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Uma batucada no terreiro da Portela

novembro, 2024

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I – INTRODUÇÃO

O intuito deste ensaio é debruçar-se sobre essas fotografias da visita de Walt Disney na Portela veiculadas em jornais da época¹. As imagens não são encaradas pela perspectiva de que são capazes de descrever objetivamente uma realidade, mas sim como o resultado de um encontro de protagonistas imbricados em relações políticas e sócio-históricas, como sugere Azulay. A fotografia acontece com excessos e faltas que não são compartilhados por todos que participaram do evento, e por isso não representa a perspectiva total da realidade.  Dessa maneira, o que importa é pensar as fotografias do evento na Portela sem endossar reificações que, no caso dessas imagens, giram em torno da celebração de um país de harmonia racial.  A proposta é ir além do que as legendas nos apontam sobre as imagens², e até mesmo do sentido da visão como forma de abordá-las, pretende-se neste trabalho ouvir as imagens, como

“um método que se reconcilia com as fissuras, vazios e interstícios que emergem quando nos recusamos a aceitar a ‘verdade’ de imagens e arquivos que o estado procura oferecer através de sua produção de sujeitos posados para produzir ‘tipos’ particulares de sujeitos regulados e reguláveis” (Campt,2017,p.8)³

Se é possível encarar as fotografias tiradas naquele domingo de agosto na Portela como algo além da prova material de um evento, o que ela é capaz de nos mostrar? O que teriam essas fotografias e seus protagonistas a nos dizer e que as legendas não apontaram? Busco ouvir dessas fotografias o que elas tem a me dizer não sobre a excepcionalidade da visita da equipe de Walt Disney à Portela, mas captar nela o que há de quieto, cotidiano.

 

Essa seria a última vez que Paulo Benjamin de Oliveira, um dos fundadores da escola de samba, pisaria na Portela.⁴

Conectando-se à imagem por sua frequência mais baixa (Campt, 2017) , a que nos liga ao que nela há de tão rotineiro que passa despercebido, a festa é um traço comum da sociabilidade nos quintais/terreiros nas periferias do Rio de Janeiro. Fundamentais para a criação e consolidação do samba urbano carioca enquanto gênero musical, tais festas marcam a experiência da diáspora negra na cidade (Sodré, 2002). 

II – NO TERREIRO DA ESCOLA DE SAMBA PORTELA

Walt Disney assiste de perto a uma criança sambar⁵

Em reportagem do dia 28 de Agosto de 1941, o jornal O Imparcial emoldura uma fotografia  com a chamada “No terreiro⁶ com Paulo da Portela, com desenhistas, ‘câmeras’, ‘kodaks’ vendo de perto uma ‘batucada’ ”. 

Dezessete horas. A caravana, em carros lustrosos, de chapas oficiais deixou o Copacabana Palace, a majestade luxuosa da praia e dos arranha-céus para varar a cidade, de lado a lado e ir bater em Madureira, lá pra dentro, na Estrada do Portela. (O Imparcial, 1941)

A reportagem está se  referindo ao evento que se deu no dia 24 de Agosto de 1941: a ida de Walt Disney até o terreiro da Escola de Samba Portela. Não em Madureira, mas no bairro vizinho de Oswaldo Cruz, ambos parte da região conhecida como subúrbio⁷ . Ambientando os leitores na empreitada, continuam:

Tudo ali era diferente da cidade que os passageiros dos carros lustrosos conheciam. A gente, mesmo, era outra. Em madureira só se fala uma lingua – a brasileira porque nas casas de um só pavimento e muitas sem assoalho os pés teem mais contato com a terra e as coisas do Brasil… (O imparcial, 28 de ago. 1941)

