Serendib é um ensaio experimental que a partir da ideia de serendipidade – descobertas que acontecem ao acaso – nos apresenta um dos maiores câmeras do cinema brasileiro: Dib Lutfi. Dividido em 7 partes, o texto transcorre com associações e curiosidades em torno da figura de Dib e sua participação crucial no Cinema Novo, assim como uma colaboração pouco conhecida no filme alemão Das Unheil, o que nos leva também a uma carta de Goethe e uma breve reflexão sobre a ideia do Eterno Retorno.
______________________________________________________
Preferiria Não Ter Gostado De Me Dedicar A Isso
Amava ler o dicionário quando criança. Um dia pensei em ser filólogo, esse cara que estuda os fios da língua. Mas a literatura me revelou outra tecitura – cada nome uma costura. Entre “Dib” e “Serendipidade” fiz algumas tramas. Aqui vai um fuxico sobre Serendib:
1. Trama Lírica
Serendipidade
Um encontro sem querer de uma solução não procurada
Com um achado por acaso sobre um problema conhecido
Descoberto não por querer, mas por um erro do passado
Ou um advento ainda oculto de um futuro não inventado.
Quem sabe os magos da Pérsia não explicariam ou
talvez os príncipes do Sri Lanka saberiam.
Alguém arrisca uma demonstração?
Dib tem as imagens da sinergia
Dib tem o corpo da cinestesia
Dib é o dançarino da câmera
O pai da coreocinematografia
Aconteceu uma noite dessas: eu tinha acabado de fumar o último cigarro da carteira, quando joguei a bituca ainda acesa de volta dentro da carteira vazia. Acendeu. O papel da embalagem acabou alimentando a brasa e imediatamente lembrei da morte de Zé Celso. Pensei: teria ele feito o mesmo e atirado a carteira nalgum canto da casa contendo material inflamável? Ave cortina, cheia de graça… Só de raiva pagou pra ver, mas a raiva o apagou de vez. Esse vislumbre me veio não muito tempo depois do acidente trágico.
A esse tipo de descoberta chamam “serendipity”. É o modo como desvelam-se coisas fortuitamente. Pode ser a solução para um problema que você nem estava procurando. Dentro das Ciências, o exemplo de como Alex Fleming encontrou a penicilina é o mais clássico. Em outras palavras: é a forma como se apresenta para você, por acaso, a resposta de uma pergunta que você não estava fazendo; a solução de um problema que você sequer estava procurando ativamente, muito embora estivesse ali, na sua cabeça, de algum jeito, semi-aceso, quasi-cine.
2. Trama Épica
Os cineastas do Cinema Novo buscavam como revolucionar o cinema brasileiro, tanto no campo político quanto estético. Discutindo a pauta da identidade nacional-popular pós-colonial, a solução para eles apareceu no desejo de encontrar o povo sob a luz natural, fora dos estúdios, aos modos de Chroniques D’un Eté ¹ – afinal, Chanchada era coisa de alienado sudestino, que nada revelava sobre a conjuntura brasileira. A turma do Bar da Líder² pelejou muito nessa ideia, mas faltava a revolução estética. Só a fome não dava forma. Isso, eles apenas encontrariam quando fosse superada a birra com Anselmo Duarte e Ricardo Aronovich³. Havia uma polêmica girando em torno da câmera-na-mão:
“Se a câmera começar a dançar, o povo fica tonto, não raciocina, não pensa. E não há um cameraman que faça uma câmera na mão que dê a estabilidade de um tripé” – Anselmo Duarte⁴
Mas havia. O nome dele era Dib Lutfi. Tudo ficou mais claro em 1963, quando Dib fotografou Esse Mundo É Meu, dirigido por Sérgio Ricardo, seu irmão mais velho. Dispondo de um enxuto orçamento, Sérgio percebeu no caçula – cinegrafista da TV Rio naquela época – grande destreza para realizar os planos pensados para a grua. Dib subia no carro, na bicicleta, no bonde, onde houvesse rodas; sentado, em pé ou no cangote do Ziraldo, portando a câmera na mão sem tremer, mantendo a qualidade fluida da imagem. Nascia a grua humana, sem querer, serendib.
