O cinema de Yasujiro Ozu ironiza uma série de dicotomias tão caras ao pensamento ocidental. Possivelmente um dos artistas mais influentes do século passado, sua obra vai além de um mero equilíbrio de antagonismos, o que Ozu faz é desestabilizar por completo pontos de vista tão arraigados entre nós. Ao mesmo tempo é simples e complexo, popular e refinado, um gênio criador e cúmplice da indústria cultural. Como é possível? Segundo estas conceitualizações, não é. Mas o fato, paradoxal ou não, é que Ozu conquistou em sua época tanto o grande público como a crítica especializada. Ainda hoje, já com seu devido lugar no cânone dos grandes diretores, seu cinema preserva a potência de arrebatar quem quer que seja. Um cinema universal – e muitíssimo particular, como também insistem – sofreu durante um longo tempo o desfavor da mesma “crítica” que trata de enquadrá-lo em uma categoria ou outra, renegando seus filmes para poucos especialistas. A recepção da obra de Ozu nos Estados Unidos e na Europa foi, no mínimo, desastrosa. Na década de 60, buscou-se construir um público a partir do que alguns consideravam a maneira correta de ver seus filmes. O resultado foi que até os dias de hoje existe por lá a ideia de Ozu ser o mais japonês dos diretores japoneses, e que para entendê-lo é necessário um conhecimento de uma suposta essência da cultura japonesa. Como veremos a seguir, isso não passa de uma das grandes confusões em relação à sua obra.
Se tudo fosse tão catastrófico, Ozu não seria um clássico. Em uma pesquisa de 2012 da revista Sight & Sound, Era uma Vez em Tóquio (Tokyo Monogatari) foi votado pelos mais importantes diretores do mundo como o melhor filme da história do cinema. Apesar de todo desserviço prestado por parte da “crítica”, há uma excelente bibliografia em inglês sobre a obra do diretor. Infelizmente, os únicos dois livros traduzidos pro português sobre Ozu estão esgotadíssimos. Por outro lado, se no Brasil estamos em desvantagem quanto ao material bibliográfico, temos um grande ponto ao nosso favor. Na metade do século passado, o único lugar do mundo em que filmes japoneses eram lançados quase que simultaneamente dentro e fora do Japão, foi o bairro da Liberdade, em São Paulo. Os filmes de Ozu, portanto, nunca foram “descobertos” no Brasil. As salas de cinema lotavam nas estreias. O distanciamento temporal que resultou em parte da crítica exclusivista europeia e americana não existiu entre nós. Estamos livres para absorver a crítica positiva e ignorar todo o preconceito criado por décadas de invencionices.
ERA UMA VEZ EM TÓQUIO
Não há melhor caminho pra começarmos a apreciação de seu cinema do que com Era uma Vez em Tóquio. Lançado em 1953, o paradigmático filme apresenta uma continuidade de elementos presentes na maior parte de sua filmografia. A história é simples:
Um casal de idosos vive com sua filha solteira em Onomichi, pequena cidade ao sul do Japão. Com o objetivo de encontrar seus outros dois filhos, já casados e morando em Tóquio, os velhos partem pela primeira vez em direção à capital. A meio caminho param em Osaka, cidade onde mora seu quarto filho. Desta visita não sabemos nada, há apenas uma breve menção em uma rápida conversa. Já em Tóquio, aos poucos os pais percebem que todos estão ocupados demais para lhes dar atenção. O filho é médico de um subúrbio; a filha, cabeleireira, trabalha em sua própria casa. A prosperidade deles é muito mais cruel do que os velhos haviam imaginado. A única pessoa que demonstra qualquer sentimento de boas-vindas é a nora, esposa do filho que oito anos antes havia desaparecido na guerra. Estando praticamente fora da família, a nora escolhe estreitar os laços com os seus “pais”. Os filhos, em compensação, colocam as obrigações filiais em segundo plano. Quando não podem mais evitá-las, eles mandam seus pais para uma estação termal em Atami por alguns dias. Sem se sentir bem no spa, os velhos decidem voltar antes do tempo para Tóquio, porém nenhum dos filhos os recebe. O pai sai para beber com amigos e a mãe vai pra casa da nora. Depois de muita frustração em Tóquio, eles resolvem abreviar a viagem e voltar pra casa. O círculo começa a se fechar. No regresso, a mãe fica doente e tem de saltar do trem em Osaka. Também não vemos este encontro deles com o filho. Finalmente conseguem retornar para a casa, mas a saúde da velha só piora. Preocupados, os filhos e a nora vão para Onomichi ver sua mãe. Pouco depois deles chegarem, ela acaba falecendo. Já o filho de Osaka, não consegue chegar a tempo. No funeral, se sente culpado por não ter dado valor à ela enquanto estava viva. A filha mais velha pede, sem nenhuma espera, os pertences da mãe e o outro filho, distante em sua postura médica, esconde qualquer sentimento. Além da filha mais nova, a nora é a única pessoa que fica junto de seu “pai” . Todos os outros filhos rapidamente voltam para suas vidas. Ela, no entanto, nega o papel que estavam lhe atribuindo de ser humano bondoso e admite ser egoísta e não pensar sempre no seu falecido marido. Depois de alguns dias, também retorna para casa. O pai acaba sozinho em sua solidão.
