EU VEJO coisas piores, eu vejo coisas sem dono, eu vejo o que tudo que há, eu vejo o que não há de ser, e eu vejo o que não há de se pensar, logo, por águas baixas eu já andei, e por cima de morro eu corri, e pelas estradas velhas os carros passaram por mim, e eu olhei pelo retrovisor e vi o meu rosto suado sofrendo com o calor, e toda a atmosfera que me rodeava estava de parada, e esteve sempre assim. Eu pensei:
pois bem, o que há de mais moderno nessa cidade? o que foi que me trouxe até aqui? e mais, porque eu ainda estou aqui? e eu perguntava a todos nós, e eu olhava para as pessoas sem entender direito. e por dentro de todos os olhos a correria eu vi, e o medo eu vi. pode ser porque eu sou coisa feia, mas isso é só uma questão de lugar, eu diria.
olha, se eu estivesse no meio do mato rindo e rindo dessa vontade louca, e uma família viesse de calções largos e câmeras fotográficas penduradas no pescoço, e ela me avistasse de longe, e eu a olhasse de longe, e de repente uma foto, e um flash na minha direção: e dentro da minha cabeça eu balançaria meus braços e gritaria perguntando: o que elas faziam aqui, na minha área? longe de todo o mal, (longe de todas as outras pessoas?). e sorrindo, sem entender os meus balbucios altos, o pai levantaria o braço e me daria um sacolejo de mão, indicando que estava tudo bem. mas não estava tudo bem! aquilo era minha área, minha área! e essas pessoas da cidade tem que sempre virem aqui com as suas câmeras e seus sorrisos e ficarem pisando nas flores e nas pequenas árvores, destruindo ninhos de passarinhos e incomodando os lagartos com seus flashes. ora, logo o contrário, quando eu estou lá, em cima de cimento e concreto, e levanto meus braços dando olá à um urbano eu sou logo visto como louco e sujo. eu nunca destruí vida de ninguém, e eu nunca coloquei concreto sufocando a terra. mas eu sou logo visto como louco no meio de tanta correria, desespero, violência e solidão.
QUANDO larguei aquele lugar jurei nunca mais voltar, e minha mulher chorou aos prantos. na garagem em cima do chão ela bateu seus pés e disse que nunca iria me deixar ir. ela olhava para os lados meio que a procura de apoio dos vizinhos, que absorviam a cena de modo muito silencioso, sem dizer uma palavra (ora porque olhar então? como se a curiosidade servisse de alguma coisa). e eu juro que meus filhos acordaram àquela hora da manhã para descer a escada e olhar seu pai pela última vez só de bermuda de pano dizendo adeus a todos aqueles compatriotas da urbanização. minha mulher correu para meus filhos como que numa última tentativa de me convencer a ficar, e aos prantos os abraçou por trás, e com sua boca distorcida me olhava entre os rostos que não entendiam nada e que seguravam o choro. mas aquela cena não me comoveu! e dando meu ultimo adeus caloroso a eles virei para os vizinhos e saí berrando pela rua “tchau, meus companheiros de cela! tchau a todos vocês! que enlouqueçam em meio de todo essa miséria que é a vida daqui!”.
e por ora eu vaguei pelas ruas sem saber bem direito o que fazer, e se eu andava para um lado ou se andava para o outro. mas me entenda melhor, eu nunca tinha feito isso de fugir de casa só de bermuda, disposto a nunca mais voltar. porque isso seria loucura: se voltasse seria tachado como louco… então por dias eu andei pelas ruas da cidade. e dormi em cima de pedra portuguesa. e desfilei pelas ruas. e até em frente ao meu prédio do trabalho eu desfilei. e me banhei no chafariz com o corpo da mulher nua jorrando água dos seus mamilos. (e depois eu que estou louco, nesse sonho pornográfico).
até que teve um dia que aconteceu coisa engraçada. enquanto eu dormia em frente ao meu antigo escritório vários dos meus colegas de trabalho aos cochichos vieram chegando perto de mim. e a Yolanda veio como a primeira para me cutucar no ombro achando que eu estava dormindo. mas eu estava atento, atento a tudo ao meu redor, atento a eles chegando de espreita para atacar meu sono. e ela foi a primeira, e veio me cutucar bem no ombro, e ficou a espera de alguma reação enquanto eu respirava lentamente fingindo que dormia, e quando ela veio pela segunda vez com seu dedo de unha feita eu dei o bote, e arranquei aquela unha numa dentada só! e foi sangue escorrendo na minha cara toda, Yolanda gritando desesperada, meus colegas de trabalho a socorrendo desesperados, e eu correndo pela praça em direção ao chafariz pornográfico gritando coisas como “iuupi, eu te avisei Yolanda, todos nós te avisamos! nunca fique perto, se mantenha longe dos mendigos sujos da praça. porque não foi nos escutar Yolanda, porque não foi? agora terá que pagar nove dedos a manicure!” e lavei meu rosto no chafariz, antes da policia chegar.
