Joana Cesar, a artista plástica conhecida por suas enormes e indecifráveis mensagens espalhadas pelas ruas do Rio de Janeiro, revela um pouco mais sobre o seu processo de criação. Além do trabalho com o alfabeto secreto, a artista desenvolve no ateliê colagens igualmente envoltas em mistério. Em 2013, ela participou tanto do ArteRio como do ArteRua, duas importantes feiras de arte que aconteceram na cidade. Um ano antes, Joana Cesar teve sua primeira exposição individual com o nome de fuga>lenta. Foi nessa época que matemáticos descobriram a criptografia de seu código. Eles prometeram não tornar público o conteúdo verbal de suas mensagens. Joana, que confessa ter sido uma menina cujo sonho era se tornar escritora, dá prova na entrevista a seguir de também possuir certa inclinação literária. Narra a história da grande lagarta Peri e de quando começou a pintar nas ruas em meio a uma verdadeira guerra de orixás.
USINA – Talvez a sua obra de maior visibilidade seja a intervenção nas bases da Avenida Perimetral. Como foi possível realizar um trabalho em escalas tão grandes? Agora com as reformas da Zona Portuária e a quase completa demolição do viaduto, a imagem dos seus símbolos entrará com a própria Perimetral no imaginário da cidade. Você poderia nos contar um pouco mais sobre o tema por trás desses escritos?
Joana Cesar – Procuro linhas, e quando me dei conta de que ali embaixo da Perimetral havia uma verdadeira folha de caderno, fiquei muito interessada em escrevê-la. O meu maior extensor de pintura tem nove metros. Juntando o tamanho do meu corpo e braço levantado, consigo alcançar sozinha, no máximo, a altura de quase onze metros. Os “braços” da Perimetral estão a quatorze metros do chão. Seria impossível escrever ali sozinha. Fui convidada para participar da II Bienal Mundial da Criatividade, que aconteceria justamente ali, no Porto. Apresentei como projeto uma instalação indoor chamada “cabeça”, e a pintura da Perimetral, chamada “braços”. O projeto foi aprovado e conseguiram um guindaste para mim.
Nessa época veio a notícia sobre a demolição completa do elevado. Foi assim que, percorrendo a Rodrigues Alves, acabei desenvolvendo uma relação “amorosa” com a Perimetral, e dessa relação o fortalecimento do meu desejo de intervir em seus braços, fazendo uma espécie de homenagem à lagarta gigante de concreto, agora condenada à morte.
O texto em código está escrito em primeira pessoa. É a voz da lagarta contando sua triste história fantástica, como ser abissal que parou seu imenso corpo numa bonita enseada para tirar um cochilo, e acordou concretada pelo olhar de uma medusa inventada. Impossibilitada de partir, a lagarta ficou lá, até que a cidade chegou, e ela passou a servir, impávida, aos homens. No texto, a Perimetral, que eu chamo de Peri, chora e lamenta sua própria morte, conta que dentro de seu corpo ainda bate um coração, e há sangue correndo nas veias. Fala de sua indesejada feiúra, e o injusto desprezo dos cidadãos pela sua forma, que por anos serviu ao fluxo de milhares de pessoas.
De maneira prática, tive o apoio da organização da Bienal, que me cedeu um pequeno guindaste e orientadores de trânsito para desviar o fluxo enquanto eu fazia a pintura. Tudo isso aconteceu em duas tardes de trabalho.
USINA – O seu trabalho parece deixar uma mensagem espelhada, às avessas: o carioca que convive com seus textos cria suas próprias teorias. Já ouvi que se tratava de um alfabeto anarquista ou que eram mensagens religiosas. Expor suas intimidades de maneira ilegível bagunça o campo do público e do privado, do individual e do coletivo. De certo modo, há algo próprio da linguagem que é encontrar na fala do outro o que nós mesmos pusemos ali, como diria Merleau-Ponty. O que está visível é um conjunto de formas abertas a qualquer depósito de conteúdo, ao mesmo tempo em que é apenas grafismo e forma. Em 2012, a revista Piauí trouxe à tona o esforço de dois matemáticos em descobrir o seu alfabeto. O que mudou quando os códigos foram decifrados por eles? Como você se sente com a possibilidade de que essa camada mais básica de sentido seja desvelada pelo público?
