Nota dos editores da USINA
Os países da América Latina, apesar de heterogêneos, compartilham experiências cotidianas que os aproximam. Aspectos como o sistema político, a misoginia, as desigualdades sociais e as questões étnico-raciais produzem formas de violências únicas que estão cada vez mais em destaque em obras de autoras latino-americanas.
Esse grupo de escritoras navegam entre memória e imaginação para construir cenários aterrorizantes que nos são muito familiares. São episódios que saem do âmbito do realismo cru e passam a habitar outras camadas: a do subconsciente, do onírico e até mesmo do fantástico.
Como forma de apresentar essa literatura a novos leitores, a USINA selecionou quatro contos de quatro autoras.
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Sobre a autora
Mariana Enriquez é uma escritora e jornalista argentina, nascida em Buenos Aires em 1973. Ela é conhecida por suas obras de ficção que misturam elementos de horror, realismo gótico e crítica social, tornando-se uma das vozes mais importantes da literatura latino-americana contemporânea. Estudou Comunicação Social na Universidade Nacional de La Plata e, além de sua carreira literária, trabalhou como jornalista e editora.
Seu primeiro livro, “Bajar es lo peor” (1995), foi publicado quando ela tinha 21 anos. No entanto, foi com suas coleções de contos que Enriquez realmente se destacou. “Los peligros de fumar en la cama” (2009) e “Las cosas que perdimos en el fuego” (2016) receberam aclamação crítica e trouxeram-lhe reconhecimento internacional. “Las cosas que perdimos en el fuego” foi particularmente bem recebido, traduzido para várias línguas e elogiado por sua capacidade de combinar o horror com críticas sociais incisivas. Os contos desta coleção capturam a vida nas margens da sociedade argentina, apresentando personagens que enfrentam horrores tanto sobrenaturais quanto mundanos.
Enriquez é frequentemente comparada a autores como Shirley Jackson e Stephen King, mas suas histórias são inconfundivelmente enraizadas na realidade social e política da América Latina.
Atualmente, Enriquez continua a viver em Buenos Aires, onde trabalha como editora e colunista.
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A tradução de “O Menino Sujo” é de José Geraldo Couto, publicada em 2017 pela Editora Intrínseca no livro As Coisas que Perdemos no Fogo.
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O MENINO SUJO
Minha família acha que estou louca porque escolhi morar na casa dos meus avós paternos em Constitución, um molhe de pedra e portas de ferro pintadas de verde na rua Virreyes, com detalhes art déco e antigos mosaicos no chão, tão gastos que, se me ocorresse encerar o piso, poderia inaugurar uma pista de patinação. Mas sempre fui apaixonada por essa casa e, na infância, quando a alugaram a um escritório de advocacia, lembro-me do meu mau humor, do tanto que sentia saudade daqueles cômodos de janelas altas e do pátio interno que parecia um jardim secreto, da frustração de passar diante da porta e não poder entrar livremente. Não sentia tanta saudade do meu avô, um homem calado que mal sorria e nunca brincava. Nem sequer chorei quando ele morreu. Chorei mais quando, depois de sua morte, perdemos a casa, ao menos por alguns anos.
Depois dos advogados veio um grupo de dentistas e, por fim, a casa foi alugada a uma revista de viagens que saiu de circulação em menos de dois anos. Era uma casa bonita e confortável e estava em condições notavelmente boas levando em conta sua antiguidade, porém ninguém mais, ou muito pouca gente, queria se estabelecer no bairro. A revista de viagens o fez só porque o aluguel, para a época, era muito barato. Mas nem isso a salvou da rápida bancarrota, e certamente o fato de terem roubado o escritório não ajudou: levaram todos os computadores, um forno de micro-ondas e até uma pesada fotocopiadora.
Constitución é o bairro da estação dos trens que vêm do sul para a cidade. Foi, no século XIX, uma região onde vivia a aristocracia portenha, o que explica a existência dessas casas, como a da minha família — e há muitas outras mansões convertidas em hotéis ou asilos ou ruínas do outro lado da estação, em Barracas. Em 1887, as famílias aristocráticas fugiram para o norte da cidade a fim de escapar da febre amarela. Poucas voltaram, quase nenhuma. Com os anos, famílias de comerciantes ricos como a do meu avô puderam comprar as casas de pedra com gárgulas e aldrabas de bronze. Mas o bairro ficou marcado pela fuga, pelo abandono, pela condição de indesejado.
E está cada vez pior.
No entanto se a gente sabe se mover, se entende as dinâmicas, os horários, não é perigoso. Ou é menos perigoso. Sei que nas noites de sexta-feira, se me aproximar da praça Garay, posso acabar no meio de alguma briga entre vários oponentes possíveis: os pequenos traficantes da rua Ceballos que defendem seu território de outros ocupantes e perseguem eternos devedores; os viciados que, descerebrados, se ofendem por qualquer coisa e reagem atacando com garrafas; as travestis bêbadas e cansadas que também cuidam do seu espaço. Sei que, se voltar para casa caminhando pela avenida, estarei mais exposta a um roubo do que se regressar pela rua Solís, apesar de a avenida ser bem iluminada e a Solís ser escura, porque tem poucas lâmpadas e muitas estão quebradas; é preciso conhecer o bairro para aprender essas estratégias. Fui roubada duas vezes na avenida, nas duas por meninos que passaram correndo, arrancaram minha bolsa e me jogaram no chão. Na primeira vez registrei queixa na polícia; na segunda já sabia que era inútil, que a polícia havia permitido que eles roubassem na avenida, tendo como limite a ponte da autoestrada — três quadras liberadas —, em troca dos favores que os adolescentes lhes faziam. Há alguns códigos para que a gente possa se movimentar com tranquilidade nesse bairro, e eu os manejo perfeitamente, ainda que, claro, o imprevisível sempre possa acontecer. É questão de não ter medo, de contar com alguns amigos imprescindíveis, de cumprimentar os vizinhos mesmo que sejam delinquentes — especialmente se forem delinquentes —, de caminhar com a cabeça erguida, prestando atenção.
