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Filosofia Africana e Milton Nascimento

novembro, 2023

Milton Nascimento, 1977. Foto: Olívio Lamas / Agencia RBS

A construção ética e estética na musicalidade afro diaspórica brasileira

Este ensaio se propõe, de maneira despretensiosa,  correlacionar algumas produções artísticas brasileiras com a filosofia africana, bem como pensar a influência da cosmovisão africana sincretizada no Brasil via expressões e narrativas transpostas na musicalidade – com enfoque na obra de Milton Nascimento.

Como escopo teórico, me aproprio de termos usados pela pesquisadora Nathalia Grilo, que se debruça sobre o jazz e suas capilaridades e elabora com maestria estudos sobre as estéticas melanizadas e a escuridão sônica na travessia transatlântica África-América.

O que me importa neste estudo é ressaltar a utilização da palavra/linguagem enegrecida como navalha e escudo de perpetuação sócio cultural e de resistência, que se desloca desde África e das concepções filosóficas-espirituais africanas dentro do território espacial, temporal e corporal dos artistas. Busco estabelecer uma relação indissociável entre ancestralidade e compromisso geracional com o antes e depois, perpetuando uma ética de cuidado e proteção assentada na verdade, colocada como escopo político e filosófico, e traduzida na reafirmação estética e ética da negritude brasileira.

Quando não, também tendo sido necessário “botar a palavra (ou letra, gesto, linguagem) na palha” estrategicamente como artimanha contra colonial, isto é, dissimular o significado no intuito de ludibriar ou omitir informações aos colonizadores, de modo que somente quem é da tradição interprete corretamente a linguagem/signo.

Para a cultura afro-brasileira, majoritariamente, ou ao menos dentre os artistas que serão aqui citados, é indissociável o fazer artístico do fazer político e do fazer social. Nessa perspectiva, postulam um mundo advindo de percepções não-brancas, pautado em outras éticas, pois incluem em suas atuações a noção ampliada do saber e da própria cultura que carregam e inspiram seus trabalhos, imbuídos de noções identitárias e comunitárias que constroem suas obras.

Sobre os/as artistas

Jorge Ben Jor, com seu álbum África Brasil (1976) e A Tábua de Esmeralda (1974), discorre claramente sobre a magia, a filosofia, o futuro, o amor, o erro e a espiritualidade para além da ética sistemática produtivista, cantando “Errare Humanum Est”, “Zumbi” e “Xica da Silva”. O primoroso trabalho de Ben inaugura um contato transcultural com a cantora Miriam Makeba, que interpreta algumas de suas canções e é também engajada no fazer artístico contra colonial, chegando a dizer na introdução de sua música “Click Song”:

“In my native village, in Johannesburg
There is a song that we always sing when a young girl gets married
It’s called The Click Song by the English
Because they can’t say ngqothwane”

O que significa em tradução livre:

“Na minha cidade natal, em Johannesburg,
Existe uma música que sempre cantamos para as jovens moças que se casam
Chamada The Click Song pelos ingleses
Porque eles não sabem dizer ngqothwane”

O que me chama atenção nessa fala, e no intuito de relacionar com Jorge Ben, é a maneira como Miriam se refere ao não saber dos ingleses, ou seja, eles – os outros, os brancos – a nomeiam, mas entre os seus é sabido o real significado e a palavra que se usa para determinar um gesto cultural. Assim como Jorge, nas diversas vezes em que compõe músicas para Jorge da Capadócia ou para os Alquimistas, e o seu dito non-sense, quando na realidade está imbuído de razão e significado; ou Alcione, cantando “Figa de Guiné”, onde um dos versos diz “mas o de fé do meu axé não vou dizer qual é”. Ambos pressupõem o sentido da palavra, do silêncio e das coisas não sabidas para quem não é da tradição ou da comunidade.

Milton Nascimento em sua música “Raça” cita no primeiro verso: “Lá vem a Força, lá vem a Magia”, engendrando a concepção de força à própria magia. Naná Vasconcelos e Milton Nascimento, em determinado momento de suas carreiras, se juntam e produzem diversas obras, todas calcadas na musicalidade negra que é imbricada nos sentidos epistemológicos espirituais e que são ritos e cosmovisões, ampliados na escuridão sonora dos passos de Naná, um dos maiores percussionistas brasileiros.

Pontuo ainda, brevemente, o contexto sócio-histórico nos quais as obras citadas foram compostas, todas são de meados da década de 70 em diante, ainda no período ditatorial. Ressalto o olhar midiático e propagador que se dá a estes artistas, notoriamente menor em sentidos, ressonância e impacto cultural, assim como de resistência.