Passou que quem queria criar um cinema novo, pensava em câmera na mão. Quem tinha ideias, mas não dispunha de recursos, chamava o Dib com a Arriflex IIC. Ele era uma saída, uma alternativa experimental. Virou uma estética. Chamá-lo para trabalhar significava defender essa gambiarra tropical. Quando o nome do Dib coçava na língua do diretor, já subia na cabeça a imagem junto. Ao pensar no Dib, o cineasta estaria prontamente se agregando ao estilo que ele propunha: a Câmera Dibiana – uma imagem que intima o corpo, os passos, o ritmo e o pulso do plano, que corre pelo espaço-tempo da cena, fluidamente, agenciando uma câmera-personagem, às vezes mais, às vezes menos pessoal – a depender das projeções do diretor (Jabor, Cacá, Capô, Domingos, Glauber, Leon, Nelson Pereira, Neville, Ruy, Roberto Farias, Reginaldo, Carvana, Saraceni, Walter Lima, Zelito e tantos outros).
Um corpo-mente aparelhado. Dib era aquele olho-máquina de Vertov. E mais. Ele instaurou a presença na câmera, levando-a na ponta dos pés. Foi responsável por livrar do maquinário pesado toda cena propensa à espontaneidade interpretativa, jogando com a improvisação do elenco, criando com ele um mutualismo, tirando o excesso de marcas. Era como um ator em ação, segurando as lentes – ou melhor, um bailarino. Sua inteligência estava no fato de contracenar com a equipe de forma tão conjunta, tão encadeada, que aquela incômoda presença da câmera se diafanizava. O apetrecho sumia. Seus movimentos tinham a leveza do vento, o fluxo líquido e a firmeza do grão. Homem forte, Dib chamava o fogo apenas para acelerar o movimento, tomar uma decisão de enquadramento, rápido, no intenso agora, tipo aquele lance de A Lira do Delírio que ocorre no Bloco do Zorro⁵: a baqueta pula da mão do percussionista e cai no chão, espontaneamente, e a câmera vai ligeira no encalço, seguindo o lance, até o cara apanhar a baqueta de volta. Tudo instantâneo.
Sua capacidade de leitura visual só não foi ficando mais apurada por conta daquela lei geral do colapso, que atinge todos os corpos. A nossa carne, sabemos, vai azedando… Na meia-idade, com a vista cansada, os olhos desidratados, Dib teve que pôr um par de óculos. Aquele pequeno visor da câmera queima mesmo! E mesmo de quatro olhos, antes do Alzheimer, ele tinha o controle absoluto do plano focal e da abertura da íris, sendo capaz de calcular a correção de ambos em pouco tempo. Dib era muito bom em configurar a óptica e a fotometria juntas, mesmo percorrendo ambientes com luminosidade distintas. É só olhar as cenas de Terra em Transe. Claro que havia ajuda dos parceiros, a depender da dificuldade coreográfica de cada plano. Até porque, íris e foco são dois anéis distintos da câmera. Então, quando era preciso, o que o Dib combinava com seus assistentes era o seguinte: os movimentos de tronco e pernas dele confluiriam com os ajustes manuais do foquista. Foi assim com Lauro Escorel em Das Unheil, filme alemão que o Dib fotografou em 1970, gozando do título de um dos melhores operadores de câmera do mundo, a estrela-maior do cinema brasileiro lá fora.
