O título da exposição que ocupa o Pavilhão do Brasil na 56ª edição da Bienal de Veneza, É tanta coisa que não cabe aqui, é uma frase que foi retirada de um dos cartazes que apareceram nas ruas das cidades brasileiras durante as manifestações de 2013. Com curadoria de Luiz Camillo Osorio e Cauê Alves, a exposição apresenta trabalhos de Antonio Manuel, Berna Reale e André Komatsu, reverberando o cenário político brasileiro e respondendo, de um modo original, à proposição temática de Okwui Enwezor para esta edição da Bienal: All the World’s Futures. Um pouco isolado em meio a projetos focalizados nas questões ambientais, tecnológicas e de gênero, o pavilhão do Brasil aborda as transformações nas dinâmicas entre corpo e cidade, apostando na disputa pela manutenção do caráter político do espaço urbano como crucial para o desenho de nossos futuros. Apesar do rompimento com a tradição de atribuir a curadoria do Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza ao curador da edição imediatamente anterior da Bienal de São Paulo (segundo esta lógica, este ano a curadoria de Veneza caberia ao britânico Charles Esche), as escolhas de Osorio e Alves avançam por algumas trilhas deixadas pela última Bienal de São Paulo, concebida como um termômetro do tempo presente.
Mas os artistas elencados para representar o Brasil em Veneza não deixam margem às críticas que foram endereçadas à última Bienal de São Paulo, nomeadamente a de que os projetos eram frequentemente representações diretas de temas políticos e esteticamente pobres. Talvez isto se deva ao fato de que, apesar de nascerem no presente e de não negligenciarem os acontecimentos que os circundam, os projetos destes três artistas apontam linhas de fuga a partir das quais pode-se forjar futuros alternativos, escapando de qualquer fatalismo niilista. Osorio e Alves, em texto publicado no catálogo da exposição, escrevem que “A contribuição política da arte viria pela sua capacidade de deslocamento sensível, de produção de atrito e complexidade, onde consensos tendem a se naturalizar”1 .A afirmação dos curadores sintetiza muito bem as proposições de Antonio Manuel, Berna Reale e André Komatsu. Deslocamento e atrito são, sem dúvida, as ideias – ou as práticas – que costuram os trabalhos expostos e que dão coerência ao pavilhão. A opção por expor Antonio Manuel, um artista em atividade desde os anos 60, junto a dois jovens artistas, Berna Reale e André Komatsu, permite ao público (sobretudo aos mais jovens) observar que, a despeito da euforia que marcou a vida política brasileira em 2013, a resistência através da arte não é algo inédito no contexto brasileiro, ela tem uma história que reverbera na produção contemporânea sem, no entanto, determiná-la. Além disso, o gesto genealógico dos curadores lança uma nova luz as relações entre arte e política no Brasil dos anos 60 aos dias de hoje, ajudando-nos a rever a nostalgia que frequentemente acompanha nosso olhar para o passado destas relações.
Nos anos 60/70, Antonio Manuel, utilizando os mais variados suportes (performances, objetos, instalações, pinturas, gravuras e filmes), explorou sobretudo o corpo e os processos de construção das imagens midiáticas. A dimensão corporal da experiência aparece em OCUPAÇÕES/DESCOBRIMENTOS, instalação realizada originalmente no MAC-Niterói em 1998 e repensada para o espaço do Pavilhão do Brasil em Veneza, na qual muros brancos, vermelhos e amarelos obstruem a passagem do visitante, que precisa atravessar buracos abertos a marretadas. O avesso destas paredes e os buracos que viabilizam o trânsito através do espaço criado pelo artista dão a ver tijolos, que remetem à arquitetura das favelas. Como oportunamente assinalado pelos curadores “os buracos […] juntam o elemento construtivo da parede ao elemento concreto do tijolo, o desejo de forma da arquitetura moderna à forma do desejo de um obstáculo rompido, integram Brasília e a favela, o Brasil utópico e o Brasil distópico”2. No mesmo espaço em que está instalada OCUPAÇÕES/DESCOBRIMENTOS, encontram-se alguns trabalhos produzidos segundo a mesma lógica de NAVE, de 2013, que invisibiliza a quantidade excessiva de imagens midiáticas que chegam a nós diariamente através de um dispositivo no qual tais imagens são instalados sob goteiras provenientes de sacos com gelo, que criam um meio opaco e de temporalidade singular para a visualização. Soma-se a OCUPAÇÕES/DESCOBRIMENTOS e NAVE, o filme SEMI ÓTICA, de 1975, no qual o artista aborda nosso símbolo nacional a partir da fachada de uma casa no Morro do Borel, no Rio de Janeiro, onde vemos pintada a bandeira do Brasil mas, em vez do círculo azul no centro da bandeira, há uma janela quadrada e escura para onde a câmera se dirige. O filme apresenta ainda imagens de criminosos com fichas fictícias nas quais constam nome, idade e cor, campo este preenchido sempre por alusão às cores da bandeira nacional (semiverde, semiamarelo, semiazul e semibranco).