Joana Cesar – Na época foi um choque. Uma mistura de excitação e medo tomou conta, o que me paralisou durante um bom tempo. Depois, conhecendo melhor o Paulo (matemático) e entendendo suas reais motivações, fui ficando em paz com o assunto, e voltei a pintar.
USINA – Sem dúvida os artistas que utilizam a rua como suporte enxergam os espaços urbanos de uma forma distinta do olhar corriqueiro, utilitário. Você se lembra de quando começou a fazer arte nas ruas? O que foi que te atraiu?
Joana Cesar – Eu sempre tive medo de mostrar o que fazia. Meu pequeno ateliê transformou-se numa verdadeira bolha. Eu tinha uma máquina de escrever e passava muitas horas dedicada aos textos, imaginando que um dia me tornaria uma grande escritora! Fazia também experiências com fitas isolantes, plástico bolha, colagens, vídeo, alguma pintura, e tudo isso se acumulava. Mostrar o que eu fazia parecia uma tarefa impossível, e isso acabou me deprimindo. Nessa mesma época, eu me deslocava à pé pelas ruas da cidade, e não conseguia compreender o “atrevimento” de quem fazia suas pinturas nos muros. Achava aquilo fantástico, e ao mesmo tempo muito ruim! Abriu-se uma janela de pensamento. A rua era um suporte cheio de potência e vida própria. Não percebia profundidade e reflexão nas pinturas que eu encontrava no caminho, tirando uns poucos nomes. Também não fazia a menor idéia de como encontrar essas pessoas, e então observava suas produções, e fazia anotações, e aos poucos isso se transformou numa leve pressão. A rua parecia o suporte ideal para um trabalho anônimo.
Em 1992 finalmente comecei a pintar na rua. Meu interesse não passava pelo grafite, mas pelas texturas que eu encontrava nos muros – as paredes descascadas, as cascas de tinta soltando, os muros de musgo, o verde das heras avançando na vertical, os tapumes mofados, úmidos, com camadas de cartazes descolando; e os postes sujos, com suas marcas velhas de cartazes antigos – parecia a minha pele ali. Identifiquei diversos tipos de camadas, casualmente provocados pela disputa de lugar nos postes da propaganda ilegal. Pai Cláudio de Ogum e Mãe Valéria de Oxossi se sobrepunham loucamente durante este período. A cidade era bombardeada pelo lambe-lambe que trazia o amor de volta. Os dois em guerra disputando espaço, um colado em cima do outro. A Prefeitura encobria a guerra dos orixás com camadas de cal, parecendo querer apartar a briga, ou abafar o caso de Cláudio e Valéria.
Quis entrar nessa conversa. Mas fazendo o quê? Pintar o quê? Como ser mais uma camada?
Precisava criar uma forma simples, uma pintura rápida, de fácil reprodução, ocupando assim o meu lugar entre os cartazes. Escolhi uma parede do ateliê, comprei umas latas de spray, e comecei a fazer testes pintando. Ao esgotar a parede, tornava a cobri-la de branco, esperava secar, e tentava de novo.
Foram surgindo trechos da pintura que me agradavam, e para preservá-los da cobertura branca, desenvolvi bolsas de papel, fixadas com fita crepe nas margens e tratadas com encolagem – lá dentro ficava preservada uma parte da pintura anterior, uma herança.
Outra vez, a cobertura me parecia mais interessante do que a pintura.
Desenvolvi uma forma simples, que batizei de Raguezo – figura humana alongada, com os braços pro alto, e as costelas aparentes. Escolhi uma rua onde a guerra dos pais-de-santo fervia: rua Jardim Botânico. Especialmente nessa rua, os cartazes nunca eram arrancados. Pintei sobre a caiação da Prefeitura, e dias depois, meus Raguezos estavam cobertos com cartazes da Mãe Valeria.
Enquanto isso, no ateliê, a pintura se tornou um pretexto para a cobertura, e a cobertura só era interessante se a pintura a merecesse.