e nessa foi uma breve história, porque a policia me prendeu rápido, me prendeu bem rápido. acontece que tinha uma viatura passando na hora e alguns transeuntes fizeram sinal (como que para o ônibus) e ela logo parou. e com o mesmo dedo indicador apontaram em silêncio da Yolanda para o mendigo limpando o rosto no chafariz. os gorilas vieram na minha cola, e com os seus braços de babuíno e suas cabeças de melão me pegaram pelo pescoço como se eu fosse o maior animal que eles já tinham visto, e me enfiaram dentro da viatura. e foi engraçado porque pelo caminho até a delegacia eles dispararam piadas para o banco de trás me mandando ficar longe deles porque diziam que minha doença se transmitia pelo ar (e eu o louco). nessa noite minha mulher foi me ter com os filhos pendurados nos braços. foi com muito pesar que ela contou meu estado de saúde ao carcereiro, que não se comoveu, mas chamou o juiz em plena luz da madrugada para tentar resolver a situação. não logo ele veio, já uns dois dias depois, (porque juiz tem dessas cargas de ser um cidadão muito do ocupado, e caso de mendigo louco não tinha lá dessas importâncias). mas depois de tanto minha mulher insistir ele veio para me resolver. e chegou com a sua maleta preta ao meu encontro, e minha mulher do lado, como se tivesse acabado de ter dado o seu glorioso buraco para ele. (e eu diria que foi isso mesmo porque com uma piscada de olhar, e um sorriso devastador, o carcereiro me abriu a cela e me deixou escapar ainda que quieto, mas gritando por dentro).
ora, e sou eu que sou louco. corro dos meus desejos mas não corro dos meus princípios, nem que seja para liberar ex-marido carinhoso de prisão fedorenta com trezentos detentos e ratos correndo por cima do sono da gente.
foi engraçado que depois que me liberaram minha mulher esperava que eu me jogasse a seus braços e dissesse que aquilo tudo foi só um distúrbio, uma crise. mas eu disse que não, se tinha algum distúrbio, alguma alucinação, era da parte dela mesmo, que tinha esse ar de ficar todos os dias nessa historia de viver a mesma coisa, e de vez em quando fugir no final de semana sabendo que logo depois estaria de volta. ahá! isso que é uma bela de uma loucura. e o que eu fiz mesmo foi me mandar dali correndo que nem um louco pela rua ensolarada. eu ainda com as chaves do carro na mão escutei minha mulher gritando como se grita à uma criança fugitiva “Pedro Paulo, Pedro Paulo, volte! o que você está fazendo Pedro Paulo, porque faz isso comigo?” e ao fundo a sua voz foi ficando cada vez mais distante, e eu cada vez mais distante. ainda com a chave do carro na mão a joguei pela ponte, e ela foi cair lá no fundo do rio para algum peixe engolir e engasgar.
e dessa vez quando eu corri foi para correr para bem longe dali, porque eu já tinha aprendido com a minha ultima vez: gente de cidade, gente urbana, não gosta de gente suja, que na cabeça só tem coisa de louco. perguntar as horas então, é blasfêmia! escondem o relógio com a outra mão e dizem que não sabem, não sabem as horas. e isso é uma bela piada, eu dizia para eles, como que gente da cidade não sabe das horas? vocês só vivem para isso! e eles viravam os olhos como se o louco fosse eu, e que de nada que saísse da minha boca iria adiantar de algo.
mas como eu disse: dessa vez me mandei e lembrei do meu amigo Robinson, e fui viver no meio da mata sozinho, meio que só procurando as plantas, e as árvores, e os troncos, e batendo na cabeça das galinhas com um bastão de madeira, vendo-as desmaiar, tirando-lhes as penas e assando-as a fogo baixo. e de noite eu só ouvia o meu respirar, e os dos animais loucos que acordavam. e eu pensava comigo mesmo: o que é que seria? o que é que seria não ver as coisas, não ver as coisas piores, não ver as coisas sem dono, não ver tudo que há, não ver o que não há de ser, não ver o que não há de se pensar, logo não ver nada…
e foi num distúrbio,
que arranquei meus dois olhos
para nunca me esquecer
dos tempos de arraiada.