Nancy Mangabeira Unger é uma filósofa brasileira e professora titular da Universidade Federal da Bahia. Militante no movimento político contra a ditadura, em 1970 foi presa e exilada.
No livro O encantamento do humano: ecologia e espiritualidade (1991), Mangabeira Unger reúne textos que escreveu ao longo dos anos 1978-1990 e que tratam de uma reflexão que repensa o político, indo aos fundamentos civilizacionais e espirituais da crise que vivemos.
“Esta crise é a expressão de um sociedade fragmentada, de uma civilização que dissociou corpo e espírito, luz e mistério, ser humano e Cosmos. Na busca sempre crescente de estabelecer um controle e dominação sobre a Natureza, sobre os outros homens e sobre os próprios ritmos da vida, perdemos uma dimensão essencial da experiência humana. Resgatar essa experiência se dá na medida de nossa possibilidade de re-encantar o mundo, o que na verdade significa re-encantar o nosso olhar. Para isso somos chamados a uma mudança de consciência, um repensar de quem somos e de qual o nosso lugar no Todo.”
O texto que segue apresenta uma boa síntese do que nos trouxe à essa crise e quais os caminhos desse despertar, que partem do pensamento originário culminando na ecologia profunda. É possível baixar o pdf completo do livro no final do texto.
Ecologia e Espiritualidade (o Reencantamento do Mundo)
A crise que hoje atravessamos é uma crise de visão de mundo, de civilização. É, portanto, uma crise de sentido, uma crise de caráter espiritual. Entendemos “visão de mundo” como trama de representações, conceitos e valores por cuja mediação os homens tecem sua inserção na vida. E é exatamente essa tessitura, ou esse paradigma – para usar uma palavra que está em voga – que nos dias de hoje, em todos os países e em cada lugar, está como que esgarçada.
Em situações como esta somos chamados a reexaminar, a repensar certas questões que sempre foram o fundamento de uma civilização em construção. Indagações centrais que o homem se faz, mas que em momentos de crise aparecem com mais vigor, com mais intensidade, necessidade de urgência.
O que significa ser um humano? O que entendemos por real e realidade? O trabalho de pensar estas indagações, comumente visto como algo que pertence ao “pensador profissional”: o físico, o filósofo, o cientista político, se torna, em situações-limite como a que hoje atravessamos, uma questão que concerne a todos, e à qual cada ser humano está chamado a responder. Não para que encontremos uma resposta pronta e acabada, um paradigma pronto a substituir o paradigma em crise, mas para que na busca daquilo que pode se constituir na superação criadora deste momento que vivemos, possamos também alcançar um patamar mais alto de consciência.
Muitos dos pensadores que atualmente estão se interessando pela questão ambiental numa perspectiva filosófica ressaltam que talvez o traço mais marcante da civilização moderna tenha sido a ideia de que o ser humano é tão mais humano quanto mais ele domina a natureza e os outros homens, tão mais homem quanto mais ele consegue estender o seu controle sobre todos os planos de existência. A virulência deste projeto – que esteve presente em outros momentos, em outras sociedades – embora jamais com a intensidade e a violência que assumiu no nosso sistema presente – se relaciona a uma concepção do conhecimento como uma técnica de manipulação e controle.
A afirmação cartesiana de que o homem deve se tornar mestre e senhor da Natureza, assim como a ideia de Bacon segundo a qual a Natureza deve ser forçada a render seus segredos como uma mulher se tornam hegemônicas no desenvolvimento do Ocidente (adquirindo contornos próprios, independentemente do contexto das obras nas quais estão contidas).
Nas sociedades arcaicas, na Grécia antiga e em diferentes momentos do percurso civilizacional do Ocidente, até mesmo na Idade Média, vigora a ideia de que o ser humano está inserido dentro de um Cosmos, dentro de um Todo, dentro de um Universo onde existem níveis de existência superiores a ele.¹ Uma visão na qual o ser humano se vê ante uma transcendência; uma experiência através da qual o homem pensa a sua liberdade em relação a sua capacidade de se adaptar às grandes leis da Natureza. Nesta compreensão, a sabedoria não é uma técnica de manipulação e controle ou um exercício de colecionar informações e sim um modo de ser que reside em viver harmoniosamente, isto é, em consonância com estas leis. Em contrapartida, na Modernidade predomina o entendimento segundo o qual o homem é livre porque ele se dá as suas próprias leis. Segundo esta perspectiva, a liberdade humana se constrói na recusa de qualquer nível de dependência a leis que lhe são externas.