Gosto do bairro. Ninguém entende por quê. Eu, sim: faz com que me sinta certeira e audaz, desperta. Não restam muitos lugares como Constitución na cidade, que, exceto pelas favelas da periferia, ficou mais rica, mais amável, intensa e enorme, porém fácil para viver. Constitución não é fácil e é bonito, com todos esses recantos que um dia foram luxuosos, como templos abandonados e depois ocupados por infiéis que nem sequer sabem que, entre aquelas paredes, já se escutaram louvores a velhos deuses.
Também vive muita gente na rua. Não tanto quanto na praça do Congresso, a uns dois quilômetros da minha porta; ali, bem em frente aos edifícios legislativos, há um verdadeiro acampamento, laboriosamente ignorado mas ao mesmo tempo tão visível que, a cada noite, grupos de voluntários dão comida às pessoas, checam a saúde das crianças, distribuem mantas no inverno e água fresca no verão. Em Constitución, a população de rua fica mais abandonada, poucas vezes chega ajuda. Diante da minha casa, numa esquina que em outros tempos foi um armazém e hoje é um edifício tapado para que ninguém possa ocupá-lo, as portas e janelas vedadas com tijolos, vive uma mulher jovem com seu filho. Está grávida de poucos meses, embora nunca se saiba quando se trata das mães viciadas do bairro, tão magrinhas. O filho deve ter uns cinco anos, não vai à escola e passa o dia no metrô, pedindo dinheiro em troca de santinhos de Santo Expedito. Sei disso porque uma noite, quando voltava do centro para casa, eu o vi no vagão. Tem um método muito inquietante: depois de oferecer o santinho aos passageiros, obriga-os a dar-lhe a mão, um aperto breve e ensebado. Os passageiros reprimem a pena e o asco: o menino está sujo e cheira mal, mas nunca vi ninguém suficientemente piedoso a ponto de tirá-lo do metrô, levá-lo para casa, dar-lhe um banho, ligar para um assistente social. As pessoas lhe dão a mão e compram o santinho. Ele tem o cenho sempre franzido e, quando fala, a voz é rascante; costuma estar resfriado e às vezes fuma com outros meninos do metrô ou do bairro.
Uma noite, caminhamos juntos da estação até a minha casa. Não falou comigo, mas nos fizemos companhia. Perguntei-lhe algumas bobagens, sua idade, seu nome: não me respondeu. Não era um menino doce nem terno. Quando cheguei à porta da minha casa, não obstante, me saudou.
— Tchau, vizinha — disse.
— Tchau, vizinho — respondi.
* * *
O menino sujo e sua mãe dormem em três colchões tão gastos que, empilhados, têm a mesma altura que um comum. A mãe guarda a pouca roupa em vários sacos de lixo pretos e tem uma mochila cheia de outras coisas que nunca consigo distinguir. Não se move da esquina e ali pede dinheiro com uma voz lúgubre e monótona. Não gosto da mãe. Não só por sua irresponsabilidade, ou porque fuma crack e a cinza queima a barriga de grávida, ou porque eu jamais a tenha visto tratar com amabilidade seu filho, o menino sujo. Há algo mais que não me agrada. Estava dizendo isso a minha amiga Lala enquanto ela cortava meu cabelo na casa dela, no feriado da última segunda-feira. Lala é cabeleireira, mas faz tempo que não trabalha num salão: não gosta dos chefes, diz. Ganha mais dinheiro e tem mais tranquilidade em seu apartamento. Como salão, o apartamento de Lala tem alguns problemas. A água quente, por exemplo, chega de maneira intermitente porque o aquecimento funciona muito mal e, às vezes, quando ela está lavando meu cabelo depois da tintura, recebo um jorro de água fria na cabeça que me faz gritar. Ela revira os olhos e explica que todos os encanadores a enganam, cobram caro demais, nunca voltam. Acredito.
— Essa mulher é um monstro, menina — grita, enquanto quase queima meu couro cabeludo com o velho secador de cabelo.
Também me machuca ao arrumar as mechas com seus dedos grossos. Faz anos que Lala decidiu ser mulher e brasileira, mesmo tendo nascido macho e uruguaio. Agora é a melhor cabeleireira travesti do bairro e já não se prostitui; fingir o sotaque brasileiro lhe era muito útil para seduzir homens quando era puta na rua, mas agora não faz sentido. De todo modo, está tão acostumada que às vezes fala ao telefone em português ou, quando se irrita, levanta os braços e clama vingança ou piedade à Pombagira, seu exu pessoal, para quem tem um pequeno altar num canto da sala onde corta cabelo, bem ao lado do computador, conectado a um bate-papo perpétuo.
— Você também acha que ela é um monstro, então.
— Me dá calafrios, menina. Parece amaldiçoada, sei lá.
— Por que diz isso?
— Não digo nada. Mas aqui no bairro comentam que ela faz qualquer coisa por dinheiro, vai até a reuniões de bruxos.
— Ai, Lala, que bruxos? Não tem bruxos por aqui, não acredite em tudo que dizem.
Ela me deu um puxão de cabelo que me pareceu de propósito, mas pediu desculpas. Foi de propósito.
— Que é que você sabe do que acontece de verdade por aqui, menina? Você mora aqui, mas é de outro mundo.
Lala tem um pouco de razão, embora me incomode escutar isso dessa maneira. Incomoda que ela, tão sinceramente, me coloque no meu lugar, a mulher de classe média que se julga desafiadora porque decidiu morar no bairro mais perigoso de Buenos Aires. Suspiro.
— Tem razão, Lala. Mas o que quero dizer é que ela vive em frente à minha casa e está sempre lá, em cima dos colchões. Nem se mexe.
