No alto do Morro de Santo Antônio, contraponto do Edifício Central no Largo da Carioca, está a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, local de meditação silenciosa em meio ao som mal distinto do centro do Rio de Janeiro. No altar, uma das figuras mais alucinantes do barroco colonial brasileiro, uma rara representação escultórica do Cristo de seis asas que um dia surgiu nos céus diante de São Francisco de Assis: o Cristo Seráfico.
Em 1224 São Francisco de Assis andava no final de sua vida. Quase inteiramente cego, retirou-se no Monte Alverne (Toscana) parar orar, jejuando e prostrando-se em solidão, quando, em 14 de Setembro, entrou em um transe profundo. De joelhos no chão e mãos em sinal de entrega, recebeu as cinco chagas transmitidas de um Cristo ofuscante, ao mesmo tempo crucificado e voador, o Cristo Seráfico que apareceu sobre os montes.
Como nova imagem fundacional do cristianismo, a aparição do Cristo Seráfico foi representada em diversos retábulos durante o período do gótico tardio, antes de eclipsar-se por um tempo, provavelmente pela dificuldade em adaptá-la à centralidade clássica do Renascimento. Depois, com o barroco italiano, a visão mística de São Francisco ocupou o interior das igrejas em acordo à estética luxuosa que fundia as linhas tortuosas do espírito com o peso da centralização imposta pela contrarreforma. Sublinhamos a quase ausência da representação do Cristo Seráfico em pinturas de estilo clássico e sua rara representação através da escultura. “A queda para o alto” de São Francisco se tornou um verdadeiro desafio tanto para a figuração clássica quanto para a representação volumétrica.
Em A Lógica da Sensação, Gilles Deleuze descreve o Cristo Seráfico de Giotto como uma “pipa no céu, verdadeiro avião, que lança as estigmatas em São Francisco, enquanto as linhas entrecortadas do percurso destas estigmatas são como marcas livres com as quais o santo maneja os fios do avião pipa”. Linhas que expressam um frisson vertiginoso, livres de qualquer figuração ou mediação.
A visão do Cristo Seráfico é um acontecimento em negativo. As estigmas são marcas indeléveis, como as marcas nos rostos dos escravos punidos, ou a circuncisão dos judeus – não se apagando, permanecem no corpo até a morte. À fixidez da cruz no Gólgota, que finca o corpo na terra e cria um eixo, funda um lugar e um centro, se opõe o movimento do voo/queda livre no Monte Alverne: queda para o alto. Imagem da imagem da imagem. Não sendo, portanto, casual que uma representação escultórica tão única do Cristo Seráfico se localize justamente no alto do Morro de Santo Antônio, no centro da cidade do Rio de Janeiro – nova imagem do Monte Alverne, que por sua vez já é uma imagem em contraponto do Gólgota. Imagens ao mesmo tempo fundacionais e à deriva, centralizadoras e desviantes.
Em sua biografia de São Francisco, G. K. Chesterton traça uma forma de idiotia em vias de tornar-se santidade. Para ilustrar a queda (entre a lama) que se torna ascensão (entre as nuvens), Chesterton fala das meditações que São Francisco costumava praticar de cabeça para baixo:
Se um homem visse o mundo de cabeça para baixo, com todas as árvores e torres dependuradas, viradas, como numa poça, um efeito seria salientar a ideia de dependência. Existe uma conexão literal latina, pois a mesma palavra dependência apenas significa dependura. Tornaria mais vívido o texto das Escrituras que rezam que Deus dependurou o mundo em nada. Se São Francisco viu, num dos seus sonhos estranhos, a cidade de Assis de cabeça para baixo, não teria diferido num único pormenor sequer, exceto por estar voltada inteiramente. Mas o ponto é este : enquanto que para os olhos normais a pesada alvenaria das suas muralhas, os alicerces maciços das suas torres de vigia e sua elevada cidadela a tornassem mais segura e mais permanente, no instante em que fosse virada para baixo, o próprio peso daria a impressão de estar mais desamparada e mais em perigo. Não é senão um símbolo, porém acontece ajustar-se ao fato psicológico. São Francisco podia amar a sua pequena cidade tanto quanto antes, ou mais do que antes; mas a natureza do amor seria alterada, mesmo pelo fato de ser aumentado. Poderia ver e amar toda telha dos telhados íngremes ou todas as aves nas ameias; porém veria todas sob uma nova luz divina de eterno perigo e dependência. Ao invés de meramente sentir orgulho pela sua cidade, por ser inamovível, ele renderia graças a Deus Todo-Poderoso por ela não se ter despencado; daria graças a Deus por não despejar o cosmo inteiro como um vasto cristal a ser estilhaçado em estrelas cadentes. Talvez São Pedro tenha visto o mundo assim, quando foi crucificado de cabeça para baixo.
