Numa segunda-feira de céu aberto e calor baiano das quentes tardes dezembrinas adentrei a Feira de São Joaquim, através dos passos largos de Èsù, a esfera da vida rueira que cheira mar conduziu minhas mestiças pernas por entre os labirintos coloridos daquela imensidão ancestral. Grapiúna que sou, me dei conta da magnitude africana no esbarrar do olho negro de Dona Balbina do Aipim – a mulher da massa moída.
“Sou filha do interior!” foram suas primeiras palavras, de postura firme e dizer ácido, aquela mulher negra que mais parecia Oyá nos antigos mercados da África Yorubá determinou naquele instante a rota de vida que meu pensar seguiria desde então – Feiras Livres!
Carregando balaio na cabeça num sinuoso requebro de sons balangandãs, as mulheres yorubanas resignificaram as ruas das capitais brasileiras, ditando belezas e segredos cientes da marca insolúvel de luta cotidiana pela sobrevivência que trazemos na alma. Foram elas Catarina Mina, Maria Conceição, Ana Maria, Antonia da Silva, Ana da Silveira, Maria Mina e muitas outras negras autossuficientes que regiram uma enorme rede de escravas de ganho e pretas forras nos longos idos dos séculos XVII a XIX nas terras brasilis.
Mulher – Negra – Escrava. O simbolismo da resistência, da fraternidade e do vigor contido nas ações das quitandeiras, quituteiras e feirantes do Brasil. O dono de escravos logo percebeu o forte tino comercial das yorubanas, provou de seus deliciosos quitutes e as mandou pra rua, foram justamente ao campo gravitacional de Èsù. “Aquele que muito anda voa” diz o dito Yorubá! O dono das encruzilhadas, aquele que guarda as portas e tem as chaves do caminho negro existente no ventre da mulher. A sexualidade da alma, o controverso-inverso que sabe aonde quer chegar. Refazer os seus passos é pairar no espaço circular do Orí, o centro de tudo que é vivo, o encantar do asè, a força viva ainda maior que o poder, o respirar. Mensageiro condutor do querer humano, do sagrado Orisà que vagueia por entre as feiras, que faz e refaz o que feito está. Por trás da carranca brava, do tridente demoníaco, da gargalhada debochada repousa a magia daquilo que é infinitamente maior que a compreensão prenhe de preconceito. O elo. O ser e o estar – o não ser que já é, aquele que foi e ainda será! Conduziu a sabedoria feirante das mulheres negras no cerne da diáspora criminosa.
E elas reinaram, tornaram-se rainhas absolutas do luxo e do poder que somente uma africana desfilante de seu séquito de escravas poderia ostentar, com a sagacidade e a perspicácia da herança trazida fortuitamente de suas terras, garantiram alforria, montaram negócio, ganharam respeito, compraram escravas, não tinham filhos, nem se casavam, tinham orgulho – donas de si e do mundo! Pronto, a rede estava formada. Ouros, sedas, jóias, louças, casas, terras, negócios próprios. São testamentos extensos de pura exuberância que foram deixados por elas às suas afilhadas alforriadas que logo aprendiam o ofício dando continuidade à qualidade de senhoras das ruas. Negociavam!
Zum zum zum nasceu com a feira, burburinho veio dela. Depois de muito andarem pelas ruas trôpegas das capitais, decidiram montar parada. Barraca, cores, cheiros, gostos, falatório – Estava formada a feira. A feira que não é dinheiro, é diálogo! A feira que não é trancada, é na rua! A feira que é olho no olho, a feira de possibilidades e trocas! Era bolo, cocada, angú, mingau, acarajé, frutas, temperos, jogo de búzios, Capoeira Angola e batuque de samba de roda, era mulher negra nas ruas!
Na barra de suas alvas saias rendadas, crianças cresciam e aprendiam a sabedoria popular, não vinham sós, com elas vinham os contos, os causos, as aventuras e os ensinamentos da Mãe África. E foi no meio de suas pernas e grudadas em suas costas que as crianças negras foram embaladas pela atmosfera das feiras de rua. “A feira é uma mãe”, foi o que me disse Dona Balbina.
Dinastia que surge da solidariedade feminina, o sagrado que dinamizou a economia nas Américas, conseguiram o que muitos homens livres não conseguiram. Mãos negras que libertaram sua essência africana nas ruas das cidades, revolucionárias contra o cenário machista e opressor, senhoras não somente de sua liberdade, mas da herança que temos hoje enquanto mulheres negras ainda atuantes contra o poder masculino e conservador do Brasil. Trouxeram a arte do comércio em suas veias, acumularam bens, fugiram da lógica do coitadismo escravocrata, eram rainhas que rebolavam seus penduricalhos, seus balangandãs, suas rendas e a alvura de suas saias rodadas nas esquinas sujas do Brasil menino. Dessa rede de quituteiras vieram Luiza Mahin, Tia Ciata e Dona Balbina, e delas nasceu a concepção de Feiras livres nas capitais, foi do jeito Yorubá de fazer comércio que a Terra de Vera Cruz aprendeu e apreendeu o conhecimento necessário para dialogar, barganhar e negociar.