— Você trabalha muitas horas, não sabe o que ela faz. Muito menos durante a noite. O povo deste bairro, menina, é muito… como se diz? Você nem percebe e quando vê te atacaram.
— Ardiloso?
— Isso. Você tem um vocabulário de dar inveja, não é mesmo, Sarita? É fina a moça.
Sarita está esperando há uns quinze minutos que Lala acabe meu cabelo, mas a espera não a incomoda. Folheia as revistas. Sarita é uma travesti jovem que se prostitui na rua Solís e é muito bonita.
— Conta pra ela, Sarita, conta o que você me contou.
Mas Sarita franze os lábios como uma diva de cinema mudo e não tem vontade de me contar nada. Melhor assim. Não quero escutar as histórias de terror do bairro, que são todas inverossímeis e críveis ao mesmo tempo e que não me dão medo, pelo menos de dia. À noite, quando tento terminar trabalhos atrasados e fico acordada em silêncio para me concentrar, às vezes me lembro das histórias contadas em voz baixa. E me certifico de que a porta da rua esteja bem trancada, assim como a da sacada. E às vezes fico olhando a rua, sobretudo a esquina onde dormem o menino sujo e sua mãe, totalmente quietos, como mortos sem nome.
* * *
Uma noite, depois do jantar, a campainha tocou. Estranho: quase ninguém me visita a essa hora. Exceto Lala, em uma ou outra noite em que se sente sozinha, e ficamos escutando rancheras tristes e tomando uísque. Quando olhei pela janela para ver quem era — ninguém abre a porta diretamente neste bairro se a campainha toca por volta da meia-noite —, vi que ali estava o menino sujo. Corri para buscar as chaves e o deixei entrar. Tinha chorado, dava para notar pelos sulcos claros que as lágrimas haviam marcado em sua cara encardida. Entrou correndo, mas se deteve antes de chegar à porta da sala de jantar, como se precisasse da minha autorização. Ou como se tivesse medo de seguir adiante.
— O que aconteceu com você? — perguntei.
— Minha mãe não voltou — disse ele.
Tinha a voz menos áspera, mas não soava como um menino de cinco anos.
— Te deixou sozinho?
Sim, com a cabeça.
— Você está com medo?
— Estou com fome — respondeu. Com medo também, mas já estava suficientemente endurecido para não admitir isso diante de um estranho que, além do mais, tinha casa, uma casa linda e enorme, bem na frente da sua intempérie.
— Bom — falei. — Entre.
Estava descalço. Na última vez em que o tinha visto, usava um par de tênis bastante novos. Teria descalçado por causa do calor? Ou alguém os roubara durante a noite? Eu não quis perguntar. Fiz com que se sentasse numa cadeira da cozinha e enfiei no forno um pouco de arroz com frango. Enquanto esperávamos, besuntei de queijo um ótimo pão caseiro. Comeu fitando-me nos olhos, muito sério, com tranquilidade. Tinha fome, mas não estava faminto.
— Aonde sua mãe foi?
Deu de ombros.
— Ela costuma sair muito?
Outra vez ele deu de ombros. Tive vontade de sacudi-lo e, em seguida, me envergonhei. Ele precisava de ajuda; eu não tinha por que saciar minha curiosidade mórbida. E, mesmo assim, algo no silêncio dele me irritava. Queria que fosse um menino amável e encantador, não aquele menino áspero e sujo que comia o arroz com frango lentamente, saboreando cada garfada, e arrotava depois de terminar seu copo de Coca-Cola, que bebeu com avidez e pediu mais. Eu não tinha nada para servir de sobremesa, mas sabia que a sorveteria da avenida estaria aberta; no verão, atendia até depois da meia-noite. Perguntei se queria ir e ele me disse que sim, com um sorriso que mudava seu rosto por completo; tinha dentes pequenininhos, e um deles, de baixo, estava para cair. Eu tinha um pouco de medo de sair tão tarde, ainda por cima para a avenida, mas a sorveteria costumava ser território neutro; quase nunca havia roubos ali, tampouco brigas.
Não levei carteira e guardei um pouco de dinheiro no bolso da calça. Na rua, o menino sujo me deu a mão e não o fez com a indiferença com que cumprimentava os compradores de santinhos no metrô. Agarrou bem forte: talvez ainda estivesse assustado. Atravessamos a rua: o colchão sobre o qual dormia com a mãe seguia vazio. A mochila também não estava lá: ou ela a levara ou alguém a roubara ao encontrá-la ali, sem dono.
Tínhamos que caminhar três quadras até a sorveteria, e escolhi a rua Ceballos, uma rua estranha, que podia ser silenciosa e tranquila em algumas noites. As travestis menos esculturais, mais gordinhas ou mais velhas escolhiam essa rua para trabalhar. Lamentei não ter um par de tênis para o menino sujo: nas calçadas costumava haver cacos de vidro, de garrafas quebradas, e eu não queria que ele se machucasse. Ele caminhava descalço com grande segurança, estava acostumado. Naquela noite, as três quadras estavam quase vazias de travestis, mas cheias de altares. Lembrei o que se celebrava: era 8 de janeiro, o dia do Gauchito Gil. Um santo popular da província de Corrientes que se venera em todo o país, especialmente nos bairros pobres — embora haja altares por toda a cidade, inclusive nos cemitérios. Antonio Gil, segundo se conta, foi assassinado como desertor no fim do século XIX: um policial o matou, pendurou-o numa árvore e o degolou. Mas, antes de morrer, o desertor disse ao policial: “Se quiser que seu filho se cure, precisa rezar por mim”. O policial obedeceu, porque seu filho estava muito doente, e o menino se curou. Então o homem baixou Antonio Gil da árvore, deu-lhe sepultura e, no lugar onde se havia esvaído em sangue, foi levantado um santuário, que existe até hoje e que a cada verão recebe milhares de pessoas.