3. Trama Dramática
No Brasil, poucos conhecem Das Unheil. Este filme veio aqui pela primeira vez em 2022, durante a Copa do Mundo, num projeto realizado em parceria com a Casa de Estudos Germânicos de Belém e o Goethe-Institut. Era uma cópia 2K digitalizada em 2016 pelo Deutsches Filminstitut und Filmmuseum (DFF), legendada para exibições em São Paulo, Rio de Janeiro e Belém⁶. Uma preciosidade que nem mesmo o Dib conseguiu assistir em vida, embora seu nome esteja lá, nos créditos, inscrito como “kamera”. O início dessa história tem o envolvimento de três Pedros:
- Peter B. Schumann (1941), crítico especialista em cinema latino-americano. Morou na Argentina e veio ao Brasil inúmeras vezes. Membro do comitê organizador do Festival de Berlim, foi o responsável por levar diversas películas brasileiras para as telas da Europa, assim influenciando vários diretores do Neue Deutsche Cinema, o Novo Cinema Alemão.
- Peter Fleischmann (1937-2021), um desses diretores do Novo Cinema Alemão. Na época, era considerado uma espécie de visionário. Os historiadores do cinema alemão ocultam sua trajetória até hoje. Ele não aparece no rol dos famosos diretores do Filmmuseum de Berlim, por exemplo. Foi um burguês erudito e não alienado, filho de pastor, nascido na pequena Zweibrücken, um condado com água de ótima qualidade e um castelo no meio.
- Pierre Kast (1920-1984), cineasta em plena serendipidade com essa investigação.
Estes três Pedros não são os magos da Pérsia nem os príncipes do Sri Lanka, muito menos vieram de São Petersburgo, mas a relação deles com o iluminado Dib Lutfi pode ser contada assim: Há alguns anos, os Peters já vinham observando o trabalho daquele famoso brasileiro de nome semita que dançava com a câmera na mão. No Festival de Berlim de 1970, Dib andava com uma coroa olímpica invisível na cabeça, tendo 3 filmes em exibição: Os Herdeiros, Juliana do Amor Perdido e Os Deuses e Os Mortos. Um ano antes, Schumman já havia exibido a fita “O Cinema Nôvo Brasileiro” aos europeus e Fleischmann aproveitou o fato do Dib ter ido à Alemanha acompanhar o festival (junto a Ruy Guerra e Rui Polanah) para convidar o fotógrafo a ficar no país.
Ele queria filmar com Dib seu próximo longa-metragem, Das Unheil, ou a “Tragédia Anunciada”, se traduzido ao pé da letra.⁷ Dib aceitou. Afinal, tinha tudo disponível: prestígio, orçamento robusto (United Artists), película colorida (Kodak Eastmancolor) e laboratório confiável (LTC de Paris). Porém… Dib não falava uma palavra da língua daqueles caras. Como eles iriam se entender nas filmagens? Foi quando Dib ligou para Lauro Escorel⁸ pedindo ajuda – filho de diplomata, o fotógrafo seria ao mesmo tempo tradutor e assistente.
Haja mímica. Apesar da situação cômica, Das Unheil não tinha como sustentar muita animosidade diante das temáticas do roteiro. O filme é uma revolução completa. Aborda uma série de tragédias que estão retornando eternamente ao mundo – poluição ambiental, disputa de classe, religião no poder, xenofobia, estupro, rebeldia e caos generalizado – tudo através de personagens bastante verossímeis. A estória se passa numa pequena cidade da Silésia⁹, no contexto de repatriação dos sinos de uma igreja, os quais haviam sido confiscados na II Guerra Mundial¹⁰. A narrativa é conduzida por um jovem rapaz descompensado, Hille, que tenta se encontrar no meio da panela de pressão da Guerra Fria – um resumo do filme.
