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largo de são francisco

julho, 2015

manhã

1

tem uma estátua bem no meio. um pombo sempre pousa em sua cabeça e fica horas por ali. será sempre o mesmo pombo?

2

um papelão enorme preso à grade: é uma casa. um homem dorme com duas mulheres. o papelão não deve proteger ninguém da chuva. é só privacidade. um velho tá dormindo sem nada. na verdade, só com a mochila como travesseiro.

3

um menino pede a minha garrafa d’água. eu dou.

4

são sete ou oito degraus até chegar a uma porta grande. em cima deveria ter bandeiras: da cidade, do estado, da nação. não há nenhuma. será proposital?

5

o menino dissolve a cola no restante de água que tinha na garrafa.

6

um caminhão da guarda municipal chega joga água pra ninguém dormir pra todo mundo acordar. eles: varrem o chão, acordam os moradores, dizem: nós somos o choque de ordem pública.

7

um homem de bigode acena pra mim. ele é o Administrador. não aceno de volta. ignoro.

8

não é cola. é tiner.

Tarde

1

vocês duas estão no final da praça, passam pela estátua, chegam de mãos dadas. ah, quem saberá seus nomes? não subam as escadas! não desapareçam na esquina! não desprezem a faixa de sol que derrete o sino da igreja.

2

um carro de polícia ao lado do banheiro público (colocaram isso há um mês). será que eles portam bombas? nunca vi ninguém mijando ou sendo mijado naquele banheiro. colocaram isso há um mês.

3

ah, elas duas voltaram devem ter desaparecido numa loja. agora seguem para o beco. lá a cerveja é barata. lá é mais perto que na Passos, que na Tiradentes, que na Ouvidor.

4

uma está no meio, de costas para o Instituto. se vira. ela chega de longe. calça jeans camisa azul. vai passar direto por mim. não sei. talvez ela pare. daqui a pouco ela estará na porta. e aí, vai ver o filme? eu: q filme? vai passar aqui no Instituto. eu: não sei. ela me olha e termina de subir a escada. ela podia ter me convidado.

5

a moça pega uma vassoura perto da grade. ela pediu: licencinha, meu amor. eu levantei e fui pro lado.

6

a Ouvidor se estende cânion até a Perimetral (q amanhã não existirá). será q eu ando reto e sigo até o final – posso chegar até às barcas, se virar pra direita – ou permaneço sentado aqui?

7

dois moradores do Largo estão deitados abraçados ali perto da grade. eles possuem alguns papelões, uma coberta, duas mochilas, algumas outras coisas não muito identificáveis.

8

na rua do Teatro tem um prédio queimado, um terreno vazio, um estacionamento, um restaurante barato, um bar, um negócio onde vende bolinho de bacalhau, um negócio que vende os mais variados animais.

9

uma moradora aparece com um paralelepípedo na mão. ela quer jogar essa porra em alguém.

10

pausa para o banheiro. a história do paralelepípedo ainda não terminou.

11

a mulher do paralelepípedo levanta a saia, bate com força na genitália e grita: é isso que você quer seu viado? o viado corre atrás dela com um pedaço de pau: vou te matar, sua vadia. ela tem uma buceta lisa. onde ela se depila?

12

os dois moradores deitados perto da grade acordam. será o barulho? o homem reclama alto e grita pra mulher de saia levantada: vai embora daqui! – ele procura no chão uma pedra portuguesa e taca na moça – que revida: tu tá devendo pra civil! todo mundo sabe que tu matou o caseiro! – quem será o caseiro?

13

à minha direita está a igreja. devo ter entrado só uma vez. mais pra frente, logo no final do largo, existem algumas papelarias. na mais cara eu tenho direito a cinco por cento de desconto em qualquer produto. mas ninguém nunca compra nada lá. às vezes eu roubo uma caneta ou coisa parecida. meus amigos fazem a mesma coisa.

14

à minha esquerda tem a rua que leva ao metrô, duas bancas de jornal e um restaurante que vende salmão grelhado. é pena que o salmão acabe tão rápido.

15

uma mão toca meu ombro. olho pra trás. é ela: não vai passar mais o filme. eu pergunto o que aconteceu. ela diz: a gente nunca sabe ao certo, quer tomar uma cerveja? respondo pode ser. ela para e senta do meu lado: vamos no beco, lá a cerveja é barata. lá é mais perto que na Passos, que na Tiradentes, que na Ouvidor.

16

não entendi muito bem porque ela sentou do meu lado. a gente não ia tomar uma cerveja?

17

a mulher de saia levantada continua gritando – do outro lado do largo, mais perto da Ouvidor. todos ignoram. o viado beija outra mulher – a mulher de saia levantada está aos prantos.

