Vi hoje o julgamento da inocente, Mestre, e sua condenação à morte. Vislumbrei a beleza mais delicada e tênue e assisti à violência humana que não suporta o belo, que destrói a inocência aos risos. Tens resposta para isso, tu que sempre me voltas esse olhar complacente de quem compreende a infantilidade de meus julgamentos como uma doce memória da sua própria infância? Aonde foste, Mestre, onde estavas quando a náusea tomou conta de meu estômago, revirado pela injustiça do mundo? Presenciei a hecatombe, a vaporização da esperança, o caminhar solene rumo à aniquilação, desejando com força tua companhia, teu abraço, teu calor. Mas há eras tu me disseste que eu já estava pronto, que nada havia mais para me ensinar, que tudo já se havia transmitido em nossos silêncios… Por que sinto tanto tua falta, por que meu coração se enche desta dor maldita, a mesma raiva que sinto desses humanos tolos que me cercam, surdos às verdades que dançam por todo o lado? Odeio-te nessa tua postura arrogante de quem sabe de tudo, de quem sabe a hora certa dos encontros.
Pois saiba, Mestre: já sou eu mesmo também um mestre. Já descobri o segredo mais bem guardado, descobri o que há por trás do silêncio dos iniciados. Não há nada. Os mistérios do universo, a alta magia procurada por milênios, tudo se esconde sob o manto de sua obviedade! A suave flor esmagada pela carroça do brutamontes, ela é o próprio mistério do mundo em sua beleza simples e esplendorosa. Está morta. Tu me dizes que suas irmãs se proliferarão e o mundo será herdado pelo bom. Não caibo nesse futuro, Mestre, pois sou mau. Sou cruel, meu amor, desejo a morte desses humanos estúpidos. Não enxergo a bondade universal, por mais que o afirme em meu discurso. Subitamente vejo em mim a arrogância que tanto te atribuo. Falo de lindas verdades para meus estapafúrdios ouvintes, que acreditam em minhas palavras paradisíacas apenas porque tenho o dom da oratória, apenas porque sei empostar minha voz e tenho facilidade em ser fascinante no palco. Mas não compreendem verdadeiramente, porque o paraíso sobre o qual falo é visceralmente dependente do inferno e de seus vícios, de seus crimes, de suas desonras e de suas humilhações.
Não tenho pena! Eles não sabem apenas porque não querem! Foi sua escolha, Mestre, eles decidiram deliberadamente permanecer na lama da ignorância, escolheram livremente acreditar nas minhas palavras em vez de viver! E tu, velho imbecil, aonde te meteste que não estás comigo, que não me ouves o lamento e não me respondes com a mesma piedade mentirosa que dirijo aos meus discípulos? Não preciso de ti, tu me dizes, sou tão forte e tão sábio quanto ti, tu repetes, não há hierarquias no topo, somos todos irmãos e iguais quando chegamos ao jardim do autoconhecimento. Ora, pensas que sou idiota como os outros? Eu sei que não há fim na jornada! Eu sei que o caminho jamais cessa de recomeçar! E eu sei que tua humildade é máscara e esconde arrogância ainda mais tremenda que a minha.
Foges de mim porque te relembro teus próprios demônios, Mestre? Ao olhar teu discípulo preferido, este prodígio que sempre me julgaste ser, te lembras dos teus próprios anos de estudos, te lembras das tuas raízes podres, te lembras dos alicerces desses teus ares angelicais que manipulam com tanta facilidade a plateia? Não a mim, Mestre. Não a mim. Ora, temes que a criatura se rebele contra o criador? Temes que o jovem dê um golpe e arranque o velho de sua autoridade e usurpe seu trono? Por que temes? Como podes temer isso, meu amor? Dedico-te todo o amor do mundo, não sabes? A ti devo minha vida, a ti devo minha trajetória e a ti devo todo o meu conhecimento. Amo-te tão profundamente, admiro tuas roupas e teus amigos, tuas obras e o respeito de teus discípulos… Será inveja? Pois quero-os para mim, os teus admiradores; quero-as para mim, as tuas mágicas e os teus poderes! Senão pelo bem de um presente, de uma dádiva concedida pelo amor; senão deste modo, por assalto! Perseguir-te-ei até o fim das terras, encurralar-te-ei nas muralhas do tártaro e conquistarei meu trono com violência!
Veja… Agora falo como um humano, sinto as dores e as invejas dos humanos… Como posso me rebaixar ao nível dessas criaturas patéticas, eu que sou um anjo dos mais altos círculos! Eu, que sou bom… Que desejo mais que tudo ser bom e curar os enfermos e ensinar os ignorantes e lutar pelos justos e alimentar os famintos… Mestre, amo-te de uma forma que me desespera porque não sei se o amor é por ti ou por mim mesmo, não sei se te admiro ou se te invejo, se quero aprender contigo ou roubar-te, se quero criar contigo ou assassinar-te para brilhar sozinho. E tu, em tua infinita sabedoria, tu foges de meu caos, tu me deixas destruir a mim mesmo sozinho…
Perdoa-me, meu amor… Perdoa-me, por Deus… Como eu quero ser bom, do fundo de minha alma… Não apenas com outro gesto mecânico, feito por dever… Diz-me a Palavra: nada tem sentido, nada importa se não há amor. Mas o mistério do amor é inesgotável, Mestre, as flores são inumeráveis na superfície do planeta… Eis a dúvida central: tenho amor em mim, ou é tudo satânico simulacro? Dói-me a angústia no peito, o medo de ser terrível, a certeza de ser terrível! O mistério não cessa, ele se transforma com o correr das línguas e das civilizações; as montanhas se erguem e os oceanos secam, mas o mistério profundo jamais se esgota. Agradeço a ti, Mestre, por me ensinar tudo o que sei: o esclarecimento se paga com a dor e a doeça se cura com o veneno diluído da morte. Isso os tolos não querem nem precisam compreender.
Engolirei meu orgulho e meu desprezo pela estupidez e farei como me ensinaste: irei ao mundo e nutrirei, acolherei, abraçarei. Pois nenhuma dor é pequena, meu querido amor, todas as dores são as maiores dores possíveis, e sinto compaixão pela pequenez que desprezo. Enquanto isso, espero nosso casamento com a paciência dos que já viveram cem mil vezes, pois o dia da paz chegará e nesse dia cessará a ignorância e a guerra. Nesse dia, meu amor, criaremos juntos os hinos mais belos do universo. Cantaremos às flores, às dríades, ao brilho das gemas e ao suave reflexo dos córregos. Não haverá mais pudor, tu poderás finalmente despir essa surrada fantasia de mestre que te serve como escudo. E viveremos em glória e em reverência aos deuses da arte. Até breve.