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A necessidade urgente de descolonizar a pesquisa social latino-americana: Entrevista com Silvia Rivera Cusicanqui

agosto, 2019

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Entrevista publicada originalmente em Cuestiones de Sociología, nº 14, 2016

Maristella: Muitos autores têm insistido que um dos traços fundamentais da teoria social latino-americana é a dependência intelectual ou epistêmica, no que diz respeito aos conceitos e aos quadros teóricos elaborados nos países centrais. Alguns deram um estatuto teórico à dita dependência através do conceito de “colonialidade do saber” (Quijano, Lander). Qual é a sua visão sobre essa problemática? O que então significa pensar as ciências sociais a partir da América Latina no século XXI, tendo em vista a modernidade avançada e o sistema atual de dominação? Há uma perspectiva latino-americana para pensar os problemas atuais no âmbito da teoria social?

Silvia: Essa formulação não é nada nova. Se por “estatuto teórico” você se refere à consolidação dessa ideia nos centros acadêmicos hegemônicos, eu poderia te dizer que se trata de uma academia com muita pouca memória. Em vários territórios da América Latina, e também nos Andes bolivianos, a crítica à colonização mental das elites tem uma longa trajetória. No nosso caso, junto com Rossana Barragán, buscamos fazer uma síntese dita genealógica no livro publicado em La Paz sobre os estudos subalternos da Índia. Na apresentação do texto, entrelaçamos nossa leitura do grupo Subaltern Studies com uma reflexão sobre as contribuições da historiografia social argentina, a etnohistória e a antropologia peruanas, juntamente com as contribuições fundamentais vindas do México e da África (1997) na produção social e historiográfica boliviana nos anos 1980 e 1990.

Recentemente, tracei essa genealogia até o início do período colonial na obra do escritor chinchaysuyu Waman Puma (Rivera, 2015). Eu acho que sua obra, através da montagem texto-imagem, é um ensaio visual e teórico. Em outras palavras, Waman Puma compõe uma sintaxe para apresentar sua teoria da dominação colonial, ao mesmo tempo como descrição etnográfica densa e como crítica teórica irrefutável à ilegitimidade desse sistema e suas falácias.

Gostaria de apresentar brevemente um exemplo que pertence ao horizonte liberal do colonialismo (1870-1920). Há um livro de Franz Tamayou (1879-1956) que aborda autocriticamente a mestiçagem boliviana enquanto síndrome psicológica da encruzilhada, chamada por ele de bovarysmo, em referência ao romance de Flaubert, Madame Bovary. Essa noção me servirá de metáfora para entender o bloqueio que nos impede de lembrarmos a nossa própria herança intelectual. É paradoxal e lamentável que tenhamos de legitimar nossas próprias ideias recorrendo a autores que colocaram na moda as questões do colonialismo, desconhecendo ou apagando os trabalhos teóricos anteriores, que mesmo que não tenham usado as mesmas palavras, interpretaram e interpelaram a experiência do colonialismo intelectual com profundidade e acerto. Em “La Creación de la Pedagogía Nacional”, o autor chamava de bovarystas os intelectuais de gabinete que traziam programas educativos franceses para implementar no país uma pedagogia elitista e imitativa, moderna só na aparência. Do lugar de poeta respeitado (ainda que obscuro e mal compreendido), seu rigor argumentativo e seu gesto polêmico provocaram uma interpelação radical das práticas e dos estilos de ser dessa intelligentsia mestiça que o rodeava, admirava ou desprezava.

Ao contrário do que ocorre hoje, quando tudo é escrito-falado e os meios hegemônicos de falantes letrados criam capitanias políticas (o parlamento, o judiciário), ou espetáculos midiáticos para nos enganar; na época de Franz Tamayo o central era uma cultura oral-gestual que se traduzia em códigos corporais implícitos mas inteligíveis em escala social: códigos de comunicação que também estruturavam hierarquias e dissimulavam desprezos. Tamayo não discute o que escreviam seus contemporâneos, que ele considerava ser um reles monte de citações de autores europeus, nem sequer bem feito. Mas ele não repudiava a herança europeia – que se mostra na forma grega da sua poesia – apenas exigia um gesto mais autônomo e inteligente frente a ela, tal como seria feito por Veena Das um século depois. Tamayo também se inspirou em Nietzsche e no vitalismo alemão de sua época, além de uma vasta biblioteca filosófica e literária francesa, o que não prejudica de forma alguma sua aproximação junto às realidades multiétnicas (como diríamos hoje) que o rodeava.