“Há uma sensação de injustiça quando se pensa no reconhecimento do Clube da Esquina no contexto da música popular brasileira (MPB). As características de inovação, refinamento harmônico, melódico, rítmico e poético da produção de artistas mineiros, difundida principalmente nos anos 1970, não teriam encontrado o devido valor no panteão dos grandes movimentos que redefiniram a linguagem da MPB. Tanto a mídia quanto os pesquisadores ligados à história da canção popular elegem outros estilos, como o samba, a Bossa-Nova, a Jovem Guarda e o Tropicalismo, deixando à margem o Clube da Esquina, em desacordo com a importância das músicas criadas pelo grupo.” (De Carvalho, 2017)

Os movimentos citados comparativamente ao Clube da Esquina têm como precursores pessoas brancas e embranquecidas no gênero musical, enquanto o Clube tinha como grande nome Milton Nascimento.

Dimensões Éticas e Estéticas do trabalho de Milton Nascimento

Ao que se caracteriza as dimensões éticas do trabalho de Milton, especialmente vinculado ao Clube da Esquina, calco as reflexões aqui feitas a partir dos textosO Enigma do Clube da Esquina: vozes de uma outra África na pedagogia do congado” e “A Tradição Viva”, além dos debates fecundos nas aulas de Filosofia Africana.

Primeiro, ressalto o próprio nome do principal disco e do grupo, “Clube da Esquina”, indicando a esquina como um conceito fundamental em se tratando da cultura religiosa afro-brasileira, onde se configura uma ideia de passagem, transição, encruzilhada, uma localização suspensa no espaço-tempo, que vai e volta. E é exatamente nesse sentido que se movimenta o fazer artístico de Milton Nascimento e dos integrantes do Clube da Esquina, há uma intenção sincrética de resgate profundo da cultura mineira, que se realiza na junção religiosa católica cristã e na cultura africana nagô, em que surgem expressões artísticas populares e das influências externas, como o jazz (ritmo musical naturalmente negro e que desenvolve uma profunda relação espiritual em determinado momento histórico) e o rock.

Desta forma, nessa mescla de vários ritmos e pesquisas culturais, cria-se um estilo único no fazer artístico que contorna esteticamente as músicas do grupo – em Milagre do Peixes (1973) as nuances rítmicas africanas e mineiras são evidentes. Este disco ainda passou pela censura e teve letras suprimidas, o que fez com que Milton permanecesse apenas com a melodia em algumas faixas.

Segundo De Carvalho, existe uma diferença entre a voz que fala e a voz que canta, sendo a voz que fala a que se preocupa com o enunciado e a voz que canta a que se preocupa com a maneira com que se diz. No próprio texto, De Carvalho diferenciará os momentos históricos em que Milton se faz em cada um desses conceitos ou se mistura neles. O intuito aqui é reafirmar a fala como a potência ética e estética da musicalidade de Milton Nascimento e sua ligação à tradição africana.

Os álbuns de Milton trazem consigo a palavra como campo e corpo da memória, bem como sua voz que, segundo De Carvalho, intercala técnicas que remetem às tradições africanas. As músicas narram a história da cidade e das estradas, algo intrínseco às letras são as relações com o espaço-tempo da viagem, que leva ao encontro do que se resgata tradicionalmente e do que é moderno, e tratam de questões cotidianas como a palavra, que dão forma aos gestos temporais.

É nisso que se funda o viés ético de Milton Nascimento e do Clube da Esquina, a palavra está imbricada à cultura mineira e não descolada da realidade, embranquecida ou gentrificada. As raízes do Congado e da palavra são parte fundamental dos álbuns do grupo. Existe um compromisso com o que se narra, com a verdade, para além dos holofotes midiáticos que ouviam, mas não viam o Clube da Esquina.

Milton Nascimento encerra sua carreira no ano de 2022, com a turnê A Última Sessão de Música, e aos oitenta anos se consagra um ancião cantando a história de seu povo e a memória de seu território, compromissado ética e esteticamente com a cultura ancestral negra. E é com esta imersão tão profunda como necessária, que encerro este ensaio:

“Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra.” (Hampaté Bâ, 2010)

 

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Bibliografia

MARTINS, Bruno Viveiros. Som imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina. Editora UFMG, 2009.

BÂ, Amadou Hampatê et al. A tradição viva. História geral da África, v. 1, p. 167-212, 2010.

DE CARVALHO, Pedro Henrique Varoni. O enigma do Clube da Esquina: vozes de uma outra África na pedagogia do congado. Revista Desenredo, v. 13, n. 1, 2017.

 

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