao cérebro um símbolo cifrado que o cérebro decifra. Durante milênios, o homem do Ocidente habituou-se a viver o mundo sob uma forma artificial que separa palavra e realidade. O meio de ligação com o real é a relação olho x cérebro em detrimento dos demais sentidos. Esta técnica alfabética age sobre a própria vivência, impondo-lhe um cisão artificial, em todas as suas integrações. O pensamento separa-se do sentimento, fazendo-se progressivamente racional, linear, sequencial.

Isso hoje nos parece natural mas somente porque somos filhos de uma civilização alfabetizada. A escrita não-alfabética o demonstra. Os orientais não escrevem palavras. Escrevem sagas. A própria escrita é uma vivência totalizante. Não há distinção entre escrita e realidade. Pela palavra, nós, alfabetizados fraccionamos tudo. E por isso temos a necessidade de alças e sintagmas para costurar as palavras. Os chineses, ao contrário, unem tudo na escrita. Por isso não sentem necessidade de verbos, preposições, de sintaxe. Só conhecem sagas, isto é, totalidades vivenciais. Assim, o que dizemos de modo artificial e fragmentado com a palavra “República”, o chinês vive na própria escrita que evoca as vivências do homem, conjunto, concórdia. Família evoca as vivências: homem-criança-mulher. Em oposição ao alfabeto denominou-se esta escrita vivencial de ideograma. O ideograma já é em si mesmo uma saga, isto é, o conjunto de razão, intuição, sentimento, onde não há nem cisão nem hipertrofia de elementos. O alfabeto fragmenta a saga, introduzindo divisões e dualismos, dispondo tudo numa dimensão só a fim de dar ao olho o privilégio de nutrir o cérebro. A saga exige uma vivência à qual nada falta e à qual nada é supérfluo. O ideograma não é construído pela causalidade, pela dinâmica de participação.

Só porque o alfabeto cinde e hipertrofia é possível ler sem participar e viver. Quantas vezes nos acontece ler sem entender? É que se introduziu uma interrupção na linha olho-cérebro. O cérebro estava desligado. A civilização alfabetizada vive do hábito várias vezes milenar de relacionar-se com o mundo por intermédio do olho e do símbolo artificial, dentro do ângulo visual do pensamento abstrato e racional. Dar prioridade à visão equivale a distorcer a globalidade da vivência. Esta distorção e hipertrofia do olho e do cérebro dão à civilização do alfabeto o seu caráter linear, fragmentário, causal e sequencial.

Em todas as atividades, o homem alfabetizado projetará indefinidamente esta estrutura visual. Recentemente, conta McLuhan, uma missão da UNESCO fez instalar água corrente numa aldeia da índia. Depois de algum tempo os habitantes solicitaram a retirada dos encanamentos. É que toda a vida social da aldeia se tinha cindido e empobrecia rapidamente. Desapareceram todos os encontros. Para nós alfabetizados, o encanamento é como que uma necessidade natural, uma segunda natureza. Já não sabemos vivenciá-lo como artifício, assim como já não pensamos na transformação profunda de nossos hábitos, de nossas emoções e percepções, provocada pelo alfabeto. Até à invenção do alfabeto os homens se comunicavam por vivências totais, alimentadas por sagas. É a aldeia cercada de muralhas ao alcance da vivência de todos. Com o alfabeto surgem as estradas: é preciso enviar correspondência. Remetente e destinatário se separam. Da unidade da aldeia permaneceu apenas a relação mensagem-mensageiro. Com o telégrafo a mensagem corre mais ainda do que o mensageiro mas em compensação rompe-se a unidade da vivência. No Império Romano, por exemplo, o papiro percorria as estradas, quebrando a unidade global das aldeias. Toma então pôde construir e manter seu império. Só a perda do Egito e com ele do papiro, foi fatal para Roma: já não há mensagens e sem mensagem desaparecem também o mensageiro e as estradas. Cortam-se os laços entre as diferentes partes do império. Já não circulam informações. As cidades se isolam e recuperam sua independência. É o fracionamento do poder de Roma que culmina na Idade Média numa estabilidade temporária. Pois logo o pergaminho vem salvar tudo. Na pele do carneiro o alfabeto curte suas forças de civilização nas celas dos mosteiros. É temporária a estabilidade, porque a imprensa e o papel vão substituir o pergaminho, dando dimensões universais ao poder planetário do alfabeto. Começa então a galáxia de Gutenberg: o livro e os impressos vão reinar absolutos e impor a toda nossa maneira de ser o seu domínio absoluto e absorvente. Tudo que fazemos e sentimos, tudo que pensamos e percebemos, é uma função do que une o olho ao cérebro. Já se disse que antes do alfabeto o artista via a perspectiva mas não sabia reproduzi-la na obra. Na verdade, o homem nem podia nem necessitava ver a perspectiva antes do alfabeto. Foi o livro que lhe revelou a perspectiva, obrigando o olho a uma função hipertrofiada. O analfabeto não tem noção de perspectiva.