Dib dava o seu melhor, mas reclamava do diretor alemão, que não o instruía como os outros. Não havia aquela direção de planos mais detalhada, como faziam Sérgio Ricardo ou Ruy Guerra. De fato, essa sensação de abandono deveria ocorrer não apenas durante a criação dos planos, mas também no vácuo comunicacional entre o fotógrafo e os atores, onde a distância idiomática prejudicava sua percepção do conteúdo expressivo das cenas. O ressentimento se dava na carência de diálogo, um princípio muito valorizado pelo Dib:
“Eu estou mais acostumado à coisa da simplicidade, de acompanhar o lance da interpretação do ator. Eu acho que o mais importante é o conteúdo, o dom da pessoa.” – Dib Lutfi¹¹
Se por um lado Dib tinha bastante liberdade para incrementar a mise-en-scène, por outro, a falta de um código comum às vezes exauria sua energia criativa. Assim, Das Unheil tem planos que nitidamente foram realizados com mais disposição do que outros, o que mostra a galhardia do Dib em apresentar soluções para problemas de movimento que envolvia semântica narrativa, algo que deveria ser da alçada do diretor. A questão foi se resolvendo ao passar dos meses (cinco no total) e na emoção do impulso junto ao milagre próprio do amor ao cinema. Não foi à toa, Dib voltou ao Brasil com uma namorada alemã.
Já o Pedro francês, o Pierre Kast, morreu no mesmo dia em que Truffaut. Por isso quase ninguém se lembra dele; mas uma série de arquivos do INA¹² refletem sua presença na Nouvelle Vague. Era um amante da língua portuguesa e esteve presente no Brasil diversas vezes – inclusive com Vladimir Carvalho, meses antes do acidente aéreo que o matou entre Paris e Roma. Dib Lutfi fez um filme com ele em Minas Gerais, após 5 anos de sua passagem pela Alemanha: A Nudez de Alexandra. Essa obra parece estar trancada no cinto de castidade da Cinedistri, pois ninguém consegue a chave para tirar uma cópia. O título em francês ficou Un Animal Doué de Déraison, que significa “um animal dotado de loucura”. Quem assina a música é Sérgio Ricardo.
No meio do acervo do Dib há uma dúzia de fotografias que remetem à essa obra, embora não tenham origem identificada. As imagens aparentam ser a encenação de uma possessão vampiresca. No princípio, sem assistir ao filme, poderíamos dizer que são fotografias de cena (stills), mas é provável que tenham sido realizadas durante uma peça de teatro. É uma relação plausível, porque sabe-se que o filme foi baseado em um livro escrito por Kast cujo título original é: Les Vampires de l’Alfama¹³.
A ilustração da capa da segunda edição francesa coincide com uma das fotografias citadas. Mas como Ivete Miloski (uma das atrizes do filme) e Ismael Cordeiro (técnico de som) disseram que não há nenhuma cena de terror no filme, tudo leva a crer que não há uma relação direta entre as duas coisas. No eclipse de explicações, algumas dúvidas resistem. Quem teria dado isso ao Dib? O próprio Kast? Por quê? Será que o roteiro teve partes vedadas pela censura? É bem verdade que a obra sofreu mudança de título na edição brasileira. Mas… Por que Dib guardou essas fotografias? Qualquer dia surgirão as respostas, nessa pegada serendíptica.
Falando de personagens draconianos… Há uma crítica de Glauber Rocha sobre Das Unheil em duas versões: uma em francês, sem local ou data; e outra em alemão, assinada em Cuba:
A tradução é minha junto com a I.A.:
CATÁSTROFE, DESTRUIÇÃO, POLUIÇÃO
O primeiro bárbaro cineasta alemão depois de Fritz Lang, Peter Fleischmann aterrissa na cidade onde Goethe escreveu “Werther”, um ensaio sobre a Alemanha burguesa do seu tempo. Psicanálise, exorcismo e ascensão de uma família de pequenos burgueses em uma sociedade europeia marcada por tabus religiosos, colonialismo inconsciente e culpa. O que fazer? Ir aos Andes, viajar para o Oriente, make a trip, esquecer as cidades industriais da civilização moderna? O novo Werther de Fleischmann não se suicida e ainda acho que ele poderá se libertar de todos os males do seu tempo.
Um operador de câmera genial, o brasileiro Dib Lutfi, colabora com Fleischmann em sua execução física de planos, demolindo as estruturas clássicas da mise-en-scène. Anárquico, violento e pulsante, Fleischmann rompe com a mediocridade de um jovem cinema europeu castrado por complacência estética ou por teorias políticas. Gosto de DAS UNHEIL. Lotte Eisner ficará feliz em ver que a herança dos mestres renasce junto à Fleischmann.