A caravana de Walt Disney era acompanhada do Diretor de Turismo do D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda) e, em outros carros, haviam repórteres, desenhistas, musicistas e fotógrafos. Paulo da Portela era o contato dos norte-americanos e o organizador da visita do desenhista à escola de samba.  Antes da chegada da comitiva,  uma peixada foi servida, já que seria “o cúmulo esperar que essa gente espontânea e simples ficasse aguardando uma voz de comando para dar início a sua alegria”. As pessoas ali sabiam da importância da ocasião, “bastava dizer aos habitantes do morro: vem aí o homem dos desenhos animados. E não se precisava mais nada”. Paulo da Portela, descrito como “figura suprema da Escola”, recebeu Walt Disney calorosamente com um “discurso improvisado, é claro” com fala que demonstrava “rara imponência, como só poderia fazer um criador de sambas.” A reportagem continua:

Walt Disney e seus companheiros foram saudados pelo diretor da escola, sambista Paulo da Portela. Seguiu-se um programa de música popular com batucadas, cantadas com coro de diversas vozes(…) houve também demonstrações de dança, com o caráter próprio do chamado samba do morro. (A Noite, 26 de ago. 1941)

Paulo da Portela recebeu muitos elogios nas diversas reportagens sobre o evento. No Jornal do Brasil, sua capacidade de organizar e disciplinar as pessoas presentes foi reconhecida . Aliás, essa não era a primeira vez que Paulo iria intermediar visitas para figuras interessadas em conhecer as expressões culturais artísticas negras da cidade: já tinha participado da recepção e feito uma exibição de samba à Henri Wallon, professor de Sorbonne e  – junto de Heitor dos Prazeres – organizado uma pequena exibição da “macumba” para a bailarina francesa Josephine Baker. Mesmo que tenha sido descrito como diretor da escola, e de fato foi, ele já não era mais da Escola de Samba: saiu no carnaval daquele ano de 1941 e, depois da recepção da comitiva da Disney, nunca mais pisou lá.

Quanto ao lugar da festa de recepção à Walt Disney, o Jornal O Imparcial relata que “O terreiro todos devem saber como é” e completa dizendo que aqueles que não conhecem e quiserem ver de perto, que aguardem pelos “futuros desenhos animados”, já adiantando  a expectativa da produção cinematográfica que viria a ser lançada no ano posterior à visita, em 1942, retratando a viagem não só ao Brasil, mas à Argentina, Chile e Bolívia: o filme de animação “Saludos, amigos!”

Cartaz promocional do filme Saludos, Amigos! (1942)

O jornal A manhã vai ressaltar a precariedade do terreiro, dizendo o quanto era “pequeno e rudimentar”. Comenta ainda quemal a bateria entra em ação e convidados e curiosos se misturam. Sua-se em bicas. A luta torna-se por vezes desoladora”. Contando então que a multidão se oprimia num espaço pequeno, enquanto as pastoras dançavam, esbarrando “aos de casa e aos de fora, aos do povo e aos granfinos, lamenta que Walt Disney tenha presenciado tais dificuldades, já que ele não estava ali como simples turista “a cata de coisas exóticas”, mas “como artista, um estudioso, um trabalhador”.

(…)A essa altura, a ‘equipe de Walt Disney desenhando flagrantes do espetáculo inédito que presenciava, gravando os cânticos, a percussão da bateria, o samba prosseguia’. E vieram improvisos, partido alto, coro de crianças;(Silva e Santos, 1979, p. 136)

As crianças são parte importante da apresentação do samba para a comitiva. Nos Jornais, são descritas como as pequenas bailarinas apresentam o samba da gente do morro⁸ à equipe de Disney. “Sem inibição, desembaraçadas, garotinhas de menos de meia dúzia de anos, provocavam admiração geral pela maneira com que sentiam a música e o seu ritmo.” Tendo ido à Portela para ” captar o samba com sua exata característica (…), conseguira plenamente o desejado.” 

Segundo o Diário de Notícias, “prolongou-se por cerca de duas horas a permanência na Portela de Walt Disney e seus companheiros, que se mostraram interessados e curiosos pelos aspectos pitorescos do espetáculo”. O Imparcial conta ainda que Walt Disney saíra olhando para trás, como quem queria continuar assistindo. Já o samba na Portela “durou até o sol raiar, quando os excursionistas estavam outra vez no hotel e, no terceiro sono, talvez entremeado de sambas, gingas e batecum…”

III – O MAIS BRASILEIRO DOS RITMOS?

