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Como contaremos essa história?

janeiro, 2015

O período da escravidão negra no Brasil ainda é uma temática turva, embaçada e confusa. Restaram-nos dos longos séculos de escravização apenas a frieza dos documentos oficiais – algumas listas com registros de comercialização de negros africanos; datas e leis referentes ao trabalho escravo – além de algumas imagens apreendidas em forma de gravura, pintura e fotografia. Não caberá a mim, aqui, discutir ou questionar a força poética dessas obras ou registros em grande parte realizados por nomes já consagrados pela historiografia da arte, antes da questão “arte”, neste caso, me permitirei voltar com mais interesse para a questão “nome”. O acesso a este referente período histórico sempre nos chega, perturbadoramente, de forma familiar e amena. Familiar por não nos depararmos com barreiras culturais reais, ainda que o objeto desses registros, o escravizado ou o que lhe é referente, aparentemente ressalte distinções étnicas. O mínimo embate cultural que enfrentamos ao observar vestimentas ou marcas corporais de origens africanas em uma gravura de Debret, por exemplo, não ultrapassa a superfície da imagem, pois os códigos e linguagens aos quais este referente foi inscrito nos é compreendido de forma clara. A gravura, técnica amplamente difundida aqui pelo europeu, não apresenta dificuldades de compreensão hoje, assim como acredito, também não apresentou no período em que foi realizada. O confronto que se trava diante dessa gravura não põe a linguagem como questão, pois foi realizada com códigos culturais familiares, já estabelecidos de forma hegemônica. Esse acesso característico ao período da escravidão confere certo grau de alteridade, mas não problematiza a fundo. Da mesma forma, por mais desconcertante que seja entrar em contato com números e registros da desumana comercialização de escravizados, a caligrafia segura e precisa do escrivão nunca transparecerá o peso dos grilhões suportados por milhas de mares a caminho do profundo desconhecimento. Considero essas formas de registro que exemplifiquei amenas, pois a verdadeira profundeza da narrativa nos foi negligenciada pela ausência do testemunho. Diante do epstemicídio sofrido, impossibilitou-se a construção de narrativas próprias de quem vivenciou cada trágico episódio, assim como dificultou a perpetuação e resistência das culturas que carregavam os diversos povos, para cá brutal e forçadamente carregados.

Não se trata de buscar um “apuro verdadeiro” do passado, Benjamin já nos deixou claro que esta não é uma tarefa possível ou cabível. Diante do vazio de uma narrativa própria, ou pelo menos mais próxima da ação, hoje nos cabe significar a história dessas pessoas que aqui viveram sem muito direito e quase nenhum incentivo de perpetuá-la. O que nos traz de volta ao nosso primeiro questionamento. Ciente do problema da familiaridade da linguagem que resvala em certa superficialidade – mais um reflexo direto do desmazelo com os africanos que aqui viveram, pois pouco conhecemos de suas línguas de origem – bem como da amenidade que intermediários no processo de construção histórica trouxeram a esses registros de época, ainda assim é de extrema importância operar algum tipo de resgate e valorização cultural.  Sigo, então, com a comparação de duas diferentes estratégias nesse sentido, encontradas geograficamente próximas, ambas nas imediações do Centro da cidade do Rio de Janeiro: o monumento a Zumbi dos Palmares e o Instituto dos Pretos Novos.

Construído em concreto armado e bronze, o Monumento a Zumbi dos Palmares está situado na Avenida Presidente Vargas, esta construída durante o Estado Novo como mais um símbolo de modernização da cidade. Após algumas negociações a respeito de seu local, o monumento foi erguido onde hoje se encontra, nas proximidades da antiga Praça XI, local demolido à ocasião da construção da respectiva avenida. Foco de resistência cultural afrodescendente, a antiga Praça XI teve um papel importante se estabelecendo como ponto de encontro para discussão e vivência da cultura popular, sobretudo da população negra que fixara residência em locais próximos como o morro da providência e cortiços na zona do mangue, por exemplo.  Entrecortada e soterrada pelo asfalto que então seria a maior via expressa da cidade, a antiga praça manifestou-se contra a dita modernização da maneira que lhe era característica: reconhecida como reduto do samba, vários de seus frequentadores compuseram canções de protesto e saudosismo diante do potencial apagamento desse importante e simbólico território.

