24.03.2016
Ações afirmativas são políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso a educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural.1
No ano de 2010, ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro através de seu vestibular. E em 2016, ano em que escrevo este relato, encerro minha trajetória acadêmica como graduando com a aquisição do título de Bacharel em Artes Visuais com ênfase em Escultura pela Escola de Belas Artes dessa mesma universidade. Tendo por origem uma família de parcos recursos financeiros residente no bairro da Vila da Penha – geográfica e culturalmente distante dos eixos de desenvolvimento da arte contemporânea no Rio de Janeiro, situados com solidez nas regiões centrais e ao sul da cidade -, pude concluir meus estudos universitários até este momento através da concessão de uma bolsa auxílio vinda do Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que apoia a permanência de estudantes de baixa renda matriculados em cursos de graduação em instituições federais de ensino superior.
Os anos de graduação, contudo, não me deram somente o título. Conhecer pessoas de estratos sociais distintos a partir da universidade me possibilitou acessar a cidade de outra maneira; não mais com uma sensação de não pertencimento, estrangeirismo ou déficit de conhecimento em relação aos aparelhos culturais citadinos, mas como um novo integrante daquele corpo social, sem aparentes empecilhos à minha circulação para além da lembrança constante de que nem sempre estive ali e que muitos outros, que compartilham condições em vida semelhantes às minhas, não estavam naqueles lugares. Isso, somado ao fato de, durante a graduação, ter desenvolvido uma prática artística que teve sua visibilidade plena nos circuitos universitários e nas citadas regiões centrais e da zona sul da cidade, me fez perceber-me sem uma importante interlocução: não havia conversado sobre isto com outras pessoas que, assim como eu, acessaram a universidade através de ações afirmativas e desenvolviam práticas artísticas em pleno processo do desenvolvimento de sua visibilidade pública.
Por isso pensei em fazer um livro, na busca por concretizar esse diálogo que a mim e a tantos outros – como suponho – é capital. Quis elencar, através de um pessoal recorte, artistas de certo reconhecimento público que guardassem contato evidente com tais programas de apoio às pessoas em situação de vulnerabilidade social nas universidades. E, a partir desta amostragem, travar contato com estas pessoas, o que resultaria na escrita da publicação. Dividida em dois momentos referentes a cada uma delas – um relato diarístico, em primeira pessoa, onde apontaria impressões sobre nosso contato; e a transcrição da conversa que teríamos sobre relações entre práticas artísticas e ações afirmativas -, organizaria tais interlocuções em capítulos, que carregariam como nome os nomes destes que pretendia encontrar, nomeando nossa coexistência ali representada. Desta forma, desejava esta publicação menos como uma espécie de estudo de campo que como um diário de campo; mais obra – o que me implicaria como autor em presença – que imparcial análise conjuntural da implicação das ações afirmativas no campo artístico – o que intentaria à invisibilidade autoral –.
Um trabalho desses, realizado em relação com pessoas que acessaram a universidade através de ações afirmativas e que desenrolam práticas artísticas em pleno processo do desenvolvimento de sua visibilidade pública, me pareceu capital – tanto àquelas e àqueles que são também beneficiários destas políticas públicas quanto aos envolvidos em práticas e pesquisas em artes – por possibilitar um necessário debate acerca do diferencial que tais políticas proporcionam no cenário artístico, fundado no embate entre os currículos das formações universitárias em artes e as aspirações deste corpo discente oriundo de estratos sociais outrora não presentes nestes cursos.
A profunda estratificação social brasileira implicou na ausência de um quórum representativo dos sujeitos vulneráveis socioeconômica e etnicamente em sua narrativa histórica da arte, tendo em vista a produção historiográfica componente da bibliografia básica de grande parte dos cursos universitários que se voltam às artes plásticas, quer tratem do ensino acadêmico artístico no século XIX, com poucas produções acerca da mínima presença afro-brasileira dentre seus estudantes2, ou do decurso sobre a arte moderna e pós-moderna no país, protagonizadas por pessoas situadas em experiências de classe e de etnia pouco distintas – brancas e em condições econômicas medianas, no mínimo –. Ainda que, como creio, o ensino artístico acadêmico implicasse novas condições de acesso ao cenário das práticas artísticas desde o contexto pós-escravocrata na Academia Imperial de Belas Artes até a completa reformulação que a criação de diversos cursos universitários em arte propiciou, não houve um significativo acesso das mulheres e homens minorias nestes espaços.