Eu me flagrei contando a história do gaucho milagroso ao menino sujo, e paramos diante de um dos altares. Ali estava o santo de gesso, com a camisa azul-celeste e o lenço vermelho no pescoço, uma fita também vermelha na cabeça e uma cruz nas costas, da mesma cor. Havia vários panos vermelhos e uma ou outra bandeirinha vermelha: a cor do sangue, a lembrança da injustiça e da degola. Mas nada era macabro ou sinistro. O gaucho traz sorte, cura, ajuda e não pede muito em troca, apenas que lhe façam essas homenagens e, às vezes, um pouquinho de álcool. Ou a peregrinação ao santuário de Mercedes, em Corrientes, sob um calor de cinquenta graus, onde os devotos chegam a pé, de ônibus e a cavalo de todas as partes, até da Patagônia. As velas ao redor faziam-no piscar na penumbra. Acendi uma das que haviam se apagado e com a mesma chama acendi um cigarro. O menino sujo parecia inquieto.
— Já vamos à sorveteria — falei. Mas não era isso.
— O gaucho é bom — disse ele. — Mas o outro, não.
Afirmou isso em voz baixa, encarando as velas.
— Que outro? — perguntei.
— O esqueleto — respondeu. — Lá atrás há esqueletos.
No bairro, “lá atrás” é uma referência ao outro lado da estação, passando as plataformas, onde os trilhos e seus aterros se perdem em direção ao sul. Ali costumam aparecer altares para santos menos amáveis que o Gauchito Gil. Sei que Lala leva até o aterro — sempre de dia, porque à noite pode ser perigoso — suas oferendas para a Pombagira, seus pratos coloridos e seus frangos comprados no supermercado porque não se anima a matar uma galinha. E ela me contou que “lá atrás” há montes de São Morte, o santinho esqueleto com suas velas vermelhas e pretas.
— Mas não é um santo mau — falei ao menino sujo, que me encarou com olhos muito abertos, como se eu estivesse dizendo uma loucura. — É um santo que pode fazer o mal se alguém pedir, mas a maioria das pessoas não pede coisas feias: pede proteção. Sua mãe leva você lá atrás? — perguntei.
— Sim, mas às vezes vou sozinho — respondeu. E depois me puxou pelo braço para que seguíssemos.
Fazia muito calor. A calçada da sorveteria estava pegajosa de tanto sorvete que devia ter derretido; pensei nos pés descalços do menino sujo, agora com toda aquela nova imundície. Ele entrou correndo e pediu, com sua voz velha, um grande de doce de leite granulado e chocolate. Não pedi nada. O calor me tirava a fome e eu não sabia o que devia fazer com o menino se a mãe dele não aparecesse. Levá-lo a uma delegacia? A um hospital? Ficar com ele na minha casa até ela voltar? Existia algum tipo de serviço social nesta cidade? Existia, isso, sim, um número para o qual ligar durante o inverno, a fim de avisar se alguma pessoa que vivia na rua estivesse passando frio demais. Eu me dei conta, enquanto o menino sujo lambia os dedos lambuzados, do pouco que me importavam as pessoas, de como me pareciam naturais aquelas vidas desgraçadas.
Quando terminou seu sorvete, o menino sujo se levantou do banco em que havíamos nos sentado e saiu caminhando para a esquina onde vivia com a mãe, sem prestar muita atenção em mim. Eu o segui. A rua estava muito escura, tinha havido um apagão; costumava acontecer nas noites de muito calor. Eu o enxergava bem, de todo modo, graças aos faróis dos carros; também o iluminavam, a ele e a seus pés já completamente negros, as velas dos altares improvisados. Chegamos à esquina sem que voltasse a me dar a mão nem me dirigisse a palavra.
A mãe estava no colchão. Como todos os viciados, não tinha noção da temperatura e vestia um moletom com capuz, como se estivesse chovendo. A barriga, enorme, estava de fora; o agasalho curto demais não conseguia cobri-la. O menino sujo a cumprimentou e se sentou no colchão. Não disse nada.
Ela estava furiosa. Aproximou-se de mim rugindo, não há outra forma de descrever o som, me lembrando de minha cachorra quando quebrou o quadril e estava enlouquecida de dor, mas tinha deixado de se queixar e somente grunhia.
— Aonde você levou ele, filha da puta? Quer fazer o que com ele, hein? Nem pense em tocar no meu filho!
Estava tão perto que eu via cada um de seus dentes, as gengivas que sangravam, os lábios queimados pelo cachimbo, o bafo de alcatrão.
— Comprei um sorvete para ele — gritei, e recuei quando vi que tinha uma garrafa quebrada na mão, com a qual pensava em me atacar.
— Cai fora ou eu te corto, filha da puta!
O menino sujo olhava para o chão, como se nada estivesse acontecendo, como se não nos conhecesse, nem a mãe nem a mim. Fiquei irritada com ele. Que mal-agradecido o fedelho, pensei, e saí correndo. Entrei em casa o mais rápido que pude, embora as minhas mãos tremessem tanto que custei a encontrar as chaves. Acendi todas as luzes. Por sorte, na minha quadra a eletricidade não fora cortada: tinha medo de que a mãe mandasse alguém atrás de mim para me bater, não sabia o que podia passar pela cabeça dela, não sabia que amigos tinha no quarteirão, não sabia nada dela. Depois de um tempo, subi ao andar de cima e a espiei da sacada. Estava deitada de barriga para cima, fumando um cigarro. O menino sujo parecia dormir ao lado dela. Fui para a cama com um livro e um copo d’água, mas não consegui ler nem prestar atenção à televisão; o calor parecia mais intenso com o ventilador ligado, que só revolvia o ar quente e atenuava os ruídos da rua.
De manhã, me obriguei a tomar café antes de sair para trabalhar. O calor já estava sufocante e o sol mal acabava de nascer. Quando fechei a porta, a primeira coisa que notei foi a ausência dos colchões na esquina em frente. Não restava nada do menino sujo e de sua mãe, não tinham deixado para trás nem uma sacola nem uma mancha nem uma guimba de cigarro. Nada. Como se não tivessem estado ali.