Glauber lembra uma coisa interessante: Goethe viveu em Wetzlar, cidade onde foi filmado Das Unheil e onde fica a fábrica da Leica, marca da câmera que registrou aquele famoso retrato do Che Guevara. Trata-se de um local hoje supervigiado. Foi ali que o romancista alemão desenvolveu um personagem shakespeariano, o jovem Werther, que troca cartas com um amigo sobre suas incessantes frustrações. É notável como a carta de 22 de maio sintetiza a tragédia do ser humano (os destaques e parênteses são meus):
Muitos já pensaram nisso e eu também partilho desse sentimento: a vida do homem não passa de um sonho. Quando considero os limites aos quais se restringem as forças ativas e investigativas do homem (fora x dentro) ; quando vejo como toda ação se resume a criar satisfação para as necessidades, as quais, por sua vez, não tem outro objetivo senão o prolongamento da nossa pobre existência (compensação) ; e ainda, quando percebo que toda calma a respeito de nossa busca não passa de uma resignação sonhadora (ressignificação do mal) – já que se decoram as paredes entre as quais se prendem figuras coloridas e perspectivas luminosas (brincadeira da arte) – tudo isso, meu caro Wilheim, me emudece. Volto-me para mim mesmo e encontro um mundo! (força telúrica) E aí de novo: predominam o pressentimento (intuição do futuro) e o desejo obscuro (curiosidade pelo desconhecido) sobre a representação (cópia) e a força viva (criatividade). Tudo isso flutua nos meus sentidos (fenomenologia), e então, sorrio para prosseguir sonhando mundo afora (projeção cósmica).
Todos os doutos e pedagogos concordam que as crianças não sabem o motivo dos seus quereres; mas que também os adultos, do mesmo modo que as crianças, vagueiam por este solo sem saber de onde vem ou para onde vão. Menos ainda: agem sem objetivo definido. Tal como as crianças, são governados por biscoitos, bolos e vara de marmelo (açúcar, faltas e limites). Tenho impressão de que isso é óbvio, no entanto, todos duvidam.
Confesso-te – pois sei o que vais me dizer a esse respeito – que os mais felizes são aqueles que, assim como as crianças, vivem um dia após o outro, carregando suas bonecas, despindo-as e vestindo-as e, com grande respeito, rondam a gaveta em que a mãe trancou o pão doce e, quando por fim conseguem o que desejam, devoram-no com a boca cheia e exclamam: Mais!
São felizes essas criaturas. Também estão bem aqueles que dão títulos pomposos às suas ocupações miseráveis ou mesmo às suas paixões, qualificando-as como operações importantes para a cura e o bem-estar do ser humano. Feliz aquele que pode ser assim! Mas quem, no entanto, reconhece humildemente para onde tudo isso leva (morte); que vê, por um lado, o modo como o cidadão satisfeito sabe fazer de seu pequeno jardim um paraíso e, por outro lado, como o infeliz ofega incansavelmente sob o fardo que carrega em seu caminho – sendo que todos eles estão igualmente interessados em ver, por mais um minuto, a luz do sol (verdade sensível) – este, sim, se cala e cria o seu mundo a partir de si mesmo, porque é um ser humano feliz. E então, por mais limitado que seja (em relação às capacidades), ele traz sempre em seu coração a doce (delirante) sensação de liberdade, sabendo que pode sair dessa prisão quando quiser (contorno suicida).
5. Ponto de virada ascendente
No trânsito da inocência para o esclarecimento, há uma fase lúdica. São estágios que variam do bobo ao palhaço, do tolo ao pateta, do fantoche ao paspalho. O lúdico não é outra coisa senão o modo como se compreende o mundo ao longo dessa passagem. É um contorno para a vida. No encontro com os mestres alquimistas estarão os elementos mais ordinários para essa compreensão: a pedra, a terra, a areia, a água, o vento, o ar, a pressurização, os astros e a gravidade, a natureza, o momento, o fogo, a luz, o raio, o visgo, o cheiro do bálsamo dos deuses; são eles que vem para nos ensinar sobre a fé. E quando esta minguar… “Ai que loucura!”