As feirantes representavam perigo para a sociedade brasileira, por terem livre acesso às ruas e por dialogarem com todo tipo de gente, elas simbolizavam o poder feminino no âmbito público, tinham respeito social e político e conheciam os caminhos dos quilombos. Serviam de ponto comunicador entre o escravo fugido e a terra prometida, representavam a salvação, sabiam das línguas, sabiam de tudo o que nas ruas acontecia. Muitas foram marginalizadas e presas, Luiza Mahin foi deportada após liderar a Revolta dos Malês. Precisavam estar unidas para sobreviver e dar continuidade ao sangue africano que corria em suas veias, o Candomblé nasce assim como forma de resistência, para assegurar um local de aconchego e de reafirmação da cultura africana no Brasil. A quituteira e Iyalorixá Mãe Aninha, mulher a frente do Ilê Axé Opô Afonjá, hoje considerado Patrimônio Histórico Nacional, conseguiu comprar sua Casa de Asè com o dinheiro da venda de seus doces. A fraternidade criada por essas mulheres fez com que milhares de afro brasileiros encontrassem uma segunda pátria no íntimo e místico abrigo formado por elas.
A rua sempre foi o lugar de mulheres negras, o oposto da mulher branca que vivia em âmbito privado, no recato e no lar. Foi a partir de estratégia, união e da sagacidade que vencemos e reinamos absolutas pelos becos sinuosos das capitais do Brasil e foi por meio da perda desse elo que saímos das feiras livres dando espaço aos homens e voltamos para as cozinhas das sinhás.
Teria sido a rede formada pelas quituteiras feirantes a primeira forma de feminismo negro no Brasil? Teria sido a primeira vez em terras brasileiras que mulheres negras se uniram para um bem comum, para cuidar umas das outras?
Kiusam Regina de Oliveira, Iyalorixá e Contadora de histórias nos diz em seu forte pensar que a subjetividade do “ser mulher” no espaço social, religioso, educativo, econômico, histórico e cultural está impressa na ação cotidiana das donas das feiras livres nas capitais do país, que se apropriaram de estratégias milenares transmitidas pela ancestralidade que e se mostraram capazes de empoderar mulheres negras. Quais foram essas estratégias? Seria possível utilizá-las na educação formal a fim de empoderar meninas e mulheres negras nos dias de hoje? É preciso firmar e reafirmar uma identidade positiva nestas mulheres apesar de todo preconceito e exclusão que elas vivenciam. Segundo o dicionário atual, a palavra NEGRA significa: Escrava. Mulher que trabalha muito. Como quebrar essa negatividade e invisibilidade do “ser mulher negra” na sociedade machista, elitista e branca que se refere a nós como meros objetos sexuais e servas de trabalho? Não representamos sequer o orgulho da sociedade brasileira, que nos considera fora do padrão estético ideal. Sofremos com as visões, conceitos e preconceitos de uma sociedade que nos agride constantemente. A cidadania para a mulher negra tem sido algo muito difícil, uma vez que somos as maiores vítimas do feminicídio, da pobreza, dos subempregos, da gravidez na adolescência, da violência nos hospitais e do distanciamento na educação formal.
Foram longos os caminhos que nós, mulheres negras, percorremos desde a diáspora até os dias atuais e serão ainda mais extensos os ideais pelo quais lutamos diariamente. Observamos nosso passado como um espelho que reflete a nossa identidade, a nossa luta, com ele é possível compreender a mística e latente ancestralidade que corre em nossas veias, através das histórias das feirantes afro brasileiras podemos angariar força e disposição para seguirmos a diante sem fraquejar, mesmo com a negligência e a perda violenta de nossos filhos, esposos e pais, mesmo com o descaso, mesmo com o silenciamento que nos são impostos cotidianamente, resistimos!
Resistir é o que temos feito e o que continuaremos a fazer! Foi pelo ventre e pelos seios das mulheres negras que o Brasil se estruturou enquanto colônia, enquanto monarquia e enquanto república. É pelo que somos, fomos e seremos que se ergue uma nação que em compensação nos distancia dela. Não nos calaremos! Somos herdeiras das feirantes que construíram a economia nacional, a cultura afro brasileira, a religiosidade sincrética, somos as netas das negras que o Brasil não conseguiu silenciar!
Fontes:
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Oliveira, Kiusam Regina de / Candomblé e educação: estratégias para o empoderamento da mulher negra; (FEUSP); 2008
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Negras Senhoras: o universo material das mulheres africanas forras / Vilmara Lucia Rodrigues Mestranda – UFRJ; 2005
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ENTRE O TRABALHO E A CORREÇÃO: escravas e forras na cidade do Rio Grande (segunda metade do século XIX) ; Claudia Daiane Garcia Molet; 2009
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O que se lê nos jornais, o que se vê nas imagens: escravas de ganho na Belém do século XIX ; Bárbara da Fonseca Palha; 2009
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PROJETO PÉROLAS NEGRAS: valorização da diversidade cultural na escola. Raíssa Rosa Quadra; 2013.