Com um pedaço de faca
é possível talhar
uma casa é possível talhar
uma porta um poço um poema
eu você dois espelhos
refletindo
o espaço vazio da sala
o gato dormindo
sobre a estante
eu você sorrindo
sempre
e o mofo nos consumindo
os dentes
naquela tarde úmida
em que você me dizia
o teto irá desabar
e nos levará com ele
mas era o tempo nos observando a vida
e nossos amigos adoravam aquela infiltração.
Com um pedaço de faca é possível talhar
uma banheira uma janela um porta-retrato
eu você sorrindo em alguma parte do bairro
onde encontramos aquele gato
ensopado
de chuva
e como ele adorava aquela infiltração
eu você o sofá a mesa de centro
o jarro de flores
a cozinha
os talheres
um pedaço de faca
é possível talhar
um banco na frente de casa
um tapete um olho mágico
você regando as flores
escolhendo as cores
do jarro
e onde comprar
neste bairro
chuvoso
eu você o gato
sob a colcha de retalhos
observando aquela infiltração.
Com um pedaço de faca é possível talhar
um vaso um ralo o centro metálico
da pia
toda a fiação da casa
girando em torno do gato
girando em torno do ralo
girando em torno daquela infiltração.
Com um pedaço de faca
é um possível talhar uma linha
na superfície do tempo
eu você o gato e a gravidade
atuando
na cor desbotada das árvores
na cor desbotada das
vidas que correm agora
pela casa
sob a velha
infiltração.
Com um pedaço de faca
é possível talhar
uma casa é possível talhar
um furo no teto
eu você um espelho no porta-retrato
enquanto
a infiltração
nos penetra o corpo
e nos
desmancha
o rosto
nos
levando
gradualmente
para
algum
lugar
da
casa
onde
nunca
foi
preciso
um
pedaço
de faca.