Boyhood, recém lançado nas salas de cinema do Brasil, chega badalado de expectativas por sua inovação: Linklater filmou com os mesmos atores durante 12 anos para, no fim, construir um filme que mostrasse o crescimento do personagem principal: dos 6 aos 18. Porém, o mesmo diretor já havia realizado uma experiência semelhante. A trilogia de filmes que começou com Antes do Amanhecer (1995) foi filmada durante 18 anos, mas nesse caso, apenas em três momentos, que correspondem ao lançamento de cada filme. Temos diante de nós duas experiências com o tempo no cinema. As duas partem de uma mesma inquietação – filmar no tempo real – mas apresentam duas sensações diferentes1.
Cinema é experiência. Um filme não está desvinculado da experiência de fazê-lo (da forma como foi feito). Contudo, a experiência de assistir está inicialmente vinculada apenas a obra final. Nos tempos atuais, saturado de informações, é difícil que alguém vá assistir algum desses filmes sem saber a experiência por trás deles. Mas é com o tempo que se revela o quanto a experiencia irá permanecer nos filmes. Estamos acostumados a ver filmes com passagens de tempo e que narram um período longo da história de alguém. O procedimento comum nesse caso é utilizar diferentes atores (ou ainda efeitos especiais) quando um mesmo personagem aparece em idades muito distintas. Boyhood, portanto, já começa quebrando essa lógica industrial, pois para o diretor é essencial essa experiência, não pelo que ela iria representar, mas pela obra que desejava construir. Por isso, independente de qualquer relação comercial, Linklater estava interessado nesse processo.
O filme trabalha com o formato clássico para contar sua história: roteiro muito bem estruturado, decupagem dinâmica. Além disso, não esta interessado em uma história incomum, mas sim na de uma família como as outras – sempre com suas particularidades. De qualquer forma, Linklater apresenta uma visão com sensibilidade. Dentro do cinema clássico, Boyhood inegavelmente é um filme de autor. Uma opção muito interessante dentro da estrutura do filme foi realizar as principais elipses de tempo de forma imperceptível à primeira vista. Em nenhuma das elipses (que marcam o salto de mais ou menos um ano na vida de Maison) a passagem de tempo fica evidente na primeira imagem. Algumas até chegam a enganar – como o corte que mostra o primeiro padrasto enchendo o copo em casa logo após na outra cena termos visto ele parar para comprar bebidas e só em seguida vemos que as crianças estão maiores e o pai já bem mais intolerante. Outras elipses se revelam mais rapidamente, como a que vai da escola para os filhos colocando as placas de Obama nas casas. É interessante também a opção de Linklater em omitir nessas elipses ritos de passagem consagrados – como, por exemplo, o primeiro beijo – mas, pelo andamento do filme, sabemos que já aconteceram.
Isso acontece porque o filme não procura abordar os momentos mais marcantes da vida, mas sim o movimento da vida no geral. “Boyhood é um roadmovie em que a estrada é o tempo”2. O tempo em Boyhood é como uma estrada pela qual passamos enquanto viajamos de carro. Dessa forma, nos mostra momentos simples, comuns, que passam em nossas vidas e que podemos recordar depois. Mais do que uma vida de 12 anos, o filme é a memória desses anos que passaram. Assim como nossa lembrança, quando não se concentra em um momento específico, as cenas transcorrem sem um aprofundamento maior. Também característica da nossa memória, algumas cenas da infância passam mais rápidas, como o início antes da primeira mudança, enquanto momentos já mais velho recebem um tempo maior, como a namorada no final da escola. Por esses motivos, a opção clássica de realizar um filme de menos de três horas faz sentido, ao buscar passar essa sensação: do tempo que passa como o carro na estrada, e as paisagens ficando para trás.
O tempo concentrado está presente na outra experiência de Linklater: a Trilogia. Ao contrário de Boyhood, com Antes do Amanhecer, Antes do Pôr-do-Sol e Antes da Meia Noite, Linklater se concentra em momentos. É através desses (três) momentos que recebemos a sensação do tempo: 18 anos. Se em Boyhood 12 anos passam em algumas horas, na Trilogia os 18 anos acontecem em tempo real. Os filmes se passam em 1995, 2004 e 2013, mesmas datas em que foram realizados. Os atores são os mesmos e vemos seus personagens em três momentos de um romance: primeiro ao se conhecerem, depois ao se reencontrarem e por último casados. Diferente do carro na estrada, que vai passando por muitas paisagens, o tempo aqui está condensado em apenas três, e só sabemos da viagem a partir delas. E se Boyhood trabalha com elipses “imperceptíveis”, na Trilogia a “elipse” entre os filmes é marcante: para quem acompanhou, o tempo não só passou para os personagens, no filme, mas também para o espectador, que também viveu nove anos até reencontrá-los; e para quem assisti hoje, sente a forte passagem do tempo principalmente por ver os atores nitidamente mais envelhecidos3.