A dicotomia entre movimento turbilhonante em queda/ascensão permanente (para o alto e para baixo) e o movimento fixo da imagem ideal (para frente e para dentro) se faz presente no neobarroco latino-americano, tal como vê-se no barroco cinematográfico.
Em Terra em Transe os personagens são figuras paradigmáticas que caminham lentamente, em agonia, falando quase sem mover-se, enquanto a câmera dá piruetas ao redor. Já em A Idade da Terra, a câmera faz movimentos panorâmicos e voa em zoons, ainda que esteja sempre fixa por um tripé, âncora que traz a imagem de volta ao centro para lança-la novamente ao caos. O tripé faz com que não se altere a relação entre fundo, personagem em cena e câmera. O zoom penetra na realidade sem nunca de fato entrar nela. Glauber reinstaura a representação barroca do mundo enquanto teatro do poder. O espectador vaia e ovaciona durante a sessão de cinema, por estar sendo ao mesmo tempo convidado e expulso do espetáculo.
Ao lado de Ana Maria Magalhães, Tarcísio Meira repete sobre as pedras de uma Baía de Guanabara extremamente poluída, que vira cenário trompe l’oeil:
Os nossos alicerces foram destruídos! Houve uma implosão no centro da Terra! Nós estamos condenados! A qualquer momento nós poderemos ser tragados pelo abismo!
É curioso notar a recorrência de tecidos em A Idade da Terra, absorvendo o olhar do espectador, como o tecido vermelho que veste Ana Maria Magalhães. Os personagens vagam em um mundo pós-morte, mas seus tecidos, suas insígnias, seus sangues são elementos de pura vitalidade. Como quando nos deparamos com o corpo gélido de mármore nas pinturas de Caravaggio, enquanto o tecido vermelho, ou o sangue de São João Batista permanece vivo no quadro. Paradigma estático e vitalismo extático lado a lado como os gêmeos discuros, um mortal e outro imortal.
Waly Salomão diz que a vestimenta esvoaçante de São Cristóvão de Hieronymus Bosch (século XV) é um “protoparangolé”. Já Hélio Oiticica define os parangolés como um ato de « pintura viva », « anti-arte por excelência ». E se São Cristóvão é o “protetor dos viajantes, dos que transitam, dos que estão possuídos, dos que mudam de pele, dos mutantes”, seu tecido expressaria outra espécie de presença divina, a da transitoriedade, e outro fato social, o da exuberância da miséria.
São Cristóvão é o santo da “viagem imóvel”. Seu tecido, a imagem do transe extático. Parece que toda viagem mental produz-se através da justaposição de imagens mentais (ícones, centros prováveis, animais de poder) e descentralizações informes (fluxo informe, rio sem leito, abstração anímica). Quando lemos alguns autores do neobarroco cubano (como Severo Sarduy e Lezama Lima), nos deparamos com o mergulho da exuberância de imagens multicolores em um rio viscoso. Areia movediça que engole estátuas de traços orientais, que somem e ressurgem da lama, como se um palácio de imagens (um palácio da memória, um cemitério, um jardim maneirista) fosse levado por uma enchente (o rio do caos e do esquecimento).