Quando o ser humano experiencia sua humanidade enquanto cosmopolita: habitante do cosmos, parte integrante de um Todo que o transcende e com o qual está em relação, a experiência da unidade fundamental de todas as coisas não se dissocia da experiência do sagrado, pois o Cosmos é uma Epifania, manifestação de um mistério em si irredutível. Por isso, as leis cósmicas são leis divinas, elas mesmas expressão do sagrado, e a sabedoria consiste em viver em consonância com estas leis e com esta experiência do Todo. Heráclito expressa esta compreensão no fragmento 50: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio homologar que tudo é Um”.² É através de sucessivas rupturas ao longo de nossa história que a postura que caracterizou nosso percurso civilizacional leva primeiro à perda da unidade entre a consciência religiosa e a experiência cósmica, e finalmente à recusa de qualquer horizonte de transcendência. A expulsão do sagrado para fora do Cosmos traz como consequência a progressiva divisão entre ciência e sagrado, entre saber e sabedoria. Ora, um mundo dessacralizado é um mundo passível de cálculo e manipulação pelo sujeito humano, visto finalmente na modernidade como centro ontológico do Universo.³
Ao se tornar cada vez mais autocentrado e arrogante, o homem moderno passa a entender sua humanidade na razão direta de sua capacidade de dominar e manipular o mundo e os outros homens. Não que esta manipulação não existisse antes; é que ela não constituía nem o critério de determinação da identidade do homem, nem a medida da sua liberdade. É no entendimento moderno que o homem é tanto mais livre quanto mais ele domina o mundo.
No caso do capitalismo nascente, há uma necessidade de realizar o que Weber chamou de “desencantamento do mundo”. Para que uma floresta possa ser vista unicamente com o olhar daquele que vê nesta floresta matéria-prima para a sua fábrica de celulose, é preciso realmente que esta floresta seja totalmente desprovida de encantos, é preciso que esta floresta seja reduzida aos seus aspectos produtivos. Simultaneamente, para que seres humanos aceitem sua própria redução à categoria de objeto de mercadoria, é necessário sufocar neles determinadas potencialidades espirituais: a experiência do sagrado, a intuição, a capacidade visionária, fazendo predominar uma racionalidade de tipo linear e instrumental.
Assim, em seu livro Where the Wasteland Ends: Politics and Transcendence in Post-Industrial Society,⁴ Theodore Roszak afirma que a repressão das sensibilidades religiosas no sistema capitalista foi tão necessária à construção desse sistema como qualquer outro ato de dominação de classe, tão importante quanto a acumulação de capital ou a imposição da disciplina da fábrica em milhares de trabalhadores.
Segundo alguns pensadores, a crise que estamos atravessando é de ordem ontológica, ou seja: enquanto nós tivermos uma compreensão do Ser como mera objetividade, enquanto nós tivermos uma compreensão da Natureza apenas nesse seu aspecto de produção e de lucro, continuaremos a devastar o planeta numa busca insaciável de poder e controle.⁵
Para que se possa passar a uma outra maneira de proceder, para que se possa ter uma outra postura, é preciso, na verdade, uma transmutação da nossa compreensão do que é o real e daquilo que nós somos; é preciso que nós possamos ver que o Universo não é composto por um conjunto de objetos dos quais nós somos o colecionador. É importante reatarmos com percepções que sempre estiveram presentes em outras épocas da humanidade, nas quais o Universo se revela, e é o que a ciência contemporânea volta a descobrir, como uma tessitura de fios da qual nós fazemos parte, uma grande dança cósmica da qual nós também somos gestos. O grande místico da Idade Média, Mestre Eckhart, diz que nós somos “advérbios de Deus”. Isto, numa linguagem mais conceitual, quer dizer que não somos sujeitos no sentido estático de um ser que está completamente separado daquilo que ele percebe como objeto para ser por ele dominado; nós somos “sendos”, realização contínua. Nesse sentido, a língua inglesa é bem expressiva quando se refere ao ente como um “being”, indicando que existimos no gerúndio, que somos seres em formação e que a realidade também é um permanente vir-a-ser.