18

ela, do meu lado: o que aconteceu? não sei muito bem o que responder. será briga de casal? será chaga antiga? será por ideologia? o viado interrompe meu pensamento quando pega de novo o pedaço de pau pra bater na moça com a saia levantada. dessa vez ela desaparece pelas ruas. onde será que ela foi?

19

não respondo nada. é melhor. eu digo: quem está no beco? ela me olha, não entende muito bem o sentido da pergunta: não sei, tem uma galera lá.

20

a mulher volta. foi chamar reforços. uma gorda alta com calça de ginástica e um magrelo que chega fumando um cigarro descontroladamente. o viado é amigo do fumante.

21

acabo de saber que substituíram o salmão grelhado por dourado. como alguém pôde fazer isso?

Noite

1

O sino bate seis vezes.

2

uma mulher passa com algumas sacolas na mão e o filho. alguns garotos com garrafas na boca se aproximam. ela tira a arma da cintura e grita mete o pé filhos da puta vagabundos. os garotos correm de medo. a mulher sorri para o jornaleiro, agarra a mão do filho e entra pela rua dos andradas.

3

seis rapazes começam a jogar bola. um gol fica perto da estátua, o outro perto do Instituto.

4

na frente da igreja há uma fila.  uma mulher baixa apoia os pés numa sacola no chão, um homem grita no celular. as pessoas esperam a lotação. várias motos estão estacionadas por ali. o taxista avisa pra onde vai. três pessoas o acompanham.

5

um dos garotos que tinha corrido tenta beber água dentro do Instituto. não dá, diz o segurança, ordens do Diretor.

6

os camelôs guardam as mercadorias na lona azul enquanto a viatura se aproxima pela rua.

7

algumas estudantes entram no Instituto. sobem as escadas devagar. quem serão elas?

8

a polícia conversa com os taxistas da lotação. são amigos. os camelôs terminam de embrulhar suas mercadorias na lona azul.

9

três berimbaus gunga é meu gunga é meu esse gunga é meu foi meu pai quem me deu

10

sinto um cheiro forte vindo das grades. três pessoas dividem um cigarro.

11

a Ouvidor ainda se estende solitária. a estátua atrapalha a vista e o pombo já desapareceu há muito. o sino bate mas eu não consigo contar quantas vezes. o prédio ao lado, que há pouco tempo colocou em seus vidros transparentes um adesivo verde-musgo, apaga todas as luzes. menos a do terceiro andar.

12

a moça da tapioca acaba de dizer que o frango acabou.

13

os rapazes começam a brigar por causa de uma falta. o berimbau gunga é meu gunga é meu esse gunga é meu foi meu pai quem me deu.

14

um homem junta algumas coisas em frente ao sobrado em ruínas da minha direita. do lado tem um estacionamento. do lado do estacionamento tinha um restaurante. eu comia 400g por cinco reais há alguns anos. a comida era de gosto duvidoso.

15

os seguranças do saara começam a sentar nas suas cadeiras. quase todos têm bigode. deve ser algum tipo de regra.

16

vários estudantes saem pra rua. alguns seguem em frente, outros viram pros lados. muitos continuam no largo e conversam sobre alguma coisa importante.

17

a briga dos rapazes acabou com o futebol. o mestre também foi embora e levou os berimbaus.

18

o homem em frente ao sobrado em ruínas inicia uma grande fogueira. a alimenta aos poucos com papelão, madeira e lixos em geral. ele quer que o fogo dure bastante tempo.

19

uma caminhonete para em frente ao Instituto. ela está com inúmeros engradados de cerveja. alguém me pede ajuda pra carregar. eu vou.

20

uma campainha toca no Instituto. os seguranças precisam fechar as portas. todo mundo sai e fica pela praça. a música começa.

21

pessoas começam a chegar de diferentes lados. pequenos nevoeiros se formam.

22

o som começa a ficar cada vez mais alto. algumas pessoas dançam, outras conversam. tem cerveja e cachaça.

23

um homem passa com uma lata na mão e diz: quanta gente estranha. alguém responde: sim.

24

à minha esquerda a rua dos andradas, um restaurante grande, um prédio com vidro verde-musgo, duas bancas de jornal, uma banca de doce. à minha direita a igreja, o sobrado em ruínas, o estacionamento. na minha frente a ouvidor, as lojas americanas, as papelarias, as bancas dos camelôs vazias. atrás de mim o Instituto.

25

tem uma estátua bem no meio da praça. um pombo sempre pousa em sua cabeça e fica horas por ali. mas à noite é diferente.

 

 

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