O grande tema por trás de Era uma Vez em Tóquio, certamente, é transcultural: gerações que se afastam com a passagem do tempo. Filhos crescendo, construindo suas próprias vidas; pais envelhecendo, valores mudando. No caso específico do Japão, a insularidade de suas mudanças culturais não impede que o fenômeno da transição entre o tradicional para o moderno também seja realidade comum em outros lugares. Não é tão difícil assim se identificar com o que vemos no filme. Contudo, recorrer ao caráter universal das obras-primas, como se isto fosse uma explicação, além de ser fácil não nos diz nada sobre nada. Era uma Vez em Tóquio é um exemplo claro desta impossibilidade. O roteirista do filme, Kogo Noda, baseou-se diretamente em um filme americano de 1932 chamado Make Way for Tomorrow. As semelhanças temáticas entre os dois filmes são enormes. Um casal de velhos deixa sua casa e tem de ficar com os filhos. Do mesmo modo que em Era uma Vez em Tóquio, os filhos têm suas preocupações e não querem perder nem tempo nem dinheiro com os pais. O enredo é praticamente o mesmo, diversas situações também se parecem. Então por quê o filme americano, apesar de excelente, não chega nem aos pés da qualidade e influência de Era uma Vez em Tóquio?
Logo de início, precisamos abandonar a ideia de que o enredo do filme determina sua qualidade. Ozu, assim como outros grandes cineastas, cria uma linguagem cinematográfica própria. Definir sua qualidade a partir de uma pequena sinopse, literária diga-se de passagem, é um absurdo. Na corrente hollywoodiana, tamanha a padronização do meio, o conteúdo dramático serve como fator diferenciador entre filmes. Provavelmente, caso fosse dirigido por algum produtor de Hollywood, a morte da velha seria o momento catártico de Era uma Vez em Tóquio. Sem ele, por que alguém passaria 2h15 em frente à tela? Pelo mesmo motivo que contei o “final do filme”: todo o resto também importa. Ozu deixa de fora justamente o que o cinema convencional faria questão de mostrar. Não vemos a cena da morte, a viagem do trem ou o encontro dos velhos com o filho de Osaka.
Ozu acredita que cenas dramáticas pouco acrescentam na experiência do espectador. Prefere focar nos pequenos gestos, em sorrisos complacentes por trás de palavras duras, nos olhares decepcionados que os idosos trocam entre si. O cotidiano com seus momentos corriqueiros passa a ter uma força enorme na construção da narrativa. Sabemos do pouco caso que os filhos de Tóquio têm dos pais não por discursos eloquentes – ou vazios – mas sim pelas suas atitudes e ações. Antes da mãe morrer, o filho de Osaka diz para um colega que os pais não deveriam ter saído do trem, não fosse a doença da mãe, depois cita rindo o provérbio “não adianta colocar o cobertor sobre o túmulo”. Do mesmo modo, os filhos atarefados despacham os pais para um spa em outra cidade. Primeiro reconhecem as vantagens práticas da resolução, em seguida justificam entre si: “eles podem aproveitar os banhos e descansar. Um velho casal gostaria mais disso do que de andar por Tóquio”. Em nenhum momento o olhar do diretor se sobrepõe ao do espectador, isto é, não há uma imposição de significados. Uma cena em que a filha cabeleireira, imersa na rotina, reclama com o marido por ele ter trazido bolinhos caros pros sogros, ao mesmo tempo que os come sem dar a mínima atenção, pode passar despercebida pelo público. Ozu não cria através da montagem significados óbvios. O que faz é reorientar nossa atenção em torno dos fatos comuns da vida. Se vivemos atualmente em um mundo no qual o privado foi banalizado pelos reality-shows, o dia a dia burocratizado em uma rotina de repetições, a arte megalomaníaca é apenas uma outra face de tudo isso. Descobrir um filme como Era uma Vez de Tóquio significa rever nossos olhares, nossa posição frente ao cinema, mas principalmente a relação que temos com nosso próprio dia a dia, querendo ou não, ainda parte fundamental da vida humana.