É preciso dizer, quando falamos em desencantamento do mundo, que este desencantamento é, na verdade, o desencantamento do nosso olhar. Porque a Natureza permanece com seus encantos e com seu valor, independentemente do que os seres humanos possam pensar ou não pensar a respeito. É o nosso olhar que, se desencantando, se torna mais opaco, mais restrito. Então, reencantar o mundo (expressão que estou usando inspirada no título do livro The Reenchantment of the World, de Morris Berman,⁶ e que por sua vez se inspirou na expressão de Max Weber: O desencantamento do mundo) é, na verdade, reencantar o nosso olhar. O reencantamento do mundo significa redescobrirmos aquilo que nos constitui, reencantar o mundo é poder novamente ter uma vivência da realidade que não se reduza à reificação. É uma das riquezas da nossa língua que a palavra real, que designa a realidade, designe também a majestade, o majestoso. Se pensarmos o real nessa dimensão de majestoso, a palavra realidade nos fala também de um tempo: real-idade, tempo majestoso. Pôr-se à escuta daquilo que a palavra “real” revela nos dá condições para fazermos uma outra experiência do Ser, da Natureza e de nós mesmos, redescobrindo a compreensão do Universo como uma hierarquia de forças e intencionalidades que tem seus próprios reinos, suas realezas que se manifestam também na Natureza aqui no planeta Terra. Falamos em reino mineral, reino vegetal, reino animal: por que não nos abrimos para a experiência que a palavra reino assinala – a experiência da Natureza como realeza, como majestade? À medida que renunciar à tentativa de tiranizar o real, permitindo-se um canal através do qual essa Real-Idade, esse Tempo-Rei possa se manifestar, o ser humano, por meio de sua arte, de seu ritual, de sua ciência, de sua sabedoria, pode se tornar o que ele verdadeiramente é: um canal de expressão dessa Realidade. Ele pode vivenciar este dom que lhe é próprio, o dom da palavra, não para dominar, controlar, devastar, mas para celebrar.
Quero lembrar uma experiência que tive quando estava na Floresta Amazônica numa pequena cidade do interior do Acre chamada Cruzeiro do Sul, ao lado da qual flui um rio que adentra a floresta.
Um dia, fui com amigos fazer um passeio de barco. Começou a chover; algumas pessoas procuraram abrigo dentro do barco e outros continuaram ao ar livre. A chuva, que começou pequena, se transformou rapidamente numa forte chuva tropical. Mesmo querendo, não teria sido mais possível voltar para o interior do barco; o jeito era permanecermos no aberto. Passado aquele primeiro momento de dúvida e de tremor, fui me adaptando à situação, me abrindo àquela realidade. A água vinha céu, nos levando, dando vida àquela floresta em volta, e todos nós. Quando cessou a chuva, o motor foi desligado, e o barco deslizou docemente seguindo a correnteza. Contemplando o rio, percebi o aparecer do arco-íris no céu, se refletindo nas águas límpidas. Nesse momento pude compreender que esta é a vocação da consciência: pela limpidez, pela transparência, refletir o céu, refletir o arco-íris. Ser esta possibilidade translúcida de ampliar o Universo. Nesse sentido, de certa forma o erro de Narciso foi um erro de inversão. Não compreendeu que ele mesmo deveria ser o lago para refletir outros lagos. Esta metáfora do lago é mais rica que a metáfora do espelho, até porque o lago aporta suas algas, seus tesouros. Parece-me que podemos fazer desabrochar em nós esta potencialidade de sermos como a água é à medida que abrirmos mão de nosso desejo de controle e dominação. O exercício deste “abrir mão”, deste desapegar-se, entregar-se, se faz presente em todos os caminhos de sabedoria.
Um passo nesse sentido é a constituição de uma nova ética. Uma ética que nos permita resgatar o senso de cordialidade e de respeito para com a Terra e para com seus habitantes. A palavra “ética” vem do grego ethos, que significou num dado momento, hábito; mais originariamente, segundo algumas interpretações significou morada. Morada não no sentido de casa, construção material, mas morada no sentido da ambiência que é própria ao homem.
Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C.), em um de seus fragmentos, diz que “a morada do homem é o extraordinário”.⁷ Uma das ressonâncias que esta palavra de Heráclito desperta é o assinalar o ser humano, como ser que está sempre aberto – quer ele saiba ou não – à possibilidade de transcendência, à possibilidade do sagrado. As palavras transcendência, sagrado, não se referem necessariamente a uma religião instituída, a uma ortodoxia. Falamos do religioso na sua dimensão originária: religare, re-ligar; a força espiritual que nos dá condições para que possamos, em meio à dúvida e a perplexidade que nos habitam neste nosso tempo temperado pela sombra, construir uma nova ética, uma nova morada, uma nova identidade. Ao fazermos isso, de alguma forma reatamos também com essa experiência da liberdade, que não é a experiência de que somos livres porque dependemos unicamente das leis que nós mesmos elaboramos, ou porque fazemos aquilo que bem entendemos, ou porque somos capazes de tudo controlar e de tudo dominar, mas que somos livres porque conseguimos, pelo exercício da nossa liberdade, viver em harmonia com as forças cósmicas, com as forças da Natureza. Uma liberdade onde a palavra obediência vem do latim ob-audire; audire: escutar, ob: um prefixo que significa “estar disposto em direção a”. A palavra obediência nos fala portanto desta possibilidade de estar à escuta do mundo, à escuta dos sinais da Natureza, de redescobrir essa potencialidade da linguagem que permanentemente o Universo tem a nos dar.
A busca de uma prática que interligue ecologia, política e espiritualidade é para alguns de nós resultado da experiência que fizemos enquanto parte de uma geração que se engajou com muita intensidade no projeto de transformação revolucionária do sistema vigente: a geração de 68. Essa experiência teve um nível de seriedade, de inteireza, de generosidade que valorizo muito, e a utopia que nos norteou é a minha utopia até hoje. Mas minha reflexão se dá exatamente a partir daquilo que nós não conseguimos fazer – porque o que embasou esta utopia em tantos lugares do mundo era a aspiração a uma sociedade na qual o ser humano pudesse realmente usufruir da plenitude de suas potencialidades. O que nos impediu disso foi exatamente o fato de nós não termos conseguido superar – aliás, nem nos pusemos a questão – as características essenciais daquilo que alguns pensadores, como os da Escola de Frankfurt, chamaram “a razão instrumental”; ou seja, aquela postura que coloca o ser humano como um instrumento, como um meio para produzir determinado fim, pondo também a Natureza nesta mesma categoria.
O que acontecia na prática política? Houve uma cisão entre meios e fins, no sentido de que qualquer meio era válido para alcançar aquele fim; “o fim justificava o meio”. Com isso certas práticas eram consideradas um mal necessário para se construir uma sociedade de outro tipo. A experiência histórica nos mostrou que o meio já é o fim: ou construímos um meio que já é uma prefiguração da transformação da sociedade, ou usamos os meios que são próprios a esta sociedade e reproduzimos sua dinâmica. Para vencer uma determinada posição manipula-se uma assembléia, um sindicato, um movimento de massa; para conseguir uma vitória que pode ser estrondosa, aparecer nos jornais, arrisca-se a uma ação que leva à repressão de determinado segmento da população; para conseguir um fim que é justo pratica-se uma redução do outro ser humano – até que o movimento adquire características muito parecidas com aquilo contra qual se está lutando…
Uma das grandes riquezas de toda a reflexão havida no pós-70 foi exatamente suscitar essas questões. O movimento ecológico é um movimento que emerge deste questionamento, um movimento que emerge das experiências revolucionárias, menos no que elas tiveram de vitorioso, do que elas não conseguiram realizar.
Parece-me que o movimento ecológico, o que o pensamento ecológico tem de mais rico é esta possibilidade de juntar a dimensão da polis, ou seja, aquele espaço que é próprio à comunidade dos homens, o espaço da convivência humana, com a dimensão dos cosmos, a dimensão da nossa relação com o Universo. De criar um elo entre o interesse pela transformação no plano social e uma espiritualidade tanto do homem como da Natureza, sem polarizar essas dimensões como excludentes. De certa forma, a geração 68 foi uma geração cindida. Enquanto uns foram buscar experiências transcendentes distanciando-se de qualquer interesse pela sociedade, outros se engajaram numa militância que recusava qualquer experiência do sagrado. Uma das características do momento de hoje é que essas dimensões do social e do espiritual estão se aproximando, se juntando; às vezes uma mesma pessoa está integrando ambas as dimensões dentro de si. Existe uma corrente crescente, dentro do movimento ecológico, em diferentes lugares do planeta, que se chama, às vezes, ecologia profunda, às vezes ecologia radical, ou ecologia espiritual. Segundo seus expoentes, o ambientalismo superficial corresponde a uma atitude que se propõe a realizar reformas na política ambiental vigente, impedindo excessos, diminuindo o ritmo da destruição da Natureza, sem, no entanto, ir aos fundamentos civilizacionais e espirituais destas práticas. A ecologia profunda traz a necessidade de se fazer uma análise destes fundamentos, questionando a visão de mundo utilitarista e antropocêntrica que informa a atual relação homem/Natureza. A partir daí surgiram uma quantidade de textos, de publicações, de reflexões, tendências, grupos, com posições bastante diversas, mas todos buscando esta nova ética, esta nova visão da ecologia. Existem correntes deste tipo de pensamento trabalhando, às vezes, a partir do referencial de uma grande tradição espiritual: o cristianismo, o budismo, a tradição dos chamados “Native American” – os índios da América do Norte -, outras vezes, a partir de um quadro referencial mais pessoal.
