Gosto da praia em dias nublados, quase chuvosos. A maresia se junta e vira névoa. Vingativa, esconde os arranha-céus da beira mar, as ilhas e as pedras postais das câmeras turísticas. Os ambulantes caminham tristes, mal gritam seus criativos slogans e jingles. Os pombos caminham pra lá e pra cá procurando restos de biscoito Globo. Os turistas tiram selfies: uma pessoa e um sorriso em 1° plano, em 2° mar e cinza. Sem sol, o Rio não sai na foto. Luz branca que invade e queima as imagens do imaginário da cidade maravilhosa. Por isso gosto da praia nesses dias nublados: porque ela não serve pra fotos, nem altinhas, nem água de coco, nem caipirinha e nem encontros – ela só serve pra solidão. No mar tenho o espelho, com quem converso. Vejo meus cabelos voando e sinto o vento salgando meu rosto. A textura da areia gruda na minha batata da perna que fica pra fora da canga. Pego o celular e tiro uma foto das gaivotas voltando pra casa no fim de tarde. É impossível fotografar uma gaivota, por isso fotografei o formato que elas faziam pontilhadas no céu: um coração. Mandei a foto por mensagem, na esperança de que ligassem aqueles pontos.
Gosto das gaivotas. Sempre que vejo uma voando, penso que aquele sim é o verdadeiro formato do meu corpo. Quis tirar foto da névoa engolindo os prédios da orla, com a força e a beleza de um algodão doce. Mas a única foto bonita que vinha à minha cabeça era dela: sem camisa e sem jeito, ao lado da janela que enquadra a chuva enquanto mexe no armário, fazendo um dia nublado bonito. Uma brisa trouxe do calçadão um cheiro de tapioca que invadiu minha vida: ela no fogão fazendo tapioca de café da manhã. Um dia tirei uma foto pra guardar aquele jeito de parar diante do fogão, segurando a frigideira com a mão e a cintura com a outra. Nessas horas gostava de abraçá-la por trás, e ficar na ponta dos pés pra beijar sua nuca. Gosto de tapioca com manteiga. Quando menos esperava, encontrei um fóssil de outro corpo dentro de mim. Uma ruína encantada de frente pro mar que sou. Tentei