Todas as descrições feitas aqui possuem como fonte  alguns jornais cariocas de agosto de 1941. Embora o objetivo do trabalho não seja interpretar a fotografia apenas a partir da maneira como foi indexada, não é uma perspectiva descartável já que esse modelo  “acompanha a maior parte dos nossos encontros com a fotografia”. A fotografia é encarada aqui como arquivo e fonte de pesquisa e, justamente porque falha em oferecer uma perspectiva soberana, dela pode emergir um rico material de reflexão. Admitindo as fotografias como relações entre pessoas, é possível ampliá-las, permitindo abarcar o que a foto significou para todos os personagens envolvidos, presentes ou ausentes do enquadramento da fotografia. Como nem sempre é possível obter os pontos de vista de todos, como inclusive é o caso das fotos escolhidas nesse trabalho, podemos utilizar da imaginação civil para completá-las, ou a fabulação crítica .

Nas legendas das fotografias, frequentemente vamos encontrar o “Exército e o Estado”. E ao olharmos com atenção o que os jornais narram sobre os eventos, utilizando para isso também as imagens, esbarramos de muitas formas no Estado. No período estadonovista no Brasil, os registros fotográficos de pessoas negras veiculados na imprensa adquirem o valor de testemunho da harmonia racial, coluna vertebral de uma emergente identidade nacional. O governo Vargas privilegiava tudo o que podia fazer propaganda de um Brasil harmoniosamente mestiço, que caminhava a passos largos para a modernidade: é justamente nesse contexto que a cultura passa a ser entendida como assunto de Estado.

Campanha de voto para Paulo da Portela em concurso promovido pelo regime de Getúlio Vargas

O Departamento de Imprensa e Propaganda, criado em 1939, era o responsável por criar a base de legitimidade do Estado Novo. Organizado em diversos núcleos, incluindo o cinema, a imprensa e o turismo; “a agência interferia em todas as áreas da cultura brasileira; censurou formas de manifestação artística e cultural”. O universo da música popular, especialmente a canção, foi alvo do controle da agência, já que era considerada uma linguagem acessível a praticamente toda população brasileira. 

Um dos integrantes da caravana que foi à Oswaldo Cruz naquele longínquo domingo era Assis de Figueiredo, diretor de turismo do D.I.P. Ideologicamente, o Estado Novo foi buscar no samba uma raiz da identidade brasileira,  moldando o carnaval, a partir da sua institucionalização, como a mais importante festa popular do país.

O samba e o carnaval tiveram papel central na formação da identidade de um Brasil cuja originalidade e peculiaridade residia no seu caráter mestiço; essa também foi a imagem que tornou ambos parte dos roteiros e apresentações turísticas: 

A celebração da diversidade racial e cultural proporcionou ao país as condições para acertar o relógio com a cultura importada dos europeus e dos norte-americanos e colocar a originalidade mestiça no centro de seu investimento sociocultural para a exportação.(Schwarcz e Starling, 2015, p. 379)

A representação cultural é um aspecto central nas relações entre Brasil e Estados Unidos a partir de Franklin Roosevelt e sua política da boa vizinhança. Na década de 1930, período em que os Estados Unidos, após a crise de 1929, precisavam expandir seu mercado externo, uma das estratégias foi firmar a liderança política no continente sulamericano. Aposta, então, numa série de parcerias de ordem econômica e militar, e usa do intercâmbio cultural, tendo como base a  produção de filmes que reforçavam o ideal pan-americano de liderança estadunidense. É nesse contexto que está a vinda da equipe dos estúdios Walt Disney para a América Latina, incluindo o Brasil.  

Dentro do roteiro escolhido para a visita da equipe do famoso estúdio, cientes dos ensejos de representação da cultura brasileira em produções cinematográficas, estava a Escola de Samba Portela, justamente nesse momento em que o samba e o carnaval se afirmavam como raiz da brasilidade e produto de exportação. À época da visita de Walt Disney, fazia 6 anos que os desfiles eram oficializados como evento oficial da cidade. No daquele ano, o de 1941, Paulo da Portela saíra da escola devido a um mal entendido no desfile. 

