Nota dos editores da USINA
Os países da América Latina, apesar de heterogêneos, compartilham experiências cotidianas que os aproximam. Aspectos como o sistema político, a misoginia, as desigualdades sociais e as questões étnico-raciais produzem formas de violências únicas que estão cada vez mais em destaque em obras de autoras latino-americanas.
Esse grupo de escritoras navegam entre memória e imaginação para construir cenários aterrorizantes que nos são muito familiares. São episódios que saem do âmbito do realismo cru e passam a habitar outras camadas: a do subconsciente, do onírico e até mesmo do fantástico.
Como forma de apresentar essa literatura a novos leitores, a USINA selecionou quatro contos de quatro autoras.
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Sobre a autora
Samanta Schweblin é uma escritora argentina, nascida em Buenos Aires em 1978. Estudou Cinema na Universidade de Buenos Aires, onde desenvolveu um estilo narrativo visual e atmosférico que marca suas obras. Seu livro, “Pássaros na Boca” (2009), uma coleção de contos, ganhou o prêmio Casa de las Américas, o que a estabeleceu como uma das vozes emergentes mais promissoras da literatura latino-americana.
Seu romance “Distância de Resgate” (2014) recebeu aclamação internacional e foi finalista do Man Booker International Prize em 2017. A obra mistura elementos de suspense e terror psicológico, explorando temas de maternidade, medo e o impacto ambiental.
Samanta Schweblin reside em Berlim, Alemanha, desde 2012, onde continua a escrever e participar de eventos literários.
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A tradução de “O Cavador” é de Joca Reiners Terron, publicada em 2022 pela Editora Fósforo no livro Pássaros na Boca e Sete Casas Vazias: contos reunidos.
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O CAVADOR
Precisava descansar, então aluguei um casarão num povoado no litoral, longe da cidade. Ficava a quinze quilômetros do centro, seguindo o caminho de cascalho no sentido do mar. Quando estava chegando, a vegetação me impediu de prosseguir de carro. Dava para ver o telhado da casa à distância. Me animei a descer. Peguei o indispensável e continuei a pé. Escurecia e, embora não se visse o mar, dava para escutar as ondas batendo na orla. Estava já a poucos metros quando tropecei em algo.
“É você?”
Retrocedi assustado.
“É você, chefia?” Um homem se levantou com dificuldade. “Não desperdicei nem um só dia, viu… Juro pela minha mãezinha…”
Falava apressadamente; alisou a roupa e assentou o cabelo.
“O que acontece é que justamente ontem à noite… Imagine só, chefia, se estando tão perto eu ia deixar as coisas para outro dia. Venha, venha”, falou e se enfiou em um poço que havia no meio do matagal, a só um passo de onde estávamos.
Agachei e enfiei a cabeça. O buraco media mais de um metro de diâmetro e não se via nada lá dentro. Para quem trabalharia um sujeito que não reconhecia nem seu próprio superior? O que estaria procurando para cavar tão fundo?
“Vai descer, chefia?”
“Acho que você está enganado”, eu disse.
“Como?”
Falei para ele que não desceria e, como ele não respondeu, fui para casa. Quando estava chegando às escadas da entrada, ouvi um distante muito bem, chefia, como você quiser.
Na manhã seguinte saí para buscar o que deixara no carro. Sentado na entrada da casa, o homem cabeceava vencido pelo sono e segurava uma pá oxidada entre os joelhos. Quando me viu, deixou-a e se apressou a me alcançar. Carregou o mais pesado e, apontando uns pacotes, perguntou se faziam parte do plano.
“Preciso me organizar primeiro”, falei, e, ao chegar à porta, peguei o que ele carregava para evitar que entrasse na casa.
“Sim, sim, chefia. Como quiser.”
Entrei. Das janelas da cozinha, vi a praia. Quase não havia ondas, o mar estava ideal para nadar. Cruzei a cozinha e espiei pela janela da frente: o homem permanecia ali. De tempos em tempos, olhava para o poço e estudava o céu. Quando saí, corrigiu a postura e me cumprimentou, respeitoso.
“O que vamos fazer, chefia?”
Dei-me conta de que um gesto meu teria sido suficiente para que o homem fosse correndo até o poço e se pusesse a cavar. Olhei para o pasto, em direção ao poço.
“Acha que falta quanto?”
“Pouco, chefia, muito pouco…”
“Quanto é pouco para você?”
“Pouco… não saberia dizer.”
“Acha que é possível terminar esta noite?”
“Não posso prometer nada… você sabe: isso não depende só de mim.”
“Bem, se você quer tanto fazer, vá em frente.”
“Considere feito, chefia.”
Vi o homem pegar a pá, descer os degraus da casa até o mato e se perder no poço.