O corpo apareceu uma semana depois do sumiço do menino sujo e de sua mãe. Quando voltei do trabalho, com os pés inchados pelo calor e sonhando com o frescor da minha casa de pé-direito alto e ambientes espaçosos que nem o verão mais infernal podia esquentar totalmente, encontrei o quarteirão enlouquecido, com três viaturas policiais, uma fita amarela dessas que isola as áreas onde ocorreu um crime e uma enormidade de gente amontoada no perímetro. Não foi difícil reconhecer Lala, com seus sapatos brancos de salto e seu coque dourado; estava tão nervosa que tinha se esquecido de colocar os cílios postiços no olho esquerdo e sua cara parecia assimétrica, quase paralisada de um lado.
— O que aconteceu?
— Encontraram uma criança.
— Morta?
— O que você acha? Degolada! Você tem TV a cabo?
Tinham cortado a conexão de Lala por falta de pagamento fazia meses. Então nos metemos na minha casa e deitamos na cama para ver televisão, com o ventilador de teto dando giros perigosos de tão rápidos e a janela da sacada aberta para ficarmos à escuta de alguma coisa que viesse da rua e valesse a pena. Em cima da cama, numa bandeja, pus uma jarra gelada de suco de laranja, e Lala reinou sobre o controle remoto. Era estranho ver nosso bairro na tela, escutar pela janela os jornalistas que corriam, sair para a sacada e avistar as vans das diferentes emissoras. Era estranha a decisão de esperar os detalhes do crime pela televisão, mas nós duas conhecíamos bem a dinâmica do bairro: ninguém ia falar, não a verdade, pelo menos durante os dias iniciais. Primeiro, o silêncio, vai que algum dos envolvidos no crime merecia lealdade. Ainda que o crime fosse a morte horrível de um menino. Primeiro, boca calada. Em algumas semanas começariam as histórias. Ainda não. Agora era o momento da TV.
Cedo, por volta das oito da noite, quando Lala e eu começamos uma longa vigília que teve início com suco de laranja, seguiu com pizza e cerveja e terminou com uísque — abri uma garrafa que meu pai tinha me dado de presente —, a informação era sucinta: no estacionamento desativado da rua Solís havia aparecido um menino morto. Degolado. Tinham colocado a cabeça ao lado do corpo.
Às dez, sabia-se que a cabeça estava rapada até o osso e que não tinha sido encontrado cabelo na área. Também que as pálpebras haviam sido costuradas e a língua, mordida, não se sabia se pelo próprio menino morto ou — e isso fez Lala soltar um grito — pelos dentes de outra pessoa.
Os programas de notícias continuaram a dar informações até de madrugada, trocando jornalistas, cobrindo ao vivo da rua. Os policiais, como de costume, não diziam nada diante das câmeras, mas forneciam constantemente relatos à imprensa.
Até a meia-noite, ninguém havia reclamado o corpo. Também se sabia que tinha sido torturado: o torso estava coberto de queimaduras de cigarro. Suspeitavam de um ataque sexual, que se confirmou por volta das duas da madrugada, quando foi divulgado um primeiro informe dos peritos forenses.
E até aquela hora ninguém havia reclamado o corpo. Nem um familiar. Nem mãe nem pai nem irmãos nem tios nem primos nem vizinhos nem conhecidos. Ninguém.
O menino decapitado, dizia a televisão, tinha entre cinco e sete anos; era difícil calcular porque, em vida, fora subnutrido.
— Eu queria vê-lo — falei para Lala.
— Não seja louca, como vão mostrar um menino decapitado! Por que você quer ver? Que macabra. Sempre foi uma monstrinha, a condessa mórbida no palácio da rua Virreyes.
— É que tenho a impressão de que o conheço, Lala.
— Conhece quem, a criança?
Respondi que sim e comecei a chorar. Eu estava bêbada, mas também estava certa de que o menino sujo era agora o menino decapitado. Contei a Lala sobre o encontro, na noite em que ele tinha tocado minha campainha. Por que não cuidei dele, por que não averiguei como tirá-lo da mãe, por que pelo menos não lhe dei um banho? Se tenho até uma banheira antiga, bonita, grande, que mal uso, na qual tomo duchas rápidas sozinha e só muito de vez em quando desfruto de um banho de imersão, por que pelo menos não lhe tirar a imundície? E, sei lá, comprar-lhe um patinho e aquelas varinhas de fazer bolhas de sabão para ele brincar. Podia ter dado um banho nele tranquilamente e depois ido tomar o sorvete. E, sim, era tarde, mas na cidade há supermercados que não fecham nunca e vendem tênis, e eu poderia ter comprado um par para ele, como fui deixá-lo andar descalço, de noite, por essas ruas escuras? Não podia ter deixado que voltasse para a mãe. Quando ela me ameaçou com a garrafa, eu deveria ter chamado a polícia para que a levassem presa e ter ficado com o menino comigo ou o ajudado a entrar em processo de adoção por uma família que o quisesse. Mas não. Fiquei irritada com ele por ser mal-agradecido, porque não me defendeu… da própria mãe! Fiquei irritada com um menino aterrorizado, filho de uma mãe viciada, um menino de cinco anos que vive na rua!
— Que vivia na rua, porque agora está morto, degolado!
Lala me ajudou a vomitar na privada e depois foi comprar comprimidos para minha dor de cabeça. Eu vomitava de bêbada e de assustada e também porque estava segura de que era ele, o menino sujo, violado e degolado num estacionamento sabe-se lá por quê.
— Por que fizeram isso com ele, Lala? — perguntei, encolhida em seus braços fortes, outra vez na cama, as duas fumando lentamente nossos cigarros na madrugada.