O que Tamayo repudiava não eram as ideias e princípios básicos da episteme europeia, mas o modo com que são adotados em países como o nosso: da boca pra fora, de modo submisso e reverencial. Sua análise, ao contrário, se baseia na tentativa de descobrir a alma do mestiço que realmente existe em seu espaço/tempo, como um ser esquizofrênico, dividido e bipolar, incapaz de criar uma nação própria ou habitar um território próprio. Este diagnóstico de Tamayo é vital e coloca as bases para fazer do duplo-vínculo mestiço uma potência criativa, em vez de aprofundar o binarismo e com ele a disjunção colonial que nos impede de sermos nós mesmos.

A genealogia do colonialismo que busco traçar na cultura letrada boliviana é, por essa razão, conectada às urgências do presente. Quão relevante é Tamayo, se lido no aqui e agora. Ele define o bovarysmo como um estado de “insatisfação novelesca” que se movimenta em “um contexto de repressão e convencionalismo social”. Não é isso que está acontecendo com os escândalos recentemente protagonizados por Evo Morales, que a imprensa internacional se encarrega de manipular a sua maneira? Não é uma descarga de culpas e dores familiares, particulares e até mesmo inconscientes, que a sociedade boliviana faz da vida de Evo Morales ser motivo de polêmica moral e sexual? Faz isso mas não percebe que o primeiro a ser julgado e apontado deveria ser o indígena que carregamos dentro de nós.

Fausto Reinaga, nos anos 1960-1990, elaborou uma crítica à “intelligentsia da mestiçagem boliviana”, uma aguda radiografia do colonialismo intelectual na Bolívia, que o levou a ser estigmatizado como um personagem intratável e ultraradical. Não é uma informação menor que foi Reinaga – e não Sarte ou Balandier – quem introduziu no debate boliviano nos anos 1970 a obra de Frantz Fanon e outros autores da descolonização africana. Com honrosas exceções, os agora fora-de-moda “decoloniais” ou “pós-coloniais” não procuram examinar com tanta profundidade o ethos do intelectual colonizado como fez Reinaga. Isso aparece nos caminhos que percorremos para compreender os processos de libertação indígena e as lutas descolonizadoras em nosso continente.

Maristella: O que significa então pensar as ciências sociais a partir da América Latina no século XXI, tendo em vista a modernidade avançada e o sistema atual de dominação?

Silvia: Penso que é necessário fazer outra ciência social, que não separe o cérebro do corpo, a ética da política, o fazer do pensar. A ciência social que realmente existe não difere muito da que era criticada por Tamayo. Já nas obras de Reinaga existem muitos conceitos/metáforas em cuja bricolagem transparece outro tipo de teoria sobre o colonialismo intelectual na América Latina, e sobre o colonialismo de forma geral. Por outro lado, a modernidade experimentada por Tamayo não difere muito de hoje em dia: segue sendo uma estrutura de saque e colonização mental. Com um agravante: nas primeiras décadas do século XX, havia em La Paz muito mais gente urbana, mestiça e da elite que falava perfeitamente o aymara; enquanto hoje a dimensão simbólica do indígena se tornou pigmentocrática e baseada em simulacros, o que demonstra que estamos perdendo a batalha linguística. No que diz respeito à colonização mental, as ciências sociais – junto com várias outras – deveriam focar na criação de ferramentas conceituais, técnicas e materiais que permitissem resistir ao saque, tanto de recursos materiais como de pessoas (mãos, cérebros) ou, pelo menos, nos ajudar a sobreviver a isso.

Além do saque, esta modernidade forçada é baseada na cultura da lei. A ciência social hegemônica precisa lidar com uma ruptura muito profunda entre a norma e sua prática, entre o código e a violação do código. Fixar-se rigidamente em um dos polos dessa dicotomia é uma atitude de suicídio coletivo, transferida para todo o pensamento público. Diante desse estado de confusão, o que as ciências sociais deveriam estar fazendo é revolucionar a episteme. Criar um campo de ação entre a herança europeia e a própria herança, onde podemos, com autonomia, recriar um pensamento e um gesto capaz de superar o duplo-vínculo ou a esquizofrenia colonial de que falava Tamayo. E isso deve ser feito de qualquer maneira, não só nas ciências sociais, mas também nas matemáticas, na agronomia, na engenharia e na multiplicidade de disciplinas que são necessárias no aqui e agora da humanidade e do planeta, não apenas na ciência.