Ao entender esse contexto, faz muito sentido que os jornais destaquem a precariedade do terreiro. Ao mesmo tempo que o Carnaval e as Escolas de Samba se tornam atreladas ao turismo, há a cobrança de jornalistas para que deem anteparo às escolas para que seja possível aproveitar o incrivel material humano que ali existe. Visto como o lugar em que se pode beber da fonte mais pura da cultura brasileira, aquele terreiro específico – mas os vários que existiam à seu molde – representava aquilo que era atraente, já que puro e, ao mesmo tempo, primitivo, caracterizado pela falta: ali a modernidade ainda não havia chegado.

 

Ainda que com intuitos diferentes, é possível fazer uma aproximação daquilo que fez Walt Disney com as expedições etnográficas. Indo buscar a cultura em seu estado mais “puro”, distante da aculturação, o antropólogo Franz Boas foi pioneiro no uso da fotografia no trabalho de campo. Utilizava-as para produzir dados para pesquisa, mas também como forma de registro de culturas fadadas à aculturação ou ao desaparecimento. Como sua concepção de cultura estava atrelada à mente humana e a percepção, também esteve muito interessado em como a cultura se expressa em padrões gestuais, incluindo a dança, interesse que estendeu à sua orientanda Margareth Mead quando junto à Gregory Bateson fizeram seus estudos visuais sobre a cultura balinesa. Embora não com os mesmos intuitos científicos, a forma como se dá a visita da equipe de Walt Disney à Portela pode ser encarado analogamente aos métodos antropológicos de Boas, já que com o intuito de produzir uma animação que descrevesse e representasse culturas – justamente o propósito de aproximação da Política da Boa Vizinhança – estavam in loco produzindo imagens de padrões gestuais, danças e outros contornos do que entendam como cultura brasileira. Usaram das fotografias como maneira de produzir conhecimento sobre uma determinada cultura, e representá-la: só não através do texto acadêmico, mas de uma obra de entretenimento.

Aliás, o imaginário etnográfico nas artes não está restrito à empreitada de Disney: no campo artístico visual, a etnografia acompanhou viradas importantes das elaborações e relações com a imagem e a representação. Como salienta Clifford(2014) sobre o surrealismo etnográfico, na França da década de 1920 havia um verdadeiro frissom por tudo aquilo que era negro, “primitivo” ou exótico porque distante da Europa branca.⁹ A vanguarda artística brasileira da época, os modernistas -muitos deles com conexões com a França e a efervescência da cultura negra-, em confluência,  passavam a valorizar aquilo que era negro, mestiço; num contexto de país que buscava sua identidade como nação, como forma de adentrar à modernidade, o imaginário de brasilidade dos modernistas cria o arcabouço pro que mais tarde seria um esforço de Estado: criar a identidade nacional baseada no valor da mestiçagem enquanto peculiaridade e força; esse seria então o pavimento pra modernidade brasileira. 

IV – SAMBA É NO FUNDO DO QUINTAL

No Rio de Janeiro, intelectuais e artistas  – com objetivo de chocar o status quo – fizeram algo próximo ao que ocorre na França dos anos de 1920 na área boêmia de Montmartre: não só  são atraídos pelas expressões culturais negras, como passam a frequentar os espaços da cidade em que estas acontecem. A casa de Tia Ciata¹⁰ era um desses locais

 “Irreverente, esse foi o ambiente propício para o desenvolvimento do samba carioca (…) e para outras manifestações que representavam o adensamento de um pujante caldo cultural afro-brasileiro, incluindo-se aí os modernistas cariocas, que frequentavam esse mesmo circuito” (Schwarcz e Starling, 2015, p.341)