— Minha princesa, não sei se foi o seu menino que mataram, mas, quando der a hora, vamos ao juizado, assim você fica tranquila.
— Vai comigo?
— Claro.
— Mas por que, Lala, fizeram uma coisa dessas?
Lala apagou o cigarro num prato ao lado da cama e se serviu de outro copo de uísque. Misturou-o com Coca-Cola e mexeu o gelo com um dedo.
— Eu não acho que seja o seu menino. Esse que mataram… Eles estavam com raiva. É uma mensagem para alguém.
— Uma vingança dos traficantes?
— É bem assim que os traficas matam.
Ficamos caladas. Tive medo. Havia traficantes assim em Constitución? Como os que me surpreendiam quando eu lia sobre o México, dez cadáveres sem cabeça pendurados numa ponte, seis cabeças arremessadas de um carro à escadaria de uma assembleia legislativa, uma vala com setenta e três mortos, alguns decapitados, outros sem braços? Lala fumou em silêncio e programou o despertador. Decidi faltar ao trabalho e ir direto ao juizado para contar tudo o que sabia sobre o menino sujo.
* * *
De manhã, ainda com dor de cabeça, preparei café para Lala e para mim. Ela pediu para usar o banheiro, escutei a ducha e percebi que ela ia passar pelo menos meia hora ali dentro. Liguei de novo a televisão: o jornal não tinha informações novas. Eu também não as encontraria na internet, que, além do mais, seria um caldeirão de boatos e loucura.
O noticiário da manhã dizia que havia aparecido uma mulher para reclamar o menino decapitado. Uma mulher chamada Nora, que tinha chegado ao necrotério com um bebê recém-nascido nos braços e alguns familiares. Quando escutei aquilo de “bebê recém-nascido”, o coração me deu um coice no peito. Era definitivamente o menino sujo, então. A mãe não tinha ido buscar o corpo antes porque — que casualidade mais espantosa — a noite do crime havia sido a noite do parto. Fazia sentido. O menino sujo tinha ficado sozinho enquanto a mãe paria e aí…
Aí o quê? Se era uma mensagem, se era uma vingança, não podia ser dirigida àquela pobre mulher que havia dormido diante da minha casa tantas noites, àquela garota viciada que devia ter pouco mais de vinte anos. Quem sabe ao pai. Isso, o pai. Quem seria o pai do menino sujo?
Mas então as câmeras enlouqueceram: os cinegrafistas corriam, os repórteres perdiam o fôlego, todos se lançavam sobre a mulher que saía do juizado e gritavam: “Nora, Nora, quem você acha que fez isso com o Nachito?”
“Se chamava Nacho”, sussurrei.
E, de repente, ali estava, na tela, Nora, seu pranto e seus gritos em primeiro plano. E não era a mãe do menino sujo. Era uma mulher completamente diferente. Uma mulher de uns trinta anos, já grisalha, morena e muito gorda, certamente dos quilos que tinha ganhado na gravidez. Quase o contrário da mãe do menino sujo.
Não dava para entender o que ela gritava. Cambaleava. Alguém a amparava por trás; uma irmã, com certeza. Mudei de canal, mas todos exibiam aquela mulher gritando até que um policial se interpôs entre os microfones e os gritos e apareceu um guarda para levá-la embora. Havia muitas novidades. Contei-as a Lala, sentada na privada enquanto ela se depilava, ajeitava a maquiagem, arrumava cuidadosamente o cabelo num coque.
— O nome dele é Ignacio, Nachito. E a família tinha registrado o desaparecimento no domingo, mas quando viram pela televisão o que ocorria não pensaram que era seu filho porque esse menino, Nachito, desapareceu em Castelar. Eles são de Castelar.
— Mas isso é longíssimo! Como veio parar aqui? Ai, princesa, que pavor tudo isso. Cancelei todos os clientes, já decidi. Não se pode cortar cabelos depois disso.
— Costuraram o umbigo, também.
— De quem, da criança?
— Sim. Parece que arrancaram as orelhas.
— Rainha, neste bairro ninguém dorme mais, estou te dizendo. Aqui a gente pode até ser delinquente, mas isso é satânico.
— É o que estão dizendo. Que é satânico. Não, satânico, não. Dizem que foi um sacrifício, uma oferenda a São Morte.
— Salve a Pombagira, salve Maria Padilha!
— Ontem à noite te contei que o menino me falou de São Morte. Não é ele, Lala, mas ele sabia.
Lala se ajoelhou diante de mim e me cravou seus enormes olhos escuros.
— A senhorita, princesa, não vai dizer nada disso. Nada. Nem à delegada nem a ninguém. Ontem à noite eu estava louca ao deixar você ir ver a juíza. Nada de nada, nós somos um túmulo, com perdão da palavra.
Dei-lhe ouvidos. Ela estava certa. Eu não tinha nada a dizer, nada a contar. Apenas uma caminhada noturna com um menino de rua que havia desaparecido, como costuma acontecer a meninos de rua. Os pais mudam de bairro e os levam junto. Unem-se a um bando de ladrões mirins ou de limpadores de vidros na avenida ou de mulas de droga; quando os usam para vender droga, têm que mudá-los de bairro o tempo inteiro. Fazem acampamento numa estação de metrô. Os meninos de rua não ficam nunca num lugar só; podem durar um tempo, mas sempre vão embora. Também fogem dos pais. Ou se vão porque aparece um tio distante que se compadece e os leva para casa, longe, no sul, uma casa numa rua de terra, para dividir um quarto com cinco primos, mas, pelo menos, para estar sob um teto. Não era estranho, de modo algum, que mãe e filho tivessem desaparecido de um dia para outro. O estacionamento onde haviam achado o menino decapitado não ficava no trajeto que o menino sujo e eu tínhamos percorrido naquela noite. E a história de São Morte? Coincidência. Lala dizia que o bairro estava cheio de devotos de São Morte, todos os imigrantes paraguaios e o pessoal de Corrientes eram fiéis do santinho, mas isso não os tornava assassinos; ela era devota da Pombagira, que tem o aspecto de uma mulher-demônio, com chifres e tridente, e isso por acaso a tornava uma assassina satânica?