Um alfabeto codificado tornava possível na rua este processo fechado do ateliê. Usando um código, cobertura e pintura ocupariam o mesmo plano. Era a eliminação da camada. Passei, então, a escrever minhas intimidades nos muros.
USINA – Já foi dito que seu alfabeto lembra as antigas inscrições rúnicas. De fato, o alto risco envolvido o aproxima da pichação, ao mesmo tempo em que há algo parecido com a estética da rua. Qual é sua relação com o grafite e outras expressões artísticas urbanas? Na Lagoa, o belíssimo painel nos muros do CAp-UFRJ transmite uma harmonia entre o seu trabalho e de outros importantes artistas da cidade. Como funciona esse trabalho em conjunto?
Joana Cesar – A harmonia veio com o tempo. Quando comecei a pintar na rua não sabia quem eram os caras, não conhecia as regras de convivência, não imaginava onde encontrar essas pessoas. Havia o espaço comum, que era a rua, e os meus olhos buscando linhas. Quando um grafiteiro procura uma área para pintar, normalmente escolhe blocos vazios, preferencialmente até onde seu braço alcance. Eu usava extensor e procurava linhas, já que meu trabalho não era “blocado”. Em muros com mais de dois metros, acontecia de espaços em linha aparecerem no alto, vazios. Os grafiteiros tomavam toda a parte de baixo e ficava aquela linha vazia em cima. Comecei a escrever frases codificadas nessas linhas, sem ter idéia de que, na rua, quando um artista pinta acima do outro, pode querer dizer que seu trabalho também está acima do que o outro. Nunca tive essa intenção, e ao mesmo tempo o trabalho braçal me ajudava a resolver certas questões. As pinturas gigantes me apeteciam como se fossem um rocambole de doce de leite. E eu ia. Fazia letras garrafais acima das pinturas dos outros – o que me gerou alguns problemas no começo.
Apesar de não andar com eles, sempre me identifiquei mais com os pichadores. Diferente do grafite, que nos permite facilmente distinguir autores, identificar formas, reconhecer padrões, a pichação é rascante, difícil de se engolir, e invade as capitais como uma onda gorda de expressão raivosa, e tem características próprias de um movimento organizado, sem ser.
Pichadores usam predominantemente tinta spray, preta e branca, e rubricam seus apelidos nos muros, como se autorizassem a existência de um território de oportunidades que nunca os acolheu. Para os cidadãos comuns, as assinaturas de pichação são todas iguais, e representam a sujeira. O impulso de assinar repetidamente o próprio nome, com o único propósito de torná-lo famoso, torna a pichação um ato de individualismo extremo. Por outro lado, quando esses milhares de nomes passam a ser identificados pela sociedade como unidade de sujeira, perdem sua válvula propulsora original e egóica que os lançaram aos muros, e ganham todas as nuances de um movimento coletivo.
USINA – Ano passado suas obras apareceram tanto no Art Rua quanto no Art Rio. Além do conhecido alfabeto e de seu mascote, o Raguezo, você também tem trabalhos com colagens (eles lembram camadas de lambe-lambe acumuladas nos muros da cidade). Gostaríamos que você falasse um pouco sobre essa produção, de que maneira a vê ligada com o trabalho da rua.
Joana Cesar – O alfabeto codificado é um desdobramento da colagem, e vice-versa. Quando transformo papéis em compartimentos e guardo dentro desses compartimentos imagens que não pretendo compartilhar, crio um conteúdo e uma casca. Eu conheço o conteúdo, mas mostro ao público apenas a casca. O público pode apenas imaginar o conteúdo do volume. Acontece a mesma coisa com a escrita codificada. A única diferença é que usando o código, cobertura e conteúdo ocupam o mesmo plano, e desse modo, elimino a camada física. A camada passa a ser a forma alterada das letras.