Pode-se dizer que Era uma Vez em Tóquio se constitui de um feixe de olhares, uma multiplicidade de pontos de vista. No começo do filme vemos imagens amplas da pequena cidade portuária, escutamos o apito do trem e seu barulho nos trilhos. Tudo muda e de repente nos encontramos no interior de uma casa, como se estivéssemos sentados com esta família no tatame. Nossa posição, no entanto, é constantemente deslocada. Não existe um lugar privilegiado para o espectador, os diálogos acontecem através de nós, não para nós. Da viagem até Tóquio não vemos nada. A transição entre espaços é pontuada com imagens anônimas de partes da cidade. Uma chaminé, um varal com roupas penduradas, uma clínica médica. Nunca fica claro quem as vê. O mesmo acontece quando o casal de idosos tenta conhecer a gigantesca Tóquio. Sua percepção do espaço é como a de quem recebe um cartão-postal. A Tóquio que os velhos conhecem é impossível de ser expressa em uma única imagem ou palavra. Segundo Kiju Oshida, estamos diante de uma “geografia de ausências”.
Nos momentos em que o drama da narrativa parece se sobressair, Ozu insere acontecimentos banais que rompem com a ordem do filme. Negar o caos das situações corriqueiras, somente para satisfazer uma viciada vontade dramática, é o oposto das propostas estéticas do diretor. Quando os velhos estão no spa envoltos em uma aura sagrada, contemplando o mar e conversando, um olhar caótico corta essa ordem imaginária. Vemos duas faxineiras em uma conversa gritante sobre as intimidades de outros hóspedes. De maneira semelhante, uma conversa com alta carga emocional entre a nora, esposa do filho morto, e seus sogros, ou pais como ela ainda os chama, tem seu clímax interrompido pela chegada do entregador de comida. Essa resistência em criar um melodrama perpassa todo o filme. Há diversos pontos constantemente reiterados na obra de Ozu. O proposto aqui não passa de um esboço. Esgotar esta infinidade de olhares dentro do filme, além de impossível, é tarefa infecunda. Somente a experiência direta com Era uma Vez em Tóquio pode fazer com que estas pequenas repetições produzam um sentido para cada um de nós.
UNIDADE
É inegável o fato de Era uma Vez em Tóquio ser o mais conhecido de seus filmes. Mas classificá-lo como sua obra-prima pode não ser tão pertinente assim. Supõe-se com o uso do termo, uma superioridade em relação às outras obras do diretor. Quando se trata de Ozu, nada pode ser mais irônico do que afirmar que determinado filme se destaca dentro de sua filmografia. Entre 1927 e 1962, Ozu dirigiu cerca de 54 filmes, dos quais apenas 36 encontram-se preservados. O conjunto de sua obra apresenta uma consistência sem igual na história do cinema. Com algumas exceções, principalmente no começo da carreira, seu tema comum é a dissolução da família japonesa. A partir de 1949, com Fim de Primavera (conhecido no Brasil pelo título de Pai e Filha), sua fase mais coesa tem início. Até sua morte em 1962, Ozu faz aproximadamente um filme por ano. Além dos mesmos atores e da mesma temática, o estilo de filmar se condensa de tal forma que em face de tantas similaridades, todos os seus filmes acabam por se parecer imensamente. Como ele próprio, com seu típico humor gostava de ressaltar: “Se sou um fabricante de tofu, tudo que posso fazer é tofu – é o que estou sempre dizendo. Uma mesma pessoa não é capaz de fazer tantos filmes diferentes. Num restaurante de loja de departamentos, nesses onde há de tudo, não se consegue uma comida gostosa. Assim é na realidade. Mas, mesmo que tudo pareça igual para as pessoas, eu descubro coisas novas, uma a uma, e, com interesse novo, dedico-me à obra. Sou exatamente como um artista que continua a executar várias pinturas das mesmas rosas”.