Claro que não.
— Quero que você fique uns dias comigo, Lala.
— Claro, princesa, eu mesma preparo meus aposentos.
Lala adorava minha casa. Gostava de pôr música bem alta e descer as escadas devagar, com seu turbante e um cigarro, uma mulher fatal negra, “sou Josephine Baker”, dizia, e depois se lamentava por ser a única travesti de Constitución que tinha a remota ideia de quem era Josephine Baker, você não tem noção de como são toscas essas meninas novas, ignorantes e ocas como um encanamento. São cada vez piores. Está tudo perdido.
* * *
Custava-me caminhar pelo bairro com a segurança de antes do crime. O assassinato de Nachito havia exercido um efeito quase narcótico sobre aquela zona de Constitución. À noite não se escutava brigas, os traficantes tinham mudado para umas quadras mais ao sul. Havia policiais demais monitorando o lugar onde o corpo tinha sido encontrado. Que, diziam os jornais e os investigadores, não havia sido a cena do crime. Alguém o depositara, já morto, no velho estacionamento.
Na esquina onde costumavam dormir o menino sujo e sua mãe, os moradores fizeram um altar para o Degoladinho, como o chamavam. E puseram uma foto que dizia “Justiça para Nachito”. Apesar das aparentes boas intenções, os investigadores não acreditavam totalmente na comoção do bairro. Pelo contrário: pensavam que estavam encobrindo alguém. Por isso a delegada havia ordenado que muitos moradores fossem interrogados.
Também fui chamada para depor. Não avisei a Lala para que não se desesperasse. A ela não havia chegado a notificação. Foi uma entrevista muito curta, e eu não disse nada que pudesse lhes servir.
Naquela noite, tinha dormido profundamente.
Não, não escutei nada.
Há vários meninos de rua no bairro, sim.
Mostraram-me a foto de Nachito. Neguei tê-lo visto. Não mentia. Era completamente diferente dos meninos do bairro: gordinho, com covinhas e cabelo bem penteado. Jamais tinha visto um menino assim (e sorridente!) em Constitución.
Não, nunca vi altares de magia negra na rua nem em casa alguma. Somente do Gauchito Gil. Pela rua Ceballos.
Se eu sabia que o Gauchito Gil tinha morrido degolado? Sim, o país inteiro conhece o mito. Eu não creio que tenha a ver com o Gauchito, os senhores creem?
Não, claro, não precisam me responder nada. Bom, seja como for, eu não creio, mas não sei nada sobre rituais.
Trabalho como designer gráfica. Para um jornal. Para o suplemento Moda & Mulher. Por que moro em Constitución? É a casa da minha família e é uma casa bonita, podem vê-la quando forem ao bairro.
Claro que aviso aos senhores se ouvir alguma coisa. Sim, estou com dificuldade para dormir, como todos.
Estamos com muito medo.
Ficou claro que não suspeitavam de mim, mas tinham que falar com os moradores. Voltei para casa de ônibus a fim de evitar as cinco quadras que precisaria caminhar se usasse o metrô. Desde o crime, preferia não usar o metrô porque não queria me deparar com o menino sujo. E, ao mesmo tempo, queria voltar a vê-lo de uma maneira obsessiva, doentia. Apesar das fotos, apesar das provas — inclusive das fotos do cadáver, que um jornal tinha publicado para falso escândalo e horror do público, que esgotou várias edições com o menino decapitado na primeira página —, eu seguia acreditando que o menino sujo era o morto.
Ou que seria o próximo. Não era uma ideia racional. Disse isso a Lala no salão, na tarde em que decidi voltar a tingir as pontas de cor-de-rosa, um trabalho de horas. Agora ninguém folheava revistas nem pintava as unhas nem mandava mensagens de texto quando tinha que esperar a vez no salão de Lala. Agora só se falava no Degoladinho. O tempo de silêncio prudente havia terminado, mas eu ainda não ouvira ninguém nomear um suspeito de maneira não genérica. Sarita contava que, em seu vilarejo, no Chaco, havia ocorrido algo semelhante, mas com uma menina.
— Foi encontrada com a cabeça ao lado do corpo, também, e muito violada, pobre alminha, estava toda cagadinha em volta.
— Sarita, por favor — pediu Lala.
— Mas, se foi assim, o que você quer que eu diga? É coisa de bruxos.
— A polícia acha que são traficantes — afirmei.
— Está cheio de traficantes bruxos — disse Sarita. — Lá no Chaco você nem imagina. Fazem rituais para pedir proteção. Por isso cortaram a cabeça e a puseram no lado esquerdo. Acreditam que, fazendo essas oferendas, a polícia não os pega, porque as cabeças têm poder. Não são apenas traficantes de drogas, também estão envolvidos no tráfico de mulheres.
— Mas você acha que tem isso aqui, em Constitución?
— Estão em toda parte — respondeu Sarita.
Sonhei com o menino sujo. Eu saía à sacada e ele estava no meio da rua. Eu fazia sinais com a mão para que ele se movesse porque vinha um caminhão muito rápido. Mas o menino sujo continuava olhando para cima, olhando para mim e para a sacada, sorrindo, os dentes imundos e pequeninos. E o caminhão o atropelava e eu não podia deixar de ver como a roda arrebentava o ventre como se fosse uma bola de futebol e arrastava os intestinos até a esquina. No meio da rua ficava a cabeça do menino sujo, ainda sorridente e com os olhos abertos.