Diante desse episódio histórico, apenas mais um no qual observamos o desleixo em relação ao patrimônio material da cultura popular carioca, observado principalmente nas transformações urbanísticas promovidas por diversas prefeituras, o antropólogo e então vice-governador Darcy Ribeiro idealizou esse monumento como forma de homenagear o emblemático líder quilombola, como nos conta Roberto Conduru:

“Para representar o mártir do Quilombo de Palmares, Darcy Ribeiro não delegou a um pesquisador a missão impossível de descobrir a verdadeira fisionomia do guerreiro nem instituiu um concurso para seleção da melhor proposta de sua imagem ideal. Embora a placa comemorativa da inauguração do monumento atribua sua criação ao arquiteto João Filgueiras Lima, o verdadeiro mentor da obra foi o vice-governador, que decidiu configurar o herói segundo uma imagem já existente. A iconografia de Zumbi não proveio de Alagoas, estado no qual estão localizados os remanescentes do Quilombo de Palmares, ou de outra parte do Brasil. Darcy Ribeiro se apropriou da forma de uma escultura pertencente ao acervo do Museu Britânico, deslocou-a para outro continente, mandou ampliá-la de 36 centímetros para três metros, fundiu-a em 800 quilos de bronze e a instalou numa das principais vias públicas da cidade do Rio de Janeiro.” (CONDURU, 2007)

Ao apresentar esta apropriação da escultura pertencente à iconografia Yorubá, origem distinta do próprio personagem histórico ao qual se refere, o monumento generaliza a cultura negra como um todo, mas, sobretudo generaliza e esvai a importância do terreno sobre o qual se construiu ao eleger esse personagem, não questionando sua importância ou representatividade, que não estabeleceu relações diretas com o solo no qual a obra habita.

A escolha dessa figura representada tão altivamente, com sua cabeça guerreira coroada a metros de altura do chão, de fato, nos eleva sua importância. Contudo, remete a um tempo que se faz muito passado e distante. O monumento forja em bronze a memória da resistência do Quilombo dos Palmares, que não é desmerecedor de destaque, porém não problematiza questões mais próximas, espacial e temporalmente. Enquanto admiramos e recordamos os grandes feitos de Zumbi, uma enorme pirâmide de concreto armado soterra o que foi um dia um estimado e vivo centro de cultura negra.  Este percurso histórico nos conduz de volta ao nosso já conhecido questionamento. Como contaremos essa história?

Não distante da cabeça de Zumbi, mais próximo ao antigo Cais do Valongo, dez anos após a construção do monumento da Avenida Presidente Vargas, ao longo de uma obra corriqueira de reforma, a recente dona da casa número 36 da Rua Pedro Ernesto deparou-se com uma descoberta que, ao longo de duros anos de negociação em diversas esferas políticas, culminou no Instituto dos Pretos Novos. O termo sítio arqueológico não transparece a totalidade de atividades desenvolvidas no local, o antigo despejo de escravos mortos ou severamente debilitados recém chegados pelo Cais do Valongo emergiu da terra como rastro de memória apesar das muitas tentativas de supressão recorrentes de diversos períodos.  Ao entrar no IPN, quase não vemos as ossadas expostas sob uma vitrine de vidro no chão, porém as múltiplas movimentações de resgate, valorização e discussão da cultura negra atribuem sentido vívido e constante à história desse antigo cemitério.

O que observamos ao frequentar o instituto é a frequente valorização da narrativa no lugar da imagem forte e solitária proposta pelo monumento. O instituto se apresenta de forma vigorosa através de sua representante Ana Maria de la Merced, que conta a saga do local com impressionante força e comoção. Aos pretos novos que não puderam se fazer ouvir, essa senhora se faz representante, reforçando o sentido e importância da narração como ferramenta de perpetuação da história. O laço de identificação da dona da casa com a história que encontrou sob seus pés transcende barreiras étnicas e culturais. Ana Maria segue ativamente atendendo ao apelo deste povo soterrado que descobriu em sua residência, como conta, ao apanhar pelas mãos surpreendentemente ossos da boca de um homem.  A mesma boca calada há séculos atrás, boca que nunca pôde contar a própria história.  A história desse instituto vem de baixo do chão, supera camadas de opressão e se expõe de forma enérgica e dinâmica, alimentada pelas ações e articulações de um espaço que, apesar de habitar um antigo cemitério, se encontra vivo como um organismo, dessa forma não apenas simboliza um período ou acontecimento passado, mas articula-se com o presente constantemente resignificando seu território.

O frio bronze do Monumento a Zumbi dos Palmares conta-nos uma importante e parcial vitória, entretanto, exposto acima de nós cai no solo como um curativo, uma bandagem que esconde a ferida da feia história que o progresso faz questão de acobertar com largas avenidas. Não questiono a intenção de valorização almejada pelo projeto, questiono o posicionamento de sarar ferimentos que ainda encontram-se abertos e pulsantes, virar páginas que ainda não foram lidas.  Enquanto for preciso, ainda devemos retomar os antigos capítulos, abrir o solo e deflagrar parte da história aterrada pelo tempo, trazer à tona para reabitar nossa superfície quantos cadáveres mudos ainda existirem para exumar. Tal qual o Almirante Negro de João Bosco, escolho por monumento o local onde a história de fato reside e se articula: as pedras pisadas no cais.

 


Referências:

BENJAMIN, WALTER. Obras Escolhidas volume 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987
GAGNEBIN, JEANNE MARRIE. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006
CONDURO, ROBERTO. Zumbi Reinventado. Revista de História, 2007
GERSON, BRASIL. História das Ruas do Rio De Janeiro. Rio de Janeiro: Lacerda Editora,
2009

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