O famoso quintal da Tia Ciata, no entanto, não era o único na cidade. Em Oswaldo Cruz, por exemplo, teve a notória Tia Esther, que abrigava festas (que poderiam durar mais de uma semana) em que sambistas como Paulo da Portela se articulavam com figuras de diversas partes da cidade. É sob os moldes desse tipo de sociabilidade que as Escolas de Samba vão funcionar; no terreiro da Portela não aconteceu nada de muito distante do que acontecia nesses quintais das “Tias” pelas periferias da cidade. A comida, a semelhança da peixada que já havia sido servida antes da comitiva da Disney chegar, é parte fundamental na organização dessas festas. Até hoje a Portela e as demais Escolas de Samba mantém a tradição de ter uma feijoada aberta ao público por mês. Nos pagodes famosos de Madureira como o de Tia Doca e Tia Surica, a comida é sempre elemento presente: geralmente, feita por elas, que também são responsáveis pela logística do evento.¹¹

Walt Disney assiste a uma criança sambar.¹²

Discreta como a quietude, a frequência quase inaudível – como o das batidas graves de um tambor – que emana das fotos de tão ruidoso evento, sintoniza a tradição dos pagodes e festas no quintal. Estas estão na base das dinâmicas das Escolas de Samba e do maior show da terra; da sociabilidade nos territórios marginalizados da cidade, em que pessoas negras, mestiças, pobres e subalternizadas podem não só sobreviver, resistir, mas criar estratégias que permitam alçar outras formas não previsíveis de voo (Campt, 2017).

Das indexações encontradas, talvez as que apareçam crianças se destaquem nas imagens veiculadas sobre a visita; se apresentando “a fim de que os visitantes vissem que o samba estava na massa do sangue do povo de Sebastianópolis”,  fossem parte do imaginário de que as crianças poderiam fornecer o caminho para entender como a cultura é aprendida. Algo bastante similar aos empreendimentos etnográficos feitos por Bateson e Mead em Bali. Já que a gente lá era outra, será que retratar a infância não tinha também o papel de reforçar um imaginário sobre as classes populares, especialmente a massa de negros e mestiços, calcados pela diferença? 

Aquelas crianças eram exibidas como representantes da “gente do morro” ou do “incrível material humano” ali presente. Sem nome, como figuras menores; para nós , buscando ouvir o que emanam nas fotos, poderiam elas representar outras coisas? Por exemplo, uma nova geração que cresceu vendo expressões artísticas negras tendo outro lugar na narrativa nacional? Aquelas que  poderiam, como diria Candeia, “pisar com a imponência de um rei na passarela”, mas que “depois da ilusão (…) volta ao humilde barracão”¹³.  Veriam caminhos se abrirem para um outro lugar do samba na sociedade,  como cantaram Cartola e Odete Amaral¹⁴: 

Depois aos poucos/ o nosso samba/sem sentirmos se aprimorou/pelos salões da sociedade/sem cerimônia ele entrou./já não pertence mais a praça/já não é samba de terreiro/vitorioso ele partiu para o estrangeiro (…) o nosso samba, humilde samba/ foi de conquistas em conquistas/ conseguiu penetrar o [teatro] municipal/ depois de percorrer todo universo/ com a mesma roupagem que saiu daqui/ exibiu-se pra duquesa de Kent no Itamaraty (Cartola e Carlos Cachaça, Tempos Idos. 1970)

Veriam, inclusive, Oswaldo Cruz se transformar de um logradouro rural em bairro, se viveram o bastante, e a nova sede da Portela – não mais um terreiro, mas uma quadra – ser construída em Madureira. Mas também veriam continuar, e até se aprimorar, as exclusões aos negros no espaço urbano e na representatividade artística, pois mesmo fazendo a festa mais importante da cultura brasileira (ao menos na perspectiva cunhada pelo Estado Novo), veriam também que, em Saludos Amigos!, o Zé Carioca seria inspirado nos trejeitos dos sambistas – como aqueles que a equipe de Walt Disney viu se apresentar na Portela – e os desfiles das escolas de samba serem retratados no filme, mas sem qualquer pessoa negra aparecer na tela. Afinal, as expressões artísticas como o samba não eram nem sequer mais do negro, mas do Brasil, diluído num caldeirão de mestiçagem que tinha o branco como ingrediente principal. 

