Andrés Caicedo, jovem prosador, jovem suicida. Colombiano de 1951 até 1977. Sua obra é considerada uma das mais originais da literatura de seu país. Indo de contra-corrente ao realismo mágico do fenômeno García Marquez, Caicedo tratava literariariamente a realidade social, pautando questões da sociedade urbana e seus problemas. Alberto Fuguet, escritor e cineasta chileno, diz:
“Caicedo é o elo perdido do boom. E o inimigo número um de Macondo. Não sei até que ponto se suicidou ou por acaso foi assassinado por García Márquez e a cultura vigente na época. Era muito menos o roqueiro que os colombianos queriam, e mais um intelectual. Um nerd super atormentado. Tinha desequilíbrios, angústia de viver. Não estava cômodo na vida. Tinha problemas de como manter-se em pé. E tinha que escrever para sobreviver. Se matou porque viu demasiado”.
Maternidade
Das férias do quinto ano do ensino médio saímos com um saldo de mortos. “É uma verdadeira tragédia terminar um ano marcado pelo triunfo – a construção de um novo pavilhão esportivo – com a desaparição de seis jovens que apenas despontavam o que seria uma brilhante carreira”, se lamenta o padre reitor, no discurso de encerramento. Pepito Torres fez uma viagem repentina a Bogotá (faltou uma prova final) e dizem que veio a pé, devorando todo fungo mágico que encontrou na beira do caminho, e ao chegar em Cali começou a dar escândalo público pela Sexta, os policiais o agarraram sem avisar seus pais, o enfiaram na radio-patrulha onde morreu como um cachorro, ficando contra as grades, exalando pela boca e nariz um pózinho preto. Manolín Camacho e Alfredo Campos, os inseparáveis, saíram rápido do colégio e foram passar uma tarde de sexta-feira esportiva no rio Pance, houve tromba d’água, e depois de dois dias encontraram seus corpos “entrelaçados”, mas o jornal não explicava como. Um tempo depois, um camponês encontraria, entre as raízes de uma árvore, uma garrafa com um manuscrito de Alfredo, redigido compassivamente: “Vemos como cresce o rio. É incrível. É como se viera cobrar vingança pelo passado esplendoroso que as modernas urbanizações tiraram. Mas ruge. Recobra seu poder. A ideia nos ocorreu a ambos. Não seremos vítimas em vão. Melhorarão os tempos. De mãos dadas caminhamos até o rio.” Eu nunca pensei que as coisas melhorariam assim sem mais. Um mês antes das provas finais, Diego A. Castro (Castrico) saiu com seu irmão mais velho, Julián, para a entrada do Oceano Pacifico. O encantava esse mar de água, areia, céu, selva e gente negra. Ambos haviam ganhado medalhas nos inter-colegiais, estaduais e nacionais de natação. Não foram a nenhuma competição internacional pelo uso de doces. Assim podiam nadar até a linha do horizonte, dali alcançar a linha que se podia divisar se chegasse ao horizonte, e ainda a outra. Mas não essa vez. Depois de poucas braçadas, Julián ofegou que se sentia muito mal, que ia voltar. Castrico, abstraído em seus movimentos parelhos sobre as cristas de cada onda, disse que tudo bem, e seguiu nadando. Ao regressar, feliz de sua imensa travessia, o encontrou na praia, morto, com o pescoço inchado. Ninguém sabe como Castrico voltou a Cali, mas sua existência já tinha sido atravessada. Começou a buscar briga com todo mundo, principalmente com os mais amigos do seu irmão. Carregava punhal. Viajava ao campo e lá lutava com facão e ruana vestida. O prenderam no manicômio e fugiu do manicômio reclamando a presença de sua mãe. Era apenas ela ter ao lado seu frasco de doces e Castrico ficava acalmado, acariciando as flores, jogando com os gatos. Saía à Sexta uma vez a cada dois meses, e eu o via em pé sozinho, falando incoerência sobre todas as mulheres, sorrindo. Na última onda saiu despavorido para procurar briga, mas morreu antes que conseguisse: ficou cravado no chão, gritou que o chão se abria e caiu morto. E vão cinco. O sexto, Manolín Camacho, é o que mais me dói. Meu companheiro de carteira. Costumávamos caminhar distraídos nos recreios, falando de paisagens que imaginávamos em três dimensões apenas olhando os mapas. Nunca havia provado nenhum droga, nem nas festa bebia. Só um sábado. Vá saber com quem se meteu, quem o convidou, por quê, o viram recorrendo ruas a uma velocidade que ia, com a velocidade que ia, com o olhar desencaixado, buscando o quê, com a pele cheia de buracos, insultando velhas, chutando carros. Morreu sozinho, num banheiro qualquer, se esforçando para vomitar o que certamente havia tragado inocentemente e agora mutilava o cóxis, a próstata, o cerebelo. Deram a ele uma mistura de analgésico para cavalos e líquido de freio para aviões: “é uma lástima, uma série de mortes assim sem nenhum, sem nenhum sentido”, dizia o padre reitor. E eu, agarrado ao meu assento, com uma raiva imensa, sabia que sentido havia. Nos tinham escolhido como primeiras vítimas da decadência de tudo, mas eu não ia dar importância. “Farei minha afirmação de vida”, pensava, e não sorri nenhuma das seis vezes que me chamaram para receber diplomas de matemática, história, religião, inglês, geografia e excelência. Olhava para esse público composto por padres, alunos e pais de família, e recebia os aplausos com um aperto de dentes. “Farei minha afirmação de vida”.