E, principalmente, a nova ciência social deveria abandonar a camisa de força da sociedade, deixar de se limitar às coisas humanas, às relações e aos conflitos sociais, e se transformar em mais uma das ciências da vida. É por isso que estou muito insatisfeita com as ciências sociais que realmente existem, considero que são capitanias. Esclareço que posso me dar ao luxo de dizer isso porque já estou livre da universidade, me jubilei e com muitos companheirxs e amigxs criamos um espaço em que promovemos um “curso livre” no verão e no inverno, dentre diversas outras atividades. A geração mais jovem de intelectuais e acadêmicxs que trabalham na universidade tem que lidar com as coisas mais erradas, como as revistas indexadas – que tive a sorte de não conhecer – ou com o excesso de carga administrativa imposta nas universidades com o neoliberalismo. Mas entrar e sair da academia não equivale a entrar e sair da modernidade. O que eu entendo como o principal desafio é ser autenticamente modernos e se conectar ao mesmo tempo com o mais antigo, para que, a partir dessa contradição ou anacronismo, a gente possa armar – dentro e fora da universidade – uma esfera pública inclusiva, democrática e intercultural (colocando em termos convencionais). Para mim, é fundamental reconhecer que não basta a teoria, não basta a ciência social, não bastam a universidade e academia para entender o mundo que vivemos hoje. Também acho que, em toda Abya Yala [Terra viva, na língua do povo Kuna], esse processo de “entrar e sair da academia” está permitindo uma renovação do pensamento e uma melhor articulação com as práticas comunitárias, populares e coletivas. Na fronteira entre o mundo universitário e seu exterior, proliferam-se iniciativas como as que acabo de descrever, que observei em vários países do nosso continente.

Maristella: Há uma perspectiva latino-americana para pensar as problemáticas atuais no âmbito da teoria social?

Silvia: Não. Pelo menos não dentro desse contexto, tal qual definido na sua primeira pergunta. Uma teoria/prática social descolonizadora é um processo em andamento, mas sua verbalização ainda está pra ser construída; ainda está balbuciante e dispersa. Sequer está claro o formato que esse discurso vai assumir, em um contexto de proliferação e democratização das comunicações por satélite. Penso que o que se faz nas redes, ou no teatro, ou na arte latino-americana é muito mais sensível do que a academia universitária ou paraestatal, em termos conceituais, diante das realidades complexas e multifacetadas do espaço social em que vivemos.

Também têm surgido novos espaços de produção de teoria/prática social: espaços marginais e fronteiriços, mas que ao mesmo tempo proliferam. Iniciativas de rua, lutas contra a impunidade, plataforma em torno dos direitos sexuais e uma diversidade de iniciativas práticas em defesa do meio ambiente constituem cenários ideais para a “pesquisa ação” ou a “pesquisa militante”, além de serem úteis para as próprias comunidades e órgãos de base. Também estou me referindo a intelectuais – como Silvia Federici, Rita Segato, Márgara Millán, Verónica Gago, Suely Rolnik e você mesma – que dialogam em vários níveis de abstração com xs intelectuais de base em seus respectivos espaços ou países. Todas essas redes são o que há de mais próximo a uma “ecologia de saberes” que eu já pude observar”. Mas com um adendo: são também uma “ecologia de sabores”, e me refiro às redes de soberania alimentar, plataformas ambientais, etc., que estão pensando nos problemas não apenas por meio da pesquisa e da publicação de seus trabalhos, mas também de uma profusa participação em feiras, espaços de comida consciente, cooperativas de alimentos, dentre outras atividades.

Não tenho acesso suficiente a tudo que ocorre nas universidades e nos centros de pesquisa dos mais variados países do nosso continente para levar em conta os avanços teóricos que esses novos fenômenos suscitaram, mas posso dizer que nos últimos anos tenho lido, com mais interesse que antes, os debates latino-americanos nas ciências humanas e sociais. Comemoro que muitos deles têm saído pela tangente ou abertamente descartado o antropocentrismo – e seu rebento, o eurocentrismo – dominantes.

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