Vivemos num mundo saturado de imagens. Tudo aparece como imagem e nada parece poder existir sem uma imagem. São tantas as imagens no mundo que não mais se consegue conceber algo assim como uma imagem do mundo. Num mundo saturado de imagens, o mundo fica sem imagem.
Imago mundi, imagem do mundo, era um motivo recorrente nas antigas tradições esotéricas e alquímicas. Significa o ponto em que o todo e as partes, o múltiplo e o único, o complexo e o simples o infinito e o finito se encontram, mostrando-se como o mesmo. Imago mundi nomeia, no entanto, algo mais do que a busca de um mundo de harmonia e identidades. Imagem nomeia como um mundo acontece e, por isso, nessas tradições, a imagem era ela mesma considerada um micro-mundo. As coincidências que ocorrem numas imagens são tais que os opostos nunca se apagam. Imagem pode ser definida como uma súbita incidência de diferenças.
Imagem indica a estranha coincidência do real e do irreal, de ser e não-ser. A imagem de um pássaro, estampada num livro, ou um pássaro voando num vídeo são quase como o pássaro que ouvimos cantar e vemos voar. A imagem de uma coisa é e não é essa coisa. É como se fosse a coisa. A imagem é com as coisas sem as coisas. É com-sem as coisas e, desse modo, um enigmático consentimento das coisas. A realidade irreal da imagem coincide com a real irrealidade daquilo a que se refere a imagem. Chamamos normalmente de irreal e inexistente ou o que existe mas não está presente num “aqui e agora”, “em carne e osso” – como o passado e o futuro – ou o que nunca pode se tornar presente por não existir de modo algum – como uma miragem ou um sonho. Consideramos como existente o que pode ser apreendido pelos sentidos, tanto pela sensibilidade quanto pela sensitividade. Chamamos existente o que pode ser enquadrado num tempo e num espaço de aquis e agoras, de normais e normalizadoras ao conferir ao que existe uma outra forma de inexistência e à inexistência uma outra modalidade de existência. A imagem desestabiliza e desrealiza sentidos normais e normalizadores da realidade e da existência.
A imagem pode ser imagem de tudo menos de si mesma. Mesmo na sua dimensão mais ilusionista e manipulativa, mesmo nas suas formas mais realistas de trompe l’oeil, a imagem não é capaz de esconder que é imagem. Almas arcaicas e almas de infância profunda não temem as imagens porque não seriam capazes de distinguir entre imagem e realidade, fantasmas de vidas reais, combras de corpos. O que elas temem é propriamente a imagem como imagem – a estranha realidade de ser a coincidência do mesmo e do outro, a intromissão do outro num si-mesmo. A realidade da imagem é uma face de Jano, essa que mostra seu ser imagem mostrando outra coisa do que ela mesma. Isso explica o fascínio e o inferno das imagens. Imagens da memória, imagens da percepção, imagens de sonhos – imagens podem tano destruir como fazer nascer, tanto cegar como iluminar. Por isso, imagens são realidades políticas. Mas o que dizer sobre esse outro de que as imagens são imagens: o pássaro, a face, o quarto azul – as coisas? É imagem sempre imagem de coisas? Conhecemos sem dúvida imagens de não-coisas: os quadrados negros de Malevich, os não-objetos de Hélio, os vazios de Kapoor, imagens da indeterminação, da invisibilidade e da impalpabilidade. Uma tela branca não é menos imagem que a pintura de um rosto dilacerado. Não é a diferença entre objetos e não-objetos que decide o que é uma imagem, mas o modo em que os extremos de ser coincidem. Imagens podem imitar, criar ou recriar coisas e não-coisas. Mias decisivo que afirmar ou negar correspondências entre imagem e coisa, seja real ou irreal, é perceber que uma imagem traz coisas ou não-coisas para um cenário de transparência. Imagem é encenação e como tal deslocamento e destemporalização, distopia e discronia. A imagem traz o lugar para um outro lugar, o tempo para um outro tempo, fundando lugares sem lugares e tempos sem-tempo. Não é que a imagem fosse capaz de tornar o espaço tempo e o tempo espaço. O que ela faz é desfazer a crença na essência linear e sucessiva do tempo e na essência do espaço como justaposição de pontos e superfícies. A imagem revela a temporalidade e a espacialidade do súbito, pois é sempre subitamente que opostos coincidem. Em sueco ou em alemão, imagem é Bild, palavra que em sua origem diz o mesmo que Blitz, ou seja, raio ou raiar do abrupto, a maneira vívida em que opostos coincidem: noite e luz, firmamento e estrela, o todo e o cada um, ser e não-ser, coisa e não-coisa, abertura e limite, vida e morte, de uma vez só, raio de ser.
Na imagem, os extremos de ser (movimentos para além de ser) e ser ao extremo (ser tão intensivamente que ser se rompe) coincidem abruptamente. Porque imagem é o toque súbito de diferenças, a realidade da imagem é sempre o mais difícil de se ver numa visão de imagens. Isso explica como, num mundo saturado de imagens, o que menos se consegue perceber é o imagear da imagem, a sua força poética. Na sobre-exposição às imagens que caracteriza nosso mundo contemporâneo, a imagem perde a sua força poética. Refletindo sobre tudo, imagem perde seu modo mais próprio de reflexão. Imagem saturada de imagens, imagem disseminada em imagens: na atual entropia das imagens, imagem começa a imitar a lógica instrumental dos enunciados, essa que separa metáforas dos sentidos. Enquanto súbita coincidência dos extremos de ser, em sua força poética, imagem é porém metáfora. Imagem leva o distante para a proximidade, a proximidade para a distância, torna ausências presentes e presenças ausentes. Seu movimento primeiro não é conduzir o existente para a inexistência e a mentira, mas descobrir outros modos de relação, tornando visível a maneira como as coisas vêm ou não à visão, assinalando para um sentido de realidade ainda mais real do que a mera objetividade. Neve quente. Nessa imagem-metáfora, a neve não deixa de ser fria e nem o frio se torna quente. A coincidência desses opostos encena como as folhas submersas na neve aquecem a terra, como a claridade desse branco aquece a frieza de nossos corações. Na imagem, opostos subitamente coincidem, diferenças se aproximam uma vez que imagem não é construção, mas evento. Aqui é decisivo distinguir estampa de imagem, ídolo de ícone, invenção e reinvenção de coisas e não-coisas. A imagem de um evento é o evento de uma imagem. Aqui não há nenhum modelo prévio, nem paradigma, nem antes nem depois, mas súbita coincidência. Aqui, só a imagem pode explicar a si mesma. Imagens assim são no entanto raras e simples – não saturadas, não disseminadas, pássaro voando de lugar nenhum para lugar algum.
Na súbita coincidência de uma imagem, tem lugar um outro tipo de reflexão. É a reflexão que desconecta o pensamento do conhecimento, conectando pensamento como sabedoria da experiência. Pensamentos que surgem de uma tal sabedoria pensam e falam por imagens e não em oposição a imagens. Aqui, imagem é o pensamento e um evento de mundo e pensamento, a imagem não do mundo mas de um devir de mundo. Rompendo e interrompendo a lógica discursiva das representações, a imagem rara e simples risca uma cesura nas certezas e evidências. Abre um olhar questionador e dispõe os pensamentos para pensar em sintonia com a coincidência dos extremos opostos de ser e não-ser. Aqui, de dentro de sua força poética, a imagem talvez possa revelar sua dimensão política de coincidência de diferenças, o risco de ser a forma de um vir à forma. No seu extremo poético, a imagem se revela como imagem do homem.