Quando construo uma nova colagem, trabalho exaustivamente até conseguir enxergar “caminhos” entre áreas/ilhas temáticas. Num canto do trabalho pode haver um volume carregado de informações relacionadas com um determinado fato da minha vida, enquanto no outro canto do trabalho outro volume concentra informações relacionadas aos medos dessa época. Entre as duas áreas, normalmente aparece um caminho ligando os dois volumes. Posso, por exemplo, pegar um santinho impresso, picá-lo, e alinhar seus pedacinhos em torno de um dos volumes, pretendendo abençoá-lo. Posso arranhar intensamente o fino papel de seda, de uma pipa quebrada trazida pelo vento até as minhas pernas, carregando a ação de minhas mãos com mantras inventados na hora, como: “segura na barra da saia dela / segura na barra da saia dela / segura na barra da saia dela” – pois a memória da pipa me fez pensar em mãe, e no tanto que a minha mãe fez falta. Construo o trabalho como se fosse um corpo, e não gosto de chamá-los, quando prontos, de telas ou quadros.
Em 2010, Marina Abramovic fez uma performance no MOMA de NY chamada O ARTISTA ESTÁ PRESENTE, onde convidava o público para sentar diante dela. Um por vez, o tempo que agüentasse olhá-la nos olhos. Ela ficava sentada, em silêncio, oferecendo sua superfície e o peso de suas camadas. Se nada é dito, se nenhum gesto é feito, se não há desenho, pintura, objeto, fala, nada, o que há? Apenas o acesso ao lado dentro. Quando cubro um texto, dou rosto ao texto. Ele está lá, mas não pode ser lido. Apenas pesa. Quando cubro uma fotografia, a fotografia deixa de ser imagem e passa a ser força, peso, pulsação.
USINA – O paradoxo parece ser algo que marca bastante sua obra. As mensagens em grande escala e o padrão formal convocam uma atenção que quase nunca se transforma em deciframento. Você fala a si mesma, mas ao mesmo tempo não quer dizer. Há uma espécie de angústia e negação do próprio exercício de criação: nega a mensagem quando não acessamos seu conteúdo, nega o trabalho quando resolve apaga-lo algum tempo depois. Esse movimento parece construir parte da sua poética. No caso dos trabalhos vendáveis, isso é mais difícil. Essa angústia é parte do que move sua produção?
Joana Cesar – Busco o instante em que passo a suportar o que estou fazendo, e a paz que esse instante, quando alcançado, provoca em mim. As camadas são uma forma de trabalhar sem desprezar rascunhos. Os rascunhos, os estudos, os ensaios, mesmo de quem não os acumula no trabalho, estarão lá, sendo a parte invisível da construção de uma superfície. Todos nós somos o acúmulo do que vivemos. As camadas são a memória, e contam a história da superfície apresentada, mesmo sendo essa superfície pintada de branco. Não há cor, não há forma, não há texto, não há nada para ser visto imediatamente nesse caso, apenas a sensação do acúmulo, e sua força. Imagina se um neurocirurgião entrasse na sala de cirurgia com um pára-quedas amarrado em suas costas, e que dentro desse pára-quedas, estivessem todos os livros de medicina que ele precisou estudar, junto com todos os cadernos, canetas, professores, cadáveres das aulas de anatomia, cérebros de borracha, agulhas, bisturis e etc. Ele não carrega o pára-quedas, mas essas coisas estão com ele, em algum lugar.
A pintura em grande escala, bem como a capinagem de um pasto, me dão a chance de liberar uma certa qualidade de energia, que se fica presa, torna-se venenosa ao espírito e ao pensamento.
USINA – É comum entre os artistas uma vontade de produzir arte sem que o público desvende o artista em si. Mas isso parece ter mudado a partir do momento em que você passou a ficar conhecida, ser procurada por galerias e até mesmo revistas e jornais, nos quais você explicou a origem e o motivo do alfabeto. Qual a grande diferença da artista de então com a de agora?
Joana Cesar – A angústia, que eu chamo de “nó pretinho que queima”, segue irradiando sua força. O que muda é o tempo da pele, uns fios de cabelo branco, a experiência.
O reconhecimento traz coisas boas. Minha família, por exemplo, durante muitos anos me considerou uma marginal. Meu pai já me chamou de marginal na mesa de jantar. Todos ficavam apavorados com o que eu fazia, com o rumo que eu estava tomando. A grande diferença é o tempo que passou, e hoje, ainda bem, a família sente orgulho – apesar do difícil percurso dessa estrada.