Linklater desenvolve aqui, junto com os dois atores, Ethan Hawke e Julie Delpy, um grande trabalho de diálogo, que no último filme inclusive, faz lembrar muito Cenas de um Casamento (1973), a experiência de 283 minutos de Ingmar Bergman. Os filmes acontecem inteiramente em cima dos diálogos, são através deles que compartilhamos o encontro com os personagens e sabemos de suas vidas e seus pensamentos (que vão se desenvolvendo nos filmes). Além disso, é nos diálogos que sabemos do passado, enquanto, por outro lado, o futuro sempre termina em aberto. No primeiro filme, conhecemos aquele casal quando se apaixonam, sem saber o seu futuro, e nem que haveria uma continuação. Nove anos depois, o segundo filme nos proporciona um segundo encontro com aquelas pessoas, onde podemos saber o que aconteceu, mas, de novo, sem saber como continuou. Apesar de esperada, uma continuação não era confirmada. Mais 9 anos e reencontramos os dois casados, e não só voltamos a saber o que aconteceu (e o que está acontecendo) como também compartilhamos com eles um momento novo e característico dessa nova fase na relação: uma briga entre marido e mulher. E esse é o maior exemplo de como a força dos filmes está nos diálogos.
Na Trilogia, portanto, trata-se de encontros, onde compartilhamos com os personagens um momento. Estamos em um instante (que carrega todo o tempo que não vimos). Já em Boyhood acompanhamos uma história que é mostrada para nós. De volta a analogia da estrada, na Trilogia estamos parados diante de uma paisagem e daquele lugar podemos olhar para frente e pra trás4. Em Boyhood estamos de carro e a estrada passa como se o acelerador não dependesse de nós. Assim, a experiência com o tempo na Trilogia não está interessada em nos passar a sensação do movimento da vida, mas sim de um tempo maior (de uma relação), através de três diferentes momentos, mais aprofundados. Dessa forma, até para quem não teve a oportunidade única de acompanhar os três filmes conforme foram lançados, essa experiência permanece em cada um deles, mesmo assistindo um atrás do outro. E isso acontece principalmente pela entrega, não só do diretor, mas também dos atores em trazer a conexão e profundidade que sentimos nos personagens.
Porém, é importante ressaltar que os filmes estão ligados ao tempo convencional (linear). Linklater está mais interessado no tempo da “vida real” do que em outras percepções e possibilidades do cinema. No fundo, ambas experiências procuram abranger a maior identificação. No entanto, dentro dessa proposta (independente de juízos de qualidade) criam-se sensações distintas. O que, por fim, fica evidente em duas falas principais de cada filme. Em Antes da Meia Noite, que a vida é como o sol: nós aparecemos e desaparecemos, e na verdade estamos apenas de passagem. E em Boyhood: que não se trata de aproveitar o momento, mas deixar o momento nos aproveitar. De qualquer forma, Boyhood foi recém lançado, enquanto Antes do Amanhecer já tem 18 anos. Então, depois dos 12 anos de filmagem, agora é a vez do filme viver também. E só com o tempo ele poderá se revelar, pois assim como seu personagem, ainda está amadurecendo.
Notas:
1. O cinema é uma arte do tempo e a relação entre eles é uma de suas questões mais essênciais. Contudo, esse texto se concentra nas experiências de Linklater e de que forma apresentam sensações temporais diferentes. Estamos longe aqui de questões deleuzianas ou de escultores do tempo.
2. Analogia de Pablo Villaça que pego emprestada para desenvolver meus pensamentos.
3. Aqui mais uma diferença com Boyhood, onde acompanhamos o crescimento dos personagens e vamos tendo essa sensação devagar. Entre um filme e outro da Trilogia passam-se quase a mesma quantidade de anos que em Boyhood.
4. A noção de um tempo pra frente e pra trás mostra como os filmes trabalham com uma ideia básica do tempo.
Nota 5: Agradeço aos papos com Arthur, Thiago, Olivia, Anita, Daniel, Telena e, principalmente, João Wladimir. Conversar é imprescindível – e discordar também.