Com isso, considerava que o debate que com este livro propunha suscitar era inicial pela recente implementação destas políticas públicas, por não haver possibilidade de se realizar um recuo histórico suficientemente amplo que dê conta de práticas artísticas feitas por sujeitos que experienciaram o ensino superior através das ações afirmativas, já que contamos com pouco mais de treze anos desde a declaração do interesse em implementar ações afirmativas pelo Governo Federal Brasileiro na Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em Durban em 2001, e a primeira realização neste sentido, efetivada pelo Estado do Rio de Janeiro em suas universidades – UERJ, UENF e UEZO – em 2003.
Considerando separadamente as instituições federais de ensino superior – observação de meu interesse aqui, tendo em vista que eu fui beneficiário do PNAES durante minha graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro –, foi somente a partir de 2008, “quando o governo federal condicionou a destinação de recursos do Reuni para instituições federais à sua adesão a programas de ação afirmativa”3, e em 2013, quando começou a ser implementada a Lei Federal 12.771/2012, que torna obrigatória reservas de vagas em todas as instituições federais de ensino superior, que se tornou expressiva a existência de suas ações afirmativas. Logo, datam aproximadamente três anos desde a determinação efetiva para implementação de tais políticas públicas de acesso e permanência nas universidades federais e a presente data de redação deste texto.
Por isso, pensei fértil o momento para discutir a relação entre as práticas artísticas e o acesso pelas ações afirmativas ao ensino superior. Já que recente e, em alguma medida, inaugural, um fomento a tal debate – via esta produção artística em livro – me sugeriu a possibilidade de alinhar com maior firmeza estas duas que há pouco coexistem como vetores de força: as potenciais contribuições destes que adentraram a graduação universitária nos últimos anos e certa agenda artística, em reinvenção constante, já que formada em muito por um capital cultural alheio aos seus novos sujeitos.
É evidente, contudo, a proximidade do que pretendi empreender neste livro ao campo da crítica e curadoria em artes. Sua apresentação de certos artistas, criteriosamente escolhidos, poderia ser executada sem grandes prejuízos à intenção geral dessa publicação por um curador ou um crítico. Reivindicar este trabalho como realização dentro de minha produção como artista, portanto, pretendia afirmar implicitamente que os critérios que norteariam sua escrita não visavam responder ao campo da crítica e da curadoria na arte contemporânea, mas aos critérios próprios à minha prática artística, em sua expressividade e subjetivação; ora opaca e insondável, ora aparente como o que é enunciável por um manifesto.
Por esse aspecto, creio que não conseguiria suprir certas lacunas que surgiram no delineio da hipótese que o livro levantaria. Julio Cesar Correia de Oliveira, que muito me orientou na vontade de realizar a publicação, chegou a comentar que certo caráter político não estava ainda claro na minha proposta, como se as ações afirmativas fossem apresentadas “como algo dado, sem conquista política, sem o acúmulo histórico” , bem como que não havia diferenciado as modalidades dessas políticas, o que cremos passível de implicar novos problemas em sua análise no campo artístico. Também repensei minha opção de entrevistar somente alguns artistas ao ser indagado por Max William Morais e Aline Besouro sobre o porquê não abrir uma convocatória. Robnei Bonifácio, de arguição apurada, me atentou sobre um interesse mercadológico e institucional às produções de artistas que já não estiveram presentes na representação cultural no plano internacional e que hoje assumem um papel de interesse geopolítico, talvez por vieses da exotização ou para criação de novo conjunto de expressões nos insumos de arte. Mesmo eu acreditava que o problema epistemológico das ações afirmativas à arte – tal qual o problema epistemológico que os corpos que derivam entre a pele negra e branca impõem ao entendimento da identidade étnica e luta racial no Brasil, segundo Eduardo de Oliveira e Oliveira – não seria abordado de forma merecida no que pretendi fazer, como Eduardo o fez em seu texto. Fora que o empreendimento deste projeto me parecia se voltar à uma condição que sequer existia ainda, uma lacuna historiográfica que eu julgava que poderia porvir, dado que, atualmente, poucos são aqueles que tem relação com estas políticas em visibilidade na cena artística (quem sabe porque ainda são poucos os que foram artistas graduandos e pós-graduandos bolsistas, cotistas etc.). Aquém disso, a hipotética asserção desta publicação teria em seu texto escrito a busca de uma interlocução artística; um tatear dos que são pares em seu ofício pelas condições políticas que os abarcam. Visava então o delineio inicial desta comunidade de artistas emergentes, ainda que seus componentes fossem desconhecidos para si mesmos ou estivessem minimamente distanciados geograficamente, o que justificaria – ou, ao menos, relativizaria – minhas lacunas no projeto desta publicação.