Acordei suada, tremendo. Da rua vinha uma cumbia sonolenta. Pouco a pouco, voltavam alguns sons do bairro, as brigas de bêbados, a música, as motos com o cano de descarga aberto para fazer barulho, um sucesso entre os adolescentes. A investigação estava sob segredo de justiça, uma maneira de dizer que a desorientação era total. Visitei minha mãe várias vezes, e quando pediu que eu me mudasse para junto dela, pelo menos por um tempo, respondi que não. Acusou-me de louca e discutimos aos gritos, como nunca antes.
* * *
Naquela noite eu voltava tarde porque, depois de sair da redação, tinha ido à festa de aniversário de uma colega de trabalho. Era uma das últimas noites do verão. Voltei de ônibus e desci antes, para caminhar pelo bairro sozinha. Já sabia me mover de novo. Se a pessoa sabe se mover, Constitución é bastante fácil. Ia fumando. Então a vi.
A mãe do menino sujo era magra, sempre tinha sido magra, inclusive durante a gravidez. Vendo-a de costas, ninguém teria adivinhado sua barriga. É o tipo físico comum das viciadas: os quadris permanecem estreitos como se resistissem a abrir espaço para o bebê, o corpo não produz gordura, as coxas não se alargam; aos nove meses, as pernas são duas varetas frágeis que sustentam uma bola de basquete, uma mulher que engoliu uma bola de basquete. Agora, sem a barriga, a mãe do menino sujo parecia mais do que nunca uma adolescente apoiada numa árvore, tentando acender seu cachimbo de crack sob a luz do poste, sem se importar com a polícia — que rondava muito mais o bairro depois do crime do Degoladinho — nem com os outros viciados nem com nada.
Eu me aproximei devagar e, quando ela me viu, houve um reconhecimento imediato em seus olhos. Imediato! Os olhos se estreitaram, se achinesaram: ela quis sair correndo, mas algo a paralisou. Uma tontura, quem sabe. Aqueles segundos de dúvida me serviram para bloquear a passagem, parar diante dela, obrigá-la a falar. Empurrei-a contra a árvore e a mantive ali. Ela não tinha força suficiente para resistir.
— Onde está seu filho?
— Que filho? Me solta.
Nós duas falávamos baixo.
— Seu filho. Você sabe muito bem do que estou falando.
A mãe do menino sujo abriu a boca e me deu náuseas seu hálito de fome, doce e podre como uma fruta ao sol, misturado com o cheiro medicinal da droga e aquele fedor de queimado; os viciados fedem a borracha queimada, a fábrica tóxica, a água contaminada, a morte química.
— Eu não tenho filho.
Apertei-a mais contra a árvore, agarrei-a pelo pescoço. Não sei se ela sentia dor, mas lhe cravei as unhas. De qualquer maneira, não ia se lembrar de mim dentro de algumas horas. Eu também não tinha medo da polícia. Além do mais, não iam se preocupar com uma briga de mulheres.
— Vai me dizer a verdade. Até pouco tempo atrás você estava grávida.
A mãe do menino sujo quis me queimar com o isqueiro, mas percebi a tempo sua intenção, a mão magra que tentava aproximar a chama do meu cabelo, queria me incendiar, a filha da puta. Apertei-lhe o pulso com tanta força que o isqueiro caiu na calçada. Ela parou de resistir.
— EU NÃO TENHO FILHO! — gritou, e sua voz grossa demais, doente demais, me despertou.
O que eu estava fazendo? Enforcando uma adolescente moribunda em frente à minha casa? Talvez minha mãe tivesse razão. Talvez eu precisasse me mudar. Talvez, como ela dissera, eu tivesse uma fixação pela casa porque me permitia viver isolada, porque ali ninguém me visitava, porque estava deprimida e inventava para mim mesma histórias românticas sobre um bairro que, na verdade, era uma merda, uma merda, uma merda. Foi isso o que minha mãe gritou e eu jurei não falar mais com ela, mas agora, com o pescoço da jovem viciada entre as mãos, pensei que minha mãe podia ter um pouco de razão.
Talvez eu não fosse a princesa no castelo, mas a louca encarcerada na torre.
A menina viciada se soltou das minhas mãos e começou a correr, devagar: estava meio sufocada. Mas quando chegou na metade da quadra, justo onde a luz principal a iluminava, deu meia-volta. Ria, e a luz evidenciava que suas gengivas sangravam.
— Eu dei ele! — gritou.
O grito foi para mim, ela me olhava nos olhos, com aquele horrendo reconhecimento. E depois acariciou o ventre vazio com as duas mãos e disse, bem claro e alto:
— E este eu também dei. Prometi os dois.
Corri atrás dela, mas a mulher era rápida. Ou tinha ficado rápida de repente, não sei. Cruzou a praça Garay como um gato e consegui segui-la, mas quando o tráfego começou a andar na avenida ela deu um jeito de atravessar entre os carros, e eu, não. Eu já não podia respirar. Minhas pernas tremiam. Alguém se aproximou para perguntar se a menina tinha me roubado e eu disse que sim, com a esperança de que a perseguissem. Mas não: simplesmente me perguntaram se eu estava bem, se queria tomar um táxi, e o que haviam roubado.
Um táxi, sim, falei. Parei um e pedi que me levasse para casa, a apenas cinco quadras dali. O motorista não se queixou. Estava acostumado àquele tipo de viagem curta naquele bairro. Ou quem sabe não estivesse com vontade de resmungar. Era tarde. Devia ser sua última corrida antes de voltar para casa.
Quando fechei a porta, não senti o alívio dos cômodos frescos, da escada de madeira, do pátio interno, dos azulejos antigos, do pé-direito alto. Acendi a luz, e a lâmpada piscou: vai queimar, pensei, vou ficar às escuras, mas por fim se estabilizou. Embora fosse uma luz amarelenta, antiga, de baixa tensão. Sentei no chão, com as costas apoiadas na porta. Esperava os golpes suaves da mão pegajosa do menino sujo ou o ruído de sua cabeça rodando pela escada. Esperava o menino sujo que ia me pedir, mais uma vez, para deixá-lo entrar.