V – CONCLUSÃO 

Saindo do barulho das legendas e dos discursos triunfantes sobre a resistência do samba, o que essas fotografias podem nos dizer das festas em terreiros/quintais é que elas são parte fundamental do momento em que o samba é consolidado¹⁵. Fora dessa narrativa de progresso, tais quintais não são um lugar de primitividade do samba, mas parte da forma como este se expressa, é produzido e apreciado. É o espaço que faz possível para o negro no pós-abolição articular-se, tanto no interior do mundo do samba, como com outras camadas sociais. Não à toa, é para esse lugar do quintal que se volta para relembrar o fundamento que está para além do espetáculo, como tanto critica Candeia, evocando os ideais de Paulo.

Quando focamos no que as legendas da foto indexaram – o evento fotografado – vemos nas imagens o encontro de Paulo da Portela e Walt Disney. Quando ouvimos as frequências mais quietas que a fotografia emite, temos a festa. Temos o próprio encontro, feito num terreiro, da mesma forma que eram feitos os encontros de Tia Ciata, Tia Esther, e tantos outros quintais importantes para a história do samba, mas cotidianamente também da própria presença negra e mestiça na cidade. Como salienta Tina Campt, o cotidiano é aqui  entendido como prática, utilizada ‘pelos destituídos na luta para criar possibilidade dentro das dificuldades da vida diária”¹⁶.

Não fixar a interpretação que foi dada à fotografia a partir da forma como foi indexada faz com que seja possível atentar-se a outros fatores que a fotografia revela. Também permite não corroborar a narrativa hegemônica do encontro harmonioso entre raças e classes, de um Brasil mestiço em que o ‘samba no terreiro’ é um traço de pureza e de primitividade.  Ao sintonizar-se com a frequência quieta que emana das fotos, o que elas dizem numa frequência quase inaudível, mas passível de ser sentida, o hábito dos encontros festivos em quintais negros em que pessoas das mais diversas camadas sociais reuniam-se, sob as maneiras, tradições e regras das pessoas negras que, no espaço da casa, podiam ser soberanas.  Afinal,  essas festas e os encontros que elas permitem, os laços e afinidades que ali se criam, as possibilidades de experimentação artística, oferecem  base para trajetórias de voo diferentes daquelas traçadas pelo lastro colonial. O espaço da casa, do quintal e da rua – ainda que a cidade seja pensada sob a lógica da exclusão da figura do negro e do mestiço – podem ser utilizadas pelas pessoas negras a partir das matrizes (re)construídas na diáspora (Sodré, 2002). Sair da chave interpretativa da primazia tecnológica nos permite ir além da gramática imposta pela câmera fotográfica e nos aproximar das fotografias – permitindo que elas se aproximem de nós – de maneira ampliada. 

 