É preciso compreender corretamente o que McLuhan chama de olho. Olho indica um “eidos”, uma estruturação que inclui em si uma unidimensionalidade de visão, pensamento, ação, destituídos de toda afetividade integradora. Quando lemos “pão, “amor”, “paz”, encontramos uma relação abstrata com termos precisos e gerais. Não encontramos na leitura a vivência global de “pão”, “amor” e “paz”. Assim à civilização do alfabeto, centralizada no olho, se contrapõe a civilização da saga concentrada na vivência.

O livro não é um amplificador da vivência, é um dique com o ladrão sangrando racionalidade. Na dinâmica da comunicação o livro é um meio de informação, um veículo de mensagens, assim como o avião, o navio são veículos de transporte. De que se compõe o livro? De signos exclusivamente visuais para uso exclusivamente individual. A qualquer instante pode-se abrir, fechar, ler, reler o livro. Milhões de pessoas podem tê-lo simultaneamente em mãos. O livro é um “meio quente” de comunicação, pois fornece uma informação explícita e saturada. O livro só é capaz de mobilizar uma única faixa, a relação olho-cérebro. O livro é uma abstração e um promotor de individualismo. Assim a pessoa que sabia ler era encarada com certa desconfiança nas comunidades analfabetas. É que o alfabetizado fugia da comunidade, isolava-se desenvolvendo por conta própria uma determinada forma de inteligência. O livro produziu uma civilização mecânica, individualista, fragmentada, racional, porque apelou exclusivamente para a relação olho-cérebro.

Ao contrário do livro, a Saga é um “meio frio”, rico de vivências, dotado de uma pluridimensionalidade bem integrada. É a Terceira Tese de McLuhan. Mesmo quando uma conversação é aparentemente menos carregada de informação, o simples fato de falar em grupo, de se estabelecer um encontro, mobiliza uma participação do todo. A palavra escrita só tem uma forma. O livro é uma forma para todos. Um interlocutor, ao contrário, é uma totalidade dando e tomando parte num conjunto. Cada novo participante de um diálogo exige a reestruturação do todo. Estamos inteiramente envolvidos por uma conversa.

A televisão possibilitou globalizar a convivência da conversa. Um mundo vivo, global, instantâneo, que cobre numa unidade todas as faixas de vivência, se torna presente por toda parte, dando condições de participação a todos. Os telespectadores americanos, que assistiram ao assassinato de Lee Oswald, tomaram parte no acontecimento. É que a verdadeira mensagem, aquilo que realmente nos influencia, não é o conteúdo do meio, mas o próprio meio de comunicação. A mensagem é a massagem. Decerto que a mensagem e o conte-údo existem e agem na comunicação, mas sempre subordinados ao intermediário. A maneira como a mensagem é recebida decide do nível e da carga de comunicação.

Hoje se inicia uma transformação radical nas relações de comunicação. Termina a era mecânica, montada sobre o livro, e começa a era eletrônica, montada na televisão. Por quê? – Porque a comunicação conhece “pontos críticos”, cuja superação inverte o processo. É a lei da reversibilidade dos “meios superaquecidos”. Quando a difusão da informação tende a igualar-se à velocidade da luz, a distância é abolida de chofre. Já não há necessidade de centro emissor. O centro está por toda parte. O mundo tornou-se uma aldeia global. Hoje marchamos de uma civilização mecânica para uma civilização integrada. Readquirimos o contacto direto, a possibilidade de vivenciar a totalidade de modo integral e instantâneo. É a “implosão”, que começa tanto no plano individual como no plano coletivo. A experiência dessa implosão impõe uma ascese de desmontagem de nossos hábitos milenares de viver e relacionar-se. Pois ela reivindica o homem em sua totalidade, envolvendo-o de maneira global, e não mais linear. A modalidade de apreensão total do mundo repercute sobre todo o comportamento físico e mental do homem. Novo diálogo tem início entre homem e tecnologia. Uma nova história começa. A eletrônica já não é a projeção de um órgão ou função. É a projeção de toda a vivência. Para McLuhan não é preciso ir longe a fim de buscarmos as origens da sociedade de consumo. Consumimos para nos vingar. Compensamos a sensação, de que nada somos em nosso trabalho, por uma afirmação exterior, que no fundo não nos satisfaz. É por isso que a sociedade de consumo está condenada a perder sua velocidade para dar lugar à aldeia global onde se reintegram todos os fragmentos provocados pela explosão do alfabeto.

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