6. Trama conciliadora
Qual a semelhança entre Serendipidade e Eterno Retorno? Ambos são imprecisos no tempo. Não têm hora exata para acontecer. Embora o Eterno Retorno tenha endereço previsto, a Serendipidade sucede ao acaso, sem hora nem local para ocorrer. É fenômeno deslocado, quase perdido – um elo que se fecha ao léu. O Eterno Retorno é uma volta, o regresso a uma situação de qualidade cíclica, com aparência de repetição. Serendipidade é assim apenas em sua latência, onde fica girando, tentando se combinar com algo sem chamar atenção. Faz um estalo quando reencontra a razão do problema-raiz encoberto. Aí sai faísca. É análogo à memória do sistema imunológico. Já o Eterno Retorno se parece mais com o palimpsesto: o fato vai se acumulando um sobre o outro, a cada reaproveitamento do pergaminho. É uma reescritura – o modo como a história se reinventa desgastando o suporte. Está sempre diferente, mas a base é a mesma. Pode destoar, pero no mucho. Deve destoar, ma non troppo. D’autre part, a Serendipidade precisa se distanciar da causa, manter o afastamento saudável para que possa se manifestar. É uma resposta que só aparece à revelia do imediato, assim mesmo, rebelde, mas espontâneo. Ambas têm, acima de tudo, seu próprio relógio.
7. Desfecho editorial filarmônico
Apontada pelo coeditor da revista Usina e incentivador desta publicação – Vitor Faria – a canção abaixo, de Déa Trancoso, surgiu como uma referência apoteótica para essa trama entre Dib e Serendipidade.
Capte o vigor das escolhas felizes
Opte pelo pote no fim do arco-íris
Serendipity lhe dará a mão
Vá no frescor da alegria que invade
Acalme essa brasa do mundo que arde
E serendipity lhe dará a mão
E daí…
______________________________________________________
[1] Longa-metragem de 1961, dirigido por Jean Rouch e Edgar Morin, símbolo da estética do povo-fala.
[2] Bar situado no Rio de Janeiro, na Rua Álvaro Ramos, bairro Botafogo, próximo ao laboratório de revelação de filmes Líder.
[3] Anselmo Duarte, diretor de O Pagador de Promessas (1962) e Vereda da Salvação (1965), este último, fotografado por Ricardo Aronovich, o qual havia usado câmera na mão em Os Fuzis (1963). Os dois eram opositores do lema cinemanovista “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.
[4] Trecho de depoimento concedido ao MIS-SP.
[5] Longa-metragem de 1978, de Walter Lima Jr. com cenas docuficcionais feitas no carnaval de Niterói. Dib Lutfi o considera como um dos mais emblemáticos de sua carreira como diretor de fotografia.
[6] Cinemateca Brasileira, MAM-Rio e Cine Líbero Luxardo, respectivamente em 27-Nov, 08-Dez e 22-Dez de 2022. Mais detalhes no site: https://www.cameradibiana.com/dasunheil
[7] Nos arquivos brasileiros encontramos traduções como “Desastre” ou “Catástrofe”, mas o sentido original contém a ideia de “futuro iminente”.
[8] Diretor de Fotografia que conheceu Dib Lutfi nas filmagens de Terra em Transe, quando era stillman.
[9] Região secularmente envolvida em conflitos fronteiriços entre Prússia, Polônia e Tchecoslováquia.
[10] Os militares confiscavam os sinos para servir como reserva de metal à fundição balística.
[11] Depoimento concedido ao documentário “Os Iluminados”, de Cristina Leal.
[12] Institut National de l’Audiovisuel Français: www.ina.fr
[13] “Os Vampiros da Alfama”, nome de um bairro histórico de Lisboa.