Notas

¹ A pesquisa foi feita na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, acessível em: <https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>
² Já que muitas vezes ao invés de “replicar a imagem,(…) produz o que aparece nela”, fixando interpretações que indexam os personagens e os eventos contidos na fotografia, “subordina a imagem ao texto” (Hartman, 2022, p. 40)
³  “Its a method that reckons with the fissures, gaps, and interstices that emerge when we refuse to accept the ‘truth’ of images and archives the state seeks to proffer throughEach term references something assumed to go unspoken or unsaid, unremarked, unrecognized, or overlooked. They name practices that are pervasive and ever- present yet occluded by their seeming absence or erasure in repetition, routine, or internalization. Yet the quotidian is not equivalent to passive everyday acts, and quiet is not an absence of articulation or utter-ance. Quiet is a modality that surrounds and infuses sound with impact and affect, which creates the possibility for it to register as meaningful its production of subjects posed to produce particular ‘types’ of regulated and regulatable subjects”
⁴  Fotografia disponível em <https://acervoportelense.blogspot.com/2018/06/portela-1941-walt-disney.html >. Acessada em 03 de novembro de 2024.
⁵ Fotografia disponível em <https://portelaweb.org/1941-8-24-pauloportela1-waltdisney-an/>. Acessada em 03 de novembro de 2024.
⁶  Terreiro é uma área externa da casa geralmente na frente ou nos fundos. Nesse sentido, terreiro e quintal são sinônimos.
⁷ Bairros que se localizam nas periferias da Centro da cidade, que acompanham a linha do trem.
⁸ Essas descrições estão presentes nos jornais O Imparcial (ago.1941) e O Jornal (26 de ago. 1941)
⁹ Walker (1997, p.639) ao falar da expedição etnográfica Dakar-Djibout fala como esta, ainda que seria, era uma expedição cercada pelo interesse por tudo o que era negro.
¹⁰ Natural de Santo Amaro da Conceição, Hilaria Batista de Gouveia – a Tia Ciata -fazia parte de uma comunidade de negros baianos que residiam no bairro da Saúde, na zona do centro do Rio de Janeiro. Era uma das “tias” baianas, mulheres mais velhas, que tinham um lugar de liderança dentro da comunidade. Ciata era, além de quituteira de fama reconhecida, era curandeira e Iyalorixá, e particularmente famosa pelas festas que dava em sua casa: “baile na sala de visita, samba nos fundos e batucada no terreiro”, disse o frequentador assíduo João da baiana. Em sua casa, foi composta o primeiro samba gravado: Pelo Telefone, de autoria reconhecida de Donga. (Schwarcz e Starling, 2015).
¹¹ “Batuque na Cozinha”, 2004.
¹² Fotografia disponível em < https://compositoresdaportela.blogspot.com/2013/06/portela-1941-visita-de-walt-disney.html?m=1>. Acessada em 03 de novembro de 2024.
¹³ Trecho do samba Dia de Graça, de Antônio Candeia Filho, lançada em 1970.
¹⁴ A canção é Tempos Idos, de composição de Cartola e Carlos Cachaça, interpretada por Odete Amaral e Cartola, de 1968.
¹⁵ Desde o partido-alto, ritmo defendido por Candeia como o samba mais puro, e do Grupo Fundo de quintal – que revolucionou o samba na década de 1980 – vai ressaltar a sociabilidade nos quintais como a essência da sua musicalidade. É possível ver Ubirany, um dos fundadores do Grupo Fundo de Quintal, falando sobre isso em live de lançamento de disco “Pagode Black tie – nossos passos vêm de longe” de Nei Lopes, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=D_qvUpPK3vk&t=4097s
¹⁶ Practice honed by the dispossessed in the struggle to create possibility within the constraints of everyday life” (Campt, 2017, p.4)

Bibliografia

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JORNAIS

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Walt Disney entrou na Batucada – sugestões provocadas pela exibição da Escola de Samba de Portella. Jornal A Manhã. Rio de Janeiro, 28 de Ago. de 1941. Disponível em: <https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=116408&pesq=%22Paulo%20da%20Portela%22&pasta=ano%20194&hf=memoria.bn.br&pagfis=12238 >. Acessado em 20 de Jul. 2023

Walt Disney entrou no samba. Jornal O Imparcial, Rio de Janeiro, 28 de Ago. de 1941. Disponível em: <https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=107670_04&pesq=%22Paulo%20da%20Portela%22&pasta=ano%20194&hf=memoria.bn.br&pagfis=7416 >. Acessado em 20 de Jul. 2023.

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FILMOGRAFIA 

Batuque na Cozinha. Direção e produção: Anna Azevedo. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em <https://canalcurta.tv.br/filme/?name=batuque-na-cozinha1 >

Paulo da Portela: O Teu Nome não Caiu no Esquecimento. Direção e Produção: Demerval Neto. 2001, Rio de Janeiro. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=KDRxlxD45Ms>

Saludos, amigos! Direção: Jack Kinney, Bill Roberts, Hamilton Luske, Wilfred Jackson. Produção:  Disney, Walt Disney Animation Studios. (lançamento no Brasil) 1942 .

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