Mas optei por não escrever este livro. Ainda que orientado por minha prática artística, aceitei que a magnitude do assunto é ampla, não me diz respeito somente, que não conseguiria esgotar ela. Evidente que minha intenção não foi em princípio esgotar tal assunto, mas talvez houvesse em mim uma certa vontade de introduzi-lo, o que solucionaria muito bem com um texto, como o que escrevo aqui, ao invés de um livro enquanto uma obra artística. No final das contas, creio que realizar um trabalho de arte não foi minha intenção principal ao pensar nesta publicação que não mais será. Acho que o que desejei foi aludir ao que creio ser tarefa coletiva com relação aos novos produtores no campo da arte contemporânea. Visto isso, quis ser sincero. E escrever este texto, que fala o porquê não, o porquê hesitei (Mas me sinto bem. Desistir faz parte da minha prática, afinal. E desistir, me parece, constitui um gesto considerável a nós. Pois só em pensar nas coisas que não foram feitas entendo a importância dos bolsões de vazios onde habitamos no agora; espaços de iminência que atos como a deserção nos fazem perceber).
Quis que o título desse livro fosse Práticas artísticas, ações afirmativas. Neste, a vírgula que separa as duas categorias é símbolo da relação que acredito operar entre elas: uma interrupção breve na pronúncia entre uma e outra, mas contínua, se tratando de uma linha melodiosa que se mantém à espera do que a segue ao lermos um e outro termo no tal título. Diferente de um ponto, representação de um momento de respiração maior e de encerramento entre as palavras que ele separa, a vírgula é uma ligação entre dois significados diversos a princípio, mas que guardam uma relação de continuidade no texto. E por crer nessa espécie de ponte entre esses polos – práticas artísticas e ações afirmativas –, os separo com uma vírgula apenas. Esta é a hipótese que levanto por fim: o acesso ao ensino universitário artístico através das ações afirmativas está em continuidade com potenciais mudanças no campo epistemológico das artes, na medida em que se dá em um eminente encontro das disparidades sociais, culturais e étnicas entre o cenário artístico fomentado no ensino superior e o capital cultural dos novos sujeitos contemplados com o acesso à graduação universitária. Isso que digo não pode ser comprovado para além dessa minha intuição anunciada, mas teria na feitura de um livro como Práticas artísticas, ações afirmativas e, agora, tem neste texto de opinião que o carrega em seu corpo, o anúncio de tal investigação em potencial.
1 – Feres Junior, João; Daflon, Verônica. Políticas da Igualdade Racial no Ensino Superior. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, v. 5, p. 33, 2014.
2 – Inocencio, Nelson. O lado negro da História: afro-brasileiros na arte acadêmica do século XIX. Anais do II Colóquio de Teoria, Crítica e História da Arte. V. 1, n. 1. 2015. p. 304-314.
3 – Feres Junior, João; Daflon, Verônica. Políticas da Igualdade Racial no Ensino Superior. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, v. 5, 2014. p. 36.