Ultrapassar o ato passivo do puro espectador e meter-se no estudo da vida e obra de Michael Haneke1, cineasta austríaco dos mais premiados da atualidade, é ver-se envolto em concepções epistemológicas sobre o Cinema, teses sobre seu possível “realismo ontológico”1, paralelismo bretchinianos e deleuzianos, mise-en-abyme2 e outros pedantismos teóricos. De fato, é até compreensível, como se os que discorrem sobre ele se revestissem da armadura teórica a fim de não se verem diminuídos diante de um dos nomes mais eruditos do Cinema atual, um verdadeiro auteur que também assina seus roteiros e que verdadeiramente parece ter criado uma filmografia-tese3, cujo conjunto é dos mais complexos, filosóficos e profundos que já vimos surgir.
Assim, meu objetivo neste artigo é muito mais simples, resumindo-se a pontuar duas ou três coisas que sei ou penso sobre suas obras para o Cinema, ou seja, desde O Sétimo Continente, de 1989. Deixo de fora, portanto, seus trabalhos para a televisão que incluem elogiadas adaptações de A Rebelião (1992), de Joseph Roth, e O Castelo (1997), de Franz Kafka, além de criações próprias. O motivo está tanto na dificuldade de acesso a essas obras, quanto na esperança de que um dia, quando esses materiais forem mais acessíveis, eu possa novamente escrever sobre Haneke, um dos meus realizadores prediletos, dessa vez com recorte às suas obras para a TV.
Esse austríaco de Munique, nascido na rabeira da II Guerra Mundial, em 1942, estudou Filosofia, Psicologia e Artes Dramáticas na Universidade de Viena, antes de partir para o trabalho audiovisual. Em entrevista4, reconhece a importância da experiência na produção cênica no trato com os atores, recomendando a todos os que pensam em dirigir para o Cinema. Uma olhada minimamente atenta em seus desenhos de cena permite perceber como é metódico seu trato com as marcações (repare na cena da cozinha do começo de Funny Games, tanto o de 1997, quanto o de 2007). Da Filosofia e da Psicologia, é evidente que muita coisa lhe serviu, tanto à construção teórica de sua visão de mundo (sombria, sem dúvidas), quanto na exploração do comportamento humano e da organização social.
Estreou seu primeiro longa-metragem para o Cinema apenas aos 46 anos, já com outras vinte obras realizadas para a TV, o que justifica muito da pungente maturidade que salta aos olhos tanto através de suas construções narrativas, quanto das escolhas técnicas (com destaque à preferência pelo plano fixo). De fato, como dizem alguns, Haneke parecia desde o princípio esforçado em reiterar uma tese própria a respeito da civilização contemporânea, uma tese filosófica e imagética de caráter “antiburguês, anticonsumo e anticonsenso”5, que escancara a crise das emoções, critica o capitalismo e questiona o processo civilizatório. Por sua origem e biografia, ele tinha tudo para transformar-se num pedante a serviço da hegemonia europeia-ocidental, louvando a boa civilização, o progresso e a vitalidade de seu continente, mas escolheu o caminho das pedras, fazendo um Cinema provocador e disruptivo, cujos alvos centrais são algumas das instituições mais caras a esse status quo, como a mídia, a moral e a família burguesa.
Pelo menos seis de seus filmes têm como centro a família nuclear burguesa (O Sétimo Continente; O Vídeo de Benny; as duas versões de Funny Games; O Tempo do Lobo e Caché), usando-a quase como objeto de uma análise micro-histórica que revelará as mal ajambradas estruturas de uma sociedade doente, emocionalmente congelada [Vergletscherung], construída sobre as égides da dominação, do racismo, do medo e da alienação.
É impossível negar alguma influência de Nietzsche (outro anjo exterminador6) em sua visão de mundo, mas Haneke ultrapassa o niilismo (sem, contudo, ser misantropo, como alguns o acusam) e perde balzaquianamente todas as ilusões, chegando a uma “melancolia raivosa” 7. De fato, a violência é a impressão primeira a partir de seus filmes, quase sempre com irrupções surpreendentes que nos prendem o fôlego e apertam o coração (71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso; A Professora de Piano). Em suas mãos, contudo, ela é instrumentalizada a fim de lançar luz sobre os microfascismos que constituem as sociedades contemporâneas, especialmente as de capitalismo avançado (como Áustria, Alemanha e França, seus cenários), nos passos do Welfare State, que se vangloriam da ampla disponibilidade de bens e serviços, mas cujo passado está maculado por tendências à decadência moral e ao horror – cujas origens o diretor buscou em A Fita Branca (2009) – e que, infelizmente, ainda hoje continuam a germinar.