A começar pelos títulos, referências às estações do ano aparecem em mais da metade dos filmes na década final de sua carreira. Coral de Tóquio, Mulher de Tóquio, Crepúsculo de Tóquio, Um Albergue em Tóquio são alguns outros exemplos de repetição. O emprego do mesmo elenco também é algo recorrente. Ryu Chishu, o velho em Era uma Vez em Tóquio, aparece na maioria dos filmes no papel de pai, mas por vezes desempenha papéis secundários. Setsuko Hara, a nora complacente, representa mais duas vezes uma personagem chamada Noriko. Os nomes, as atividades, certas exclamações, enfim, tudo no cinema de Ozu parece se repetir uma hora ou outra. Cada filme seu é uma releitura, sempre única, do mesmo tema. Ao sentar-se para escrever um novo filme com seu parceiro Kogo Noda, à base de muito saquê, os dois invertiam a ordem tradicional de como um roteiro deve ser feito. Confiando no seu repertório de temas, eram atribuídos aos personagens nomes e papéis sociais antes mesmo da história ser delineada. A partir dos diálogos em cena é que as respectivas personalidades surgiam. Baseando-se nas reações perceptíveis no cotidiano, o roteiro, junto com os próprios personagens, por fim ganhavam vida. Tal método explica o porquê de cada um de seus filmes, apesar de todas as claras repetições, possa ser visto como uma obra extremamente particular. O espectador consegue acompanhar a construção de sentido das ações em todo seu processo. Há uma lógica interna, uma humanidade nos personagens somente vista nas obras-primas, no sentido mais amplo do termo.
Já as características formais de Era uma Vez em Tóquio estarão presentes em todos os seus filmes posteriores. O estilo tão característico de Ozu pode ser de grande valia para repensar o cinema de autor. Resgatando algumas críticas feitas à teoria autoral, no caso de Ozu, dissociá-lo do contexto de produção vigente em sua época é impossível. Pertencentes à Era de Ouro do cinema japonês, assim como Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e Mikio Naruse, sua arte só pôde se realizar plenamente dentro de um sistema que tornava viável suas decisões. Os prestigiados diretores japoneses tinham rara autonomia dentro do estúdio, eram eles que detinham o controle do filme. No seu caso específico, foi no estúdio Shochiku que encontrou seu lugar de diretor. É importante ressaltar que não estamos falando de uma indústria precária. Para se ter uma ideia das proporções, durante a década de 20 e 30, cerca de 600 filmes eram lançados por ano no Japão. No Brasil, entre 1995 e 2012, somando todo o período, apenas 880 longas-metragens foram produzidos. Em 1949, Ozu reuniu ao seu redor, não por falta de opções, uma equipe que viria acompanhá-lo até o final da vida. Além do já mencionado roteirista, de fundamental importância foi Yuharu Atsuta, seu fiel diretor de fotografia, ou como ele próprio se definia, o guardião da câmera. Outras funções essenciais como a montagem e o som, por exemplo, também tiveram seus respectivos encarregados. Tamanha consistência, principalmente na última década, não pode ser entendida sem levarmos em conta as contribuições específicas de cada membro da equipe. Todos eles tinham que saber, ou melhor, poder botar em prática o que ficou conhecido como o estilo-Ozu.