Quero concluir fazendo um breve mapeamento de alguns posicionamentos que surgiram no pensamento ecológico no que diz respeito à ética, assim como à questão do lugar do ser humano na Natureza. Na gama de perspectivas existentes nesse debate, a mais extremista tende a situar o ser humano quase como um “dead-end”, uma espécie que após tantas ações destrutivas teria chegado a um impasse evolutivo; visto isso, o melhor a fazer seria se retirar e deixar a Natureza em paz. A perspectiva mais moderada continua a afirmar que o ser humano é o ponto mais alto da evolução da Natureza na Terra e o “guardião” do planeta, a quem é dado o lugar de “gerenciar” as outras criaturas – o que corresponde por exemplo, à posição oficial da Igreja Católica.
Entre estas posições, há uma riqueza de reflexões a respeito do lugar do homem na Natureza e à elaboração de uma ética correspondente. A ética biocêntrica, por exemplo, se fundamenta essencialmente na ideia de que a Natureza possui valor intrínseco, independente da sua utilidade para fins humanos. Nós humanos não somos superiores aos outros seres, mas “simples cidadãos” da comunidade de seres vivos. Como todo vivente tem direito à vida, só temos o direito de destruir algum ser da Natureza para satisfazer necessidades vitais.⁸
Existem também reflexões que procuram trabalhar certos traços da própria tradição judeu-cristã, quanto à relação ser humano-Natureza. Um exemplo disso é a reflexão a respeito daquela frase do Gênesis, afirmando que ao homem cabe o domínio da Natureza. Esta afirmação, que esta na base de nosso percurso civilizacional, pode ser resgatada ao desvelar um outro sentido: o homem que é mestre da Natureza não somos eu e você, tal como somos hoje, mas o ser humano na plena realização de suas potencialidades; o homem microcosmos no sentido de que realiza a harmonização de todas as forças cósmicas que nele atuam, a ponto de poder ser aquele que reflete o arco-íris, que reflete o céu, para retornar à imagem que usei anteriormente. Esse ser humano, que constitui um ponto de chegada, um patamar bem mais alto de consciência, teve efetivamente uma natureza a dominar: os impulsos destrutivos e autodestrutivos de sua própria natureza humana. Este domínio se dá no entanto não pela repressão, mas no trabalho de redirecionar esses impulsos, na alquimia de transmuta-los.
Quem realiza esta possibilidade é quem tem o domínio de si. É a pessoa que nas tradições espirituais é chamada mestra de si mesma. O que sempre foi, aliás, o critério para se definir o sábio.
Nancy Mangabeira Unger, O encantamento do humano, ecologia e espiritualidade. São Paulo: Edições Loyola, 1991. ∇
1 – A referência ao Ocidente não significa que esta ideia não existe em outras culturas. Ao contrário: o que se pretende ressaltar é que ela também já foi central até mesmo na visão do mundo ocidental.
2 – Heráclito, Fragmentos, tradução por E. Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,1980.
3 -Esta ideia está expressa no conjunto da obra de M. Heidegger.
4 -Theodore Roszak, Where the Westeland Ends: Politics and Transcendence in Post-Industrial Society, Nova Iorque, Doubleday,1972.
5 – Ver nota 3. Ver também Michael Zimmerman, “Towards a Heideggerean Ethos for Radical Enviromentalistm”. In: Enviromental Ethics, vol 5, Summer 1983.
6 – Morris Berman, The Reenchantement of the world, Ithaca, Cornell University Press, 1981.
7 – Ver nota 2.
8 – Bill Devall and George Sessions, Deep Ecology: Living as if Nature Mattered, Salt Lake City, Peregrine Smith Books, 1985.