Na obra de Haneke, “a violência não é nunca pomposa ou digna, ela é apenas trivial”8. O mal é banal para além dos termos arendtianos e a violência serve como passatempo (Funny Games), curiosidade (O Vídeo de Benny), extirpação da tristeza (A Fita Branca), fuga do tédio ou da rotina insuportável (O Sétimo Continente), além de suas clássicas funções de proteção e sobrevivência (O Tempo do Lobo), vingança (Caché) e piedade (Amour). Assim, seus filmes ganham grande impulso provocativo, tirando o espectador da zona de conforto, causando repulsa, ódio, incômodo e náusea. Sua ferramenta mais impressionante, contudo, é a decisão por esconder as cenas mais violentas: raramente vemos a morte de fato, mas sim inferências sonoras ou narrativas (a morte do garoto em Funny Games; o assassinato fora de quadro em O Vídeo de Benny). André Kunigami9 indica que essa “visibilidade sugerida” nos filmes de Haneke, priorizando os espaços fora da tela nos momentos de violência mais aguda, é uma ferramenta indicativa da sua negação à empatia, uma “esquizofrenia narrativa que às vezes mostra, às vezes narra” (p.174) e que revela imbuída em si uma valoração ética.
“A questão, imitada ao tópico da violência, não é ‘Como mostro a violência?’– mas ‘Como mostro ao espectador sua própria posição vis-à-vis a violência e sua retratação?’”– diz o próprio Haneke10. Portanto, me parece que o mais impressionante é que seu modus narrativo também opera como invasor mental, à medida que força o espectador a imaginar como se deu uma cena violenta que lhe foi escondida [caché]. Ao forçar desta forma nossa imaginação, parece que Haneke nos sussurra maldosamente: “Percebe como todos nós somos capazes do mal? Note como é fácil imaginá-lo, ele povoa a mente de qualquer um”.
Tal ato invasivo e desconfortável só é comparável, dentro de seu universo dramático, à abordagem crítica que faz da mídia invasiva e do capitalismo degenerador. Especialmente em filmes como O Sétimo Continente, O Vídeo de Benny e Caché, Haneke alude ao panoptismo foucaultiano para mostrar uma sociedade baseada no medo, onde a agência das telas de TV, câmeras e das coisas em geral coloca em questão o próprio poder de agência humana. Talvez o ápice na abordagem dessa temática esteja nas duas versões de Funny Games (1997 na Áustria, 2007 nos EUA), onde não apenas a narrativa se vale de referências à midiatização da vida contemporânea (quebra da quarta parede com piscadas de olho e sorrisos, rewind da trama via controle remoto etc), como a própria decisão por refilmá-lo nos EUA, onde o culto à mídia é mais exacerbado e a vigilância mais institucionalizada, reforça a tese crítica do filme; para tanto, Haneke faz um remake quase quadro-a-quadro, como tivesse apertado um repeat do vídeo do filme gravado em 1997. Há também uma curiosa brincadeira com o próprio protagonista da versão austríaca, o ator Arno Frisch, que havia protagonizado O Vídeo de Benny em 1992, de temática bastante semelhante, inserindo em ambos os filmes uma referência explícita e bastante simbólica à violência da mídia e alienação da cultura americana: a figura do Mickey Mouse, escondida nos cenários em momentos chaves, como uma mensagem subliminar, e que também prefigura o passo seguinte de sua carreira, isto é, o próprio remake estadunidense (até hoje criticado por alguns críticos que não entenderam – ou nem tentaram – a ironia da atitude). Veja abaixo:
Uma das marcas de suas narrativas (especialmente da primeira fase, filmando na Áustria) é a presença dos noticiários e programas de TV que irrompem a tela e quebram o fio narrativo com relatos semelhantes às manchetes dos dias de hoje (de fato ele chega a passar duas vezes uma mesma notícia, no terço final de 71 Fragmentos…, e considerando sua atenção aos detalhes, não acredito que tenha sido despropositada), sobre política internacional, guerras santas, crises globais e amenidades sobre celebridades. A tese aqui é de que a comunicação global falhou, assim como a globalização, que não conseguiu evitar os conflitos étnicos e sociais (Código Desconhecido). Seguindo essa linha, é muito comum encontrar em seus filmes personagens imigrantes, geralmente em contínuo movimento (71 Fragmentos…), quase nunca compreendidos (Código Desconhecido) e sempre injustiçados (Caché).