INOVAÇÕES TÉCNICAS
Em um ensaio para a Cahiers du Cinéma, Alain Bergala destaca a recepção de Ozu na imprensa francesa da década de 1970. O sentimento evocado naquela época é o mesmo sentido por nós: um cinema limpo, em que as imagens parecem independer do autor. Análises posteriores, a partir do estudo de suas técnicas, deixaram claro que não só Ozu negava a ilusão cinematográfica como também foi um dos diretores mais rigorosos em relação às suas escolhas formais. Autores como Kristin Thompson, David Bordwell, Noël Burch e Tadao Sato produziram excelentes estudos sobre este aspecto da obra do diretor. Todos eles chamam a atenção para o fato de Ozu romper com o paradigma do cinema clássico ao mesmo tempo que elabora para si um sistema próprio, coeso, e extremamente inovador. A recusa desta linguagem cinematográfica convencional é melhor pensada em termos de depuração do que de perda. Sua câmera sempre parada, em altura mais baixa do que o filmado, por exemplo, só pode ser entendida em relação às outras decisões estéticas do diretor. Em Era uma Vez em Tóquio a câmera se move apenas duas vezes. Ozu eliminou completamente as filmagens panorâmicas em favor desta câmera estacionária que nunca age em função dos personagens nem do espectador. Os diálogos são filmados ignorando a norma campo-contracampo, isto é, os personagens conversam sem confluir seus olhares. Por vezes, fitando a câmera, olham na mesma direção, o que causa um certo deslocamento na posição do espectador. A relação com o espaço também não se baseia num ponto de vista específico, de um narrador por assim dizer. Um personagem pode sair de um cômodo pela direita e na tomada seguinte, com a câmera posicionada em outro ângulo, entrar pelo mesmo lado da tela que saiu. Na convenção clássica esta quebra de continuidade seria um erro elementar. Do mesmo modo, em vez de utilizar fades ou fusões, Ozu cria uma forma muito particular de transição entre cenas, os chamados “pillow-shots”. Estas cenas intermediárias se situam, aparentemente, fora da narrativa. Se podemos afirmar, com ressalvas é claro, uma função para os pillow-shots seria a de realizar a transição de uma realidade objetal e/ou espacial, para o desenrolar de uma ação humana. Uma das primeiras imagens que vemos de Tóquio é a da placa informando a respeito de uma clínica médica e o nome de um doutor. No entanto, só sabemos que o filho do casal de idosos é o médico em questão muitas cenas depois. Tais espaços intermediários também descentralizam o foco no ser humano como ente físico. A partir de um não-ponto de vista, vemos cômodos vazios porém habitados, ambientes logo antes de uma pessoa entrar ou pouco depois dela sair, objetos utilizados no cotidiano. Os “pillow-shots”, portanto, nos mostram retratos da presença humana através de sua ausência.
Podemos situar o cinema de Ozu entre dois eixos. Até agora, somente o primeiro deles foi apresentado: trata-se da negação de uma única perspectiva na abordagem do cotidiano. O segundo, tão fundamental quanto, se refere à maneira pela qual Ozu compõe as imagens de cada um destes olhares. A composição de cada quadro é de suma importância para o diretor. Em seu cinema, os objetos e ambientes deixam de ser um mero pano de fundo para a ação dos personagens. Assim como no Gabinete do Dr. Caligari, filme expressionista de 1920 em que as sombras são pintadas diretamente no cenário causando uma sensação de distorção, nos filmes de Ozu ocorre algo parecido porém contrário em seus efeitos. Tudo deve se conformar à simetria e proporcionalidade de cada plano. Os sets eram construídos não a partir de preceitos arquitetônicos, mas exclusivamente para satisfazer a composição de cada imagem. Objetos eram remanejados espacialmente a cada novo ângulo. As divisórias das portas corrediças (shoji) também mudavam seu tamanho de acordo com a posição da câmera. Para Ozu, o verdadeiro erro não constitia em quebrar a continuidade do filme, mas sim em desrespeitar a perfeita simetria das linhas verticais e horizontais, o enquadramento, seja de objetos ou de pessoas. A baixa altura da câmera cria a bidimensionalidade tão necessária para esta composição da tela. Os elementos verticais e horizontais, característicos da tradicional casa japonesa, eram destacados com esta câmera-baixa que elimina a profundidade. A crítica desatenta cismou em naturalizar tal posição de câmera como se fosse a de alguém sentado no tatami. De acordo com o que vimos até então, é muito problemático pensar seu cinema através destes termos. Mais interessante é observarmos como, por exemplo, esta câmera foi usada com objetivas 50mm. Enquanto a maior parte dos cineastas utilizava lentes de 35mm, Ozu insistia nelas mesmo que isto significasse a construção de um set específico para esta distância focal. Se por um lado é a lente que mais se aproxima do olhar humano, por outro também é a que menos distorce a simetria das linhas. Haja vista as reações do público após um de seus filmes, é possível afirmar que todo seu rigor não se materializa em uma rigidez das imagens. No final, Ozu parece resolver magistralmente certo paradoxo. As imagens parecem independer de seu autor não por causa de uma resistência em adotar um ponto de vista, mas justamente o contrário. É somente afirmando, de modo extremamente arbitrário e decidido, cada uma destas perspectivas, sem nunca subjugar uma à outra, que Ozu cria um cinema de extrema discrição.