Mais tarde fui ao povoado. Era uma manhã de sol e eu queria comprar um calção de banho para aproveitar o mar; afinal, não tinha por que me preocupar com um homem que cavava um poço em uma casa que não me pertencia. Entrei na única loja que encontrei aberta. Quando embalava minha compra, o empregado perguntou:
“E como vai o seu cavador?”
Fiquei em silêncio alguns segundos, esperando quem sabe que outro respondesse.
“Meu cavador?”
Passou-me a sacola.
“Sim, seu cavador…”
Estendi-lhe o dinheiro e o olhei, surpreso; antes de ir embora, não pude deixar de perguntar:
“Como sabe do cavador?”
“Como assim, ‘sei do cavador’?”, disse, como se não me compreendesse.
Voltei para casa e o cavador, que esperava adormecido na entrada, despertou quando abri a porta.
“Chefia”, falou, colocando-se de pé. “Houve grandes avanços, pode ser que a gente esteja cada vez mais perto…”
“Estou pensando em ir à praia antes que escureça.”
Não lembro por que me pareceu uma boa ideia dizer isso. Contudo, ali estava ele, feliz pelo comentário e disposto a me acompanhar. Esperou do lado de fora que eu me trocasse, e um pouco mais tarde caminhávamos em direção ao mar.
“Não tem problema deixar o poço?”, perguntei.
O cavador se deteve.
“Prefere que eu volte?”
“Não, não, estou só perguntando.”
“Se qualquer coisa acontecer…”, ameaçou voltar. “Seria terrível, chefia.”
“Terrível? O que poderia acontecer?”
“Preciso continuar cavando.”
“Por quê?”
Olhou para o céu e não respondeu.
“Bem, não se preocupe”, continuei caminhando. “Venha comigo.” O cavador me seguiu, indeciso.
Já na praia, a poucos metros do mar, sentei para tirar os sapatos e as meias. O homem sentou perto de mim, deixou a pá de lado e tirou as botas.
“Sabe nadar?”, perguntei. “Por que não entra comigo?”
“Não, chefia. Vou só olhar, se não se incomoda. E trouxe a pá, no caso de lhe ocorrer um novo plano.”
Levantei e caminhei para o mar. A água estava gelada, porém eu sabia que o homem olhava para mim e não quis voltar.
Quando voltei, o cavador não estava mais.
Com um sentimento de fatalidade, procurei possíveis pegadas em direção à água, caso ele tivesse seguido minha sugestão, mas não encontrei nada e então decidi voltar. Examinei o poço e os arredores. Na casa, percorri os cômodos com desconfiança. Detive-me nos patamares da escada, chamei em voz alta nos corredores, um pouco envergonhado. Mais tarde saí. Fui até o poço, me debrucei e chamei outra vez. Não se via nada. Deitei de barriga para baixo, enfiei a mão e tateei as paredes: tratava-se de um trabalho bem-feito, de aproximadamente um metro de diâmetro, que afundava no sentido do centro da terra. Pensei na possibilidade de entrar, mas logo desisti. Quando apoiei a mão para me levantar, a borda cedeu. Agarrei-me ao mato e, paralisado, ouvi a terra caindo na escuridão. Meus joelhos resvalaram na borda e vi como a boca do poço desmoronava e se perdia em seu interior. Fiquei de pé e observei o desastre. Olhei com medo ao redor, porém o cavador não estava em parte alguma. Então pensei que podia refazer as bordas com um pouco de terra úmida, embora necessitasse de uma pá e de um pouco de água.
Voltei para a casa. Abri os armários, examinei dois quartos dos fundos nos quais entrava pela primeira vez, procurei na lavanderia. Por fim, em uma caixa junto a outras ferramentas velhas, encontrei uma pá de jardineiro. Era pequena, mas serviria para começar. Quando saí da casa, me vi frente a frente com o cavador. Escondi a pá detrás do corpo.
“Estava procurando você, chefia. Temos um problema.”
Pela primeira vez o cavador me olhava com desconfiança.
“Diga”, falei.
“Mais alguém anda cavando.”
“Mais alguém? Tem certeza?”
“Conheço o trabalho. Alguém andou cavando.”
“E você, onde estava?”
“Afiando a pá.”
“Bem”, falei, tentando ser rigoroso. “Você cave o quanto puder e não volte a se distrair. Eu vigio os arredores.”
Hesitou. Afastou-se alguns passos, então se deteve e virou em minha direção. Distraído, eu tinha deixado o braço cair e a pá jazia pendurada junto às minhas pernas.
“Vai cavar, chefia?”, olhou para mim.
Instintivamente, ocultei a pá. Ele parecia não reconhecer em mim o homem que eu era para ele até um momento atrás.
“Vai cavar?”, insistiu.
“Ajudo você. Cave um tempo e eu continuo quando se cansar.”
“O poço é seu”, falou. “Você não pode cavar.”
O cavador levantou a pá e, olhando nos meus olhos, voltou a cravá-la na terra.