Esse ato de olhar é muito importante no Cinema de Haneke e pode ser sintetizado em uma máxima que o escritor português José Saramago (1922-2010) inseriu na epígrafe de Ensaio Sobre a Cegueira (Companhia das Letras, 1995): “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Parece banal, mas o cuidado em reparar é uma habilidade em extinção no Cinema, cujas câmeras estão cada vez mais frenéticas, os cenários cada vez maiores e os planos detalhes cada vez menos interessantes.
Muito influenciado pelo Cinema de Robert Bresson (1901-1999), Haneke faz uma escolha estética pela contenção; assim, seus planos fixos tornaram-se tanto ferramenta simbólica da enfadonha monotonia social que aponta e critica, quanto assinatura visual de seu sistematismo no trato com o mise em scène. Alguns de seus planos duram uma eternidade em termos cinematográficos (o velho ao telefone de 71 Fragmentos…; a cena pós-morte do garoto em Funny Games; a retirada do pombo do apartamento em Amour), tudo para retratar uma sociedade capitalista desprovida de sentido, enclausurada pelo pavor social, apática e emocionalmente reprimida. Essa aparente simplicidade, quase desleixo, não apenas revela aos olhos mais atentos (“se poder ver, repara”) um primor técnico de alta sofisticação no design das cenas, como abre espaço para grandes atuações, como Isabelle Huppert em A Professora de Piano, Daniel Auteuil em Caché, e Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva em Amour.
Michael Haneke constituiu, assim, uma carreira intrigante e difícil, sobre a qual muitas linhas ainda poderiam ser discorridas. Uns o chamam de terrorista visual, outros de enfadonho, muitos de gênio e tem até aqueles que nada entenderam do que ele quis dizer. Eliska Altmann11chega a fazer uma hilária descrição de Haneke como “diretor-autor-dialético-complexo-masoquista-sádico-duvidosa-intelectual-moderno e sintomatologista (e/ou vidente sensitivo) em relação aos males de seu espaço/tempo” (p. 269-270). O fato é que sua filmografia indica posicionamentos muito marcantes, reflexões muito estabelecidas de uma personalidade forte, madura e erudita. Assim, aos espectadores fica o duplo risco, diante de seus filmes, de sentir-se seriamente incomodado, aviltado ou até violentado, ou verdadeiramente impactado por um estilo narrativo sui generis. Seu método de observação passeia por diversos primas (do ponto de vista das crianças em 71 Fragmentos…, O Tempo do Lobo e A Fita Branca; ou dos velhos, em Amour) e vetores (a burguesia austríaca em Funny Games 1997, a francesa em Caché e a estadunidense em Funny Games U.S.; o mundo distópico-apocalíptico em O Tempo do Lobo; a ética protestante em A Fita Branca), mas não busca resposta ou soluções, apenas permite um olhar afastado, sem esperanças, porém inegavelmente corajoso, sobre esse inóspito mundo a nossa volta.
Referências:
1. ELSAESSER, Thomas. Autocontradições performáticas, os jogos mentais de Michael Haneke.
2. SUTHERLAND, Meghan. Morte, com televisão.
3. LAZZARIN, Renan. No MakingOff.com.
4. GRUNDMANN, Roy. Educação não sentimental – uma entrevista com Michael Haneke.
5. MULLER, Adalberto. Kafka na tevê: O Castelo e o cinema de Haneke.
6. TUCHERMAN, Ieda. A Visão Crua: Haneke, o cruor e a crueldade.
7. GOMES, Juliano. Circuitos de Segurança.
8. ULM, Hermán. Imagens do microfacismo:segurança e controle. Seis fragmentos para a obra de Michael Haneke. p. 124.
9. KUNIGAMI, André Keiji. O método de Benny, olhar, mostrar e narrar a morte.
10. HANEKE, Michael. Terror e Utopia da Força: AuHarsard Balthazar de Robert Bresson.
11. ALTMANN, Eliska. (Des)construindo Haneke: olhares da crítica brasileira.
Observações:
Com exceção da nota 3, todos os artigos de referência foram retirados do livro A Imagem e o Incômodo, o Cinema de Michael Haneke org. Tadeu Capistrano, editado pela Caixa Cultural do Rio de Janeiro na ocasião da mostra em sua homenagem, em 2011.
Agradeço ao Arthur Imbassahy pela indicação da fonte de consulta.