Berna Reale, uma das artistas mais consistentes atualmente em atividade no campo da performance no Brasil, participa de É tanta coisa que não cabe aqui com o vídeo Americano, de 2013, no qual percorre, correndo com a tocha olímpica, o Complexo Penitenciário Santa Izabel do Pará. A poética de Reale funda-se sobre uma investigação relacionada ao corpo e às agressões sofridas cotidianamente pelos desfavorecidos. Em uma performance icônica realizada nas imediações do Mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará (2009), a artista nua deitada sobre uma mesa servia, sobre seu próprio corpo, vísceras aos urubus. Em outro trabalho, Cantando na Chuva (2014), vestindo dourado e com uma máscara de gás, sobre um tapete vermelho, Berna Reale interpreta a canção que foi eternizada por Gene Kelly, tendo como pano de fundo um lixão em plena atividade, com catadores indiferentes a sua ação. A produção de imagens escandalosas e incômodas (e isso é uma virtude diante da avalanche de imagens a que somos expostos diariamente e que nos torna indiferentes a tudo) marca a produção de Reale como um todo mas, no caso de Americano, fica a sensação de que a estratégia da artista é um pouco diferente. Não se trata aqui de um escândalo contido na imagem, uma vez que a superlotação e as condições subumanas da população carcerária não são jamais completamente visíveis em virtude do próprio ritmo do filme que apresenta um percurso através dos corredores e espaços adjacentes às celas. Não é sob a perspectiva do choque que Americano afeta o espectador, embora o contexto abordado seja, sem dúvida, chocante e escandaloso. A performance de Berna Reale responde ao imperativo ético de levar a tocha olímpica – o fogo que Prometeu roubou de Zeus e entregou aos homens – à população carcerária que, além de sistematicamente negligenciada pelo Estado (quando tem sorte, porque quando não é negligenciada, é torturada e morta), não conta com praticamente nenhum tipo de empatia ou suporte de grande parte da sociedade civil brasileira. O contexto pré-jogos olímpicos no qual nasce o trabalho torna-o ainda mais contundente. Mas é em um certo estoicismo na performance da artista, no seu modo de deslocamento, concentrado e nada ansioso, que está a potência de Americano. Responder estoicamente aos imperativos éticos parece ser um promissor começo de futuro.
É recorrente na produção do artista paulista André Komatsu a problematização dos limites entre o dentro e o fora, entre o espaço interior e o espaço exterior. Status Quo, instalação realizada no contexto desta Bienal de Veneza, é uma maneira de inverter estas relações. Realizada com tubos e alambrado de aço galvanizado, abraçadeiras e arame, Status Quo consiste na criação de uma zona cercada no centro do espaço expositivo. Tal zona ocupa quase a totalidade da sala, deixando “fora” da cerca apenas estreitos corredores que vão ficando ainda mais estreitos à medida que nos aproximamos da passagem que dá acesso ao interior deste espaço. O corpo do visitante é oprimido no espaço exterior criado pela instalação de Komatsu e, ao passar para o interior, acomoda-se no amplo espaço disponível. O conforto do interior é tensionado com uma espécie de claustrofobia que, paradoxalmente, experimentamos no espaço exterior. Status Quo nos permite experimentar num plano corporal e esquemático as dinâmicas que atravessam os projetos contemporâneos de cidade, com seus shopping centers e condomínios de luxo. O corpo do visitante da instalação de Komatsu é, antes de mais nada, material e espacialmente constrangido pelo dispositivo criado pelo artista. Este atrito inscrito no deslocamento do visitante é que viabiliza, em um segundo movimento em relação à obra, um contato cara-a-cara com a dimensão política das distribuições espaciais que definem nosso tempo. A tomada de consciência, tão advogada pela esquerda dos anos 60, cede lugar no trabalho de Komatsu a um processo que se inicia, literalmente, por uma tomada de posição. A tomada de consciência, através de Status Quo, é um processo, antes de mais nada, corporal.
Os trabalhos expostos no Pavilhão do Brasil dialogam em muitos níveis: entre si, com o contexto estético-político contemporâneo brasileiro, com a cena internacional da arte contemporânea, e com a questão proposta pela Bienal de Veneza – todos os futuros do mundo. As manifestações brasileiras de 2013, que forneceram o título para a exposição, forneceram também as condições segundo as quais o futuro pode, hoje, ser dito e imaginado por brasileiros e brasileiras. Mas há ainda um outro slogan forjado no contexto das manifestações de 2013 que nos ajuda a compreender o Pavilhão do Brasil em Veneza: o predicado “não me representa”, associado a uma enorme variedade de sujeitos. Luiz Camillo Osorio e Cauê Alves, diante da tarefa de “representar” o Brasil na Bienal de Veneza, assumiram a falência deste modelo e fizeram escolhas, tomaram posições, que poderão ser contestadas e criticadas, mas jamais acusadas da pretensão totalizante da representação.
Notas:
1. KALIL, Emilio e OSÓRIO, Luiz Camillo. So Much That It Doesn’t Fit Here (Catálogo do Pavilhão Brasileiro na 56ª Bienal de Veneza). São Paulo: Bienal de São Paulo, 2015, p. 20.
2. idem, p. 24