TRAJETÓRIA
O que foi dito pode suscitar a imagem tipicamente Ocidental do artista como gênio inspirado. Ozu criando fórmulas originais ex nihilo, de uma hora para outra, bastando aplicá-las e pronto, feito um estilo. Apesar de tal narrativa fazer ainda menos sentido quando a arte é o cinema, certamente encontra adeptos por aí. Com a descoberta de alguns filmes até então perdidos, foi possível entender o processo de tentativa e erro presente no decorrer de sua carreira. Em 1923 Ozu começa como assistente nos estúdios Shochiku e em 1927 dirige A Espada da Penitência, seu primeiro filme. Entre 1928 e 1931, ele faz nada menos que 21 comédias. Sem dúvida um número impressionante. Os poucos filmes que restam desta época demonstram mais que uma influência do cinema Hollywoodiano, em certos aspectos há uma clara imitação. Da estrutura do roteiro, passando pelas atuações, até a moral da história, tudo parece ser copiado dos Estados Unidos. Com a crise de 29 e sua repercussão na sociedade japonesa, seus filmes incorporam um aspecto mais social. Ozu se especializa no gênero gendai-geki, isto é, histórias que tratam de questões contemporâneas – em oposição aos filmes de época, do tipo samurai.
“A vida do japonês é absolutamente não-cinematográfica. Por exemplo, ainda que seja para simplesmente adentrar uma casa, é preciso abrir a porta corrediça, sentar-se no vestíbulo, desamarrar os sapatos, e assim por diante. Não há como evitar estagnações. Por isso, o cinema japonês não tem outra saída senão retratar essa vida propensa a estagnações por meio de mudanças que a adaptem à linguagem cinematográfica. A vida no Japão precisa tornar-se muitíssimo mais cinematográfica.”
Assim declarava o jovem Yasujiro Ozu à Kinema Junpo no começo de 1933. Evidentemente, Ozu adaptou a linguagem cinematográfica ao Japão, e não o contrário. Desde 1931 já tinha certa fama, mas apenas em 1932 com Eu nasci, mas…, consolida sua posição de importante cineasta japonês. É a partir desta época que seu estilo começa a assumir uma forma mais nítida. A linguagem cinematográfica é de pouco em pouco depurada. A narrativa vai se desdramatizando, a montagem perde o caráter controlador de emoções, os movimentos de câmera são reduzidos, a panorâmica eliminada. Tantas reduções não significam uma perda, mas sim a afirmação gradativa de uma nova maneira de filmar. As fusões e fades cedem lugar ao corte seco para cenas de transição. Tudo passa a ser filmado com uma câmera-baixa que frequentemente muda de lugar no set. O jeito que os personagens conversam, olhando diretamente pra câmera, por exemplo, ilustra bem a indiferença de Ozu pela forma clássica de se fazer cinema. Enquanto experimentava com as técnicas, por vezes fazia com que os olhares de seus personagens se cruzassem, outras vezes eles simplesmente olhavam para o mesmo lado, causando uma típica ruptura na ilusão de continuidade. Como se sabe, foi esta última posição, a “errada”, que ele finalmente adotou.
Por mais prazeroso que seja buscar um rótulo genérico para Ozu, assim como para várias outras personalidades complexas, mais atrapalha do que ajuda a relação do público com a obra. Ao mesmo tempo que era classificado por uns de tradicional, outros o chamavam de moderno, experimental e conservador, insular e universal. E assim por diante… Todas estas generalizações contraditórias dizem muito mais a respeito de quem as aplica do que sobre o diretor. Ainda que tenha inovado em muito nas técnicas, durante toda sua vida foi relutante em adotar as inovações tecnológicas. Foi o último dos grandes diretores a fazer a transição para o cinema sonoro. Em 1931 o som chega ao Japão, mas somente em 1936, depois de lançar 13 filmes mudos na era sonora, faz sua estréia com Filho Único. Ironizando a pretensa superioridade do cinema falado, em certo momento da história, o filho leva a mãe ao cinema para que ela veja as maravilhas trazidas pelo som. Ozu insere o filme que os personagens estão vendo dentro do seu, contrapondo os atores “do cinema” cantando, com os silêncios do filme que estamos assistindo, em que efeitos sonoros como o apito do trem se destacam mais do que a própria fala dos personagens. Já a mãe, entediada, acaba dormindo. Não foi só o som que demorou a ser assimilado, a cor também só aparece em 1958 nos seus filmes. O cinemascope por sua vez, nunca foi incorporado. Diante da crise econômica provocada pela concorrência da televisão, o widescreen é inventado em resposta. Ozu percebeu muito bem que inovação, progresso e melhora, não andam necessariamente juntos.
Tais transições, contudo, não representaram uma mudança na temática de seus filmes. Provavelmente como forma de resistência, ele se adapta, mas não submete a estrutura de sua obra à revisão. Na década de 30, assim como durante toda a carreira, seu tema fundamental é o núcleo familiar e suas tensões. A diferença é que aqui os fatores são eminentemente externos, por exemplo, o desemprego. Com Eu Nasci, mas… de 1932, inaugura-se o realismo social japonês. Em 1935, lança Um Albergue em Tóquio, considerado precursor do neorrealismo italiano. Feito 13 anos antes, antecipa em muito Ladrões de Bicicleta. Para salvar a filha de uma mulher que conhece no albergue onde passava a noite, um homem resolve cometer um assalto. Como de costume, o momento mais dramático é omitido, deixando a cargo do espectador a construção da cena. Em vez de ludibriá-lo com todo o drama do roubo, prefere mostrar as reações dos personagens ao acontecido.
Após regressar da guerra pela primeira vez como cineasta alistado, Ozu define a partir de Os Irmãos da Família Toda uma nova abordagem das relações familiares. Diante de tantas atrocidades vistas em um tempo de completa instabilidade, inesperadamente, seu cinema torna-se ainda mais coeso. Seu realismo social é substituído por uma ênfase cada vez maior nas relações que os membros da família mantêm entre si. Com base no cotidiano japonês, Ozu consegue retratar questões transculturais. Seus filmes tinham tanta verossimilhança com o dia-a-dia, e tratavam, aparentemente, de assuntos tão banais, que os distribuidores japoneses durante muito tempo sustentaram a ideia de que Ozu era “japonês demais” para o Ocidente. Somente no final da década de 60 começou a ser visto fora do Japão – e do Brasil.
RECEPÇÃO NO OCIDENTE
Quando falamos em cinema do Japão, o primeiro nome que vem a mente é o de Kurosawa. Não é por menos, foi ao ganhar o Leão de Ouro em Veneza com Rashomon que o cinema japonês se populariza no Ocidente. Três anos depois, Contos da lua vaga de Mizoguchi consolida a tendência do que viria a ser entendido como “cinema japonês” pela Europa e pelos Estados Unidos nos anos subsequentes. Cria-se a imagem de um Japão exótico, dotado de um misticismo Oriental, onde gueixas e samurais caminham lado a lado. A exclusão dos filmes de Ozu desta visibilidade internacional, é, portanto, quase que automática. Para os próprios japoneses, ele não parecia um produto de exportação rentável. Em 1972, alguns anos depois das primeiras exibições de seus filmes nos EUA e na Europa, Paul Schrader publica o primeiro livro em inglês sobre Ozu. O autor destaca semelhanças com os filmes de Robert Bresson e Carl T. Dreyer, hoje também cânones do cinema mundial. A utilização de termos como “Zen” para explicar sua “universalidade”, abriu caminho para várias outras teorias essencialistas. Entretanto, o mundo que os japoneses percebiam nos filmes de Ozu era completamente diferente da imagem que os ocidentais cultivavam do Japão. Quando finalmente se começa a discutir a sua obra nos Estados Unidos, mantendo o padrão nada antropológico, uma série de simplificações da cultura japonesa são feitas. O saquê conviver com o uísque, ou posters hollywoodianos no mesmo ambiente que tatames, são fatos daquela sociedade em intensa modernização. Questionar o grau nipônico destas imagens tão retratadas por Ozu, só poderia mesmo ser coisa de fora.
É muito curioso o que a falta de sensibilidade em entender outras culturas pode causar. Aqui a ingenuidade, mais que o imperialismo, se volta para o Japão nesta pueril tentativa de compreender uma cultura diferente. A recepção crítica ocidental incorpora a ideia japonesa de que Ozu era “japonês demais” para o Ocidente. O que os críticos europeus e americanos não percebiam é que os japoneses só consideravam Ozu muito japonês porque estes próprios críticos, durante anos, compraram a ideia de um Japão idealizado, exótico. Ozu era japonês demais por simplesmente ser japonês. Desde então, os críticos ocidentais tentaram destilar esta suposta essência “japonesa” da obra de Ozu, propondo inúmeras relações entre seu cinema e a estética tradicional. O absurdo chega ao ponto de afirmarem que “se alguém for insensível à arte japonesa, muito provavelmente também o será com relação à Ozu”. Sabe-se que Ozu era um diretor conhecido no Japão, não apenas exclusivo a um grupo de críticos que admirava os aspectos técnicos de sua obra. Apesar de não ser um blockbuster, encontrava um público considerável na época. É compreensível que isto intrigue os críticos ocidentais. Como forma de introduzi-lo no Ocidente, houve uma tentativa de elucidar supostos valores “orientais”, emular o “olhar” que o japonês comum possuía. O resultado foi trágico. Até hoje persiste a idéia de que Ozu é o “mais japonês dos diretores japoneses”. Além de ser totalmente desnecessário, tudo piora quando se descobre que tais teorias não possuem qualquer fundamento. Nos últimos tempos, algumas traduções de teóricos japoneses sobre o assunto foram publicadas. A indignação entre eles é óbvia. Como se não bastasse ter sua cultura reduzida, os ocidentais ainda o fizeram de maneira totalmente equivocada. Hasumi Shigehiko, uma das maiores autoridades no Japão sobre cinema japonês, também referência quando se trata de Ozu, expurga todos os clichês da “estética japonesa” atribuídos ao diretor. A menção recorrente das estações do ano no título de seus filmes contribuiu para várias associações com o haiku. Curiosamente, como Shigehiko bem repara, nenhum dia nublado aparece em toda sua obra. Ozu cria um universo em que o clima sub-tropical japonês é ignorado. Não existe transição entre as estações do ano, a relação com a natureza perde toda sutileza das nuances. Os dias ensolarados só possibilitam uma clareza pouco típica daquela tradicional estética. Isto não faz Ozu ser menos japonês, mas conformá-lo forçosamente à uma essência imaginária é um absurdo que no final das contas, limitou em muito o alcance de sua arte.
Felizmente aqui no Brasil a história foi outra. Como todos sabem, a maior colônia japonesa do mundo se localiza em São Paulo, no bairro da Liberdade. Desde 1929 já se exibiam filmes japoneses pelo interior paulista. Com uma breve pausa durante a Segunda Guerra Mundial, São Paulo foi o único lugar no Ocidente onde filmes japoneses eram lançados ao mesmo tempo que no Japão. Nas décadas de 50 e 60, a Liberdade contava com quatro grandes cinemas. Um deles, o cinema Niterói, possuía 1.500 poltronas. A repercussão foi enorme. Inúmeros artistas brasileiros foram influenciados. Carlos Reinchenbach, Walter Hugo Khouri, Rubem Biáfora, Claudio Willer, só pra citar alguns nomes, admitem o impacto direto do cinema japonês em suas carreiras. Décadas antes do tardio reconhecimento de Ozu nos EUA e na Europa, seus filmes já eram vistos aqui no Brasil. É claro que aqueles tantos lugares não eram ocupados apenas por certos nomes consagrados. Milhares de pessoas, dentre imigrantes, descendentes de imigrantes e o público paulistano em geral, frequentavam as salas.
HORIZONTE LIMPO
À primeira vista, Ozu não se destacava de todos aqueles outros diretores japoneses. A discrição de seus filmes mistura arte e vida ao ponto de seu cinema poder ser incorporado como parte da experiência cotidiana. As imagens chegam limpas até nós, desprovidas daquele histórico fardo obscurantista. Estamos em uma posição privilegiada de ação. Toda sua filmografia se encontra disponível na rede. Busquei neste panorama, a partir de duas coletâneas – Ozu o extraordinário cineasta do cotidiano e Ozu’s Tokyo Story – e de dois livros – O Anti-Cinema de Yasujiro Ozu de Kiju Yoshida e Ozu and the poetics of cinema de David Bordwell – introduzir e acrescentar um pouco à apreciação crítica de sua obra em língua portuguesa. Se muito do que foi dito neste artigo pareceu desnecessário, esqueça os livros e vá assistir Era uma Vez em Tóquio. Mediante ou não a leitura de textos críticos, o simples contato com a obra de Ozu é experiência, mesmo que sutil, extremamente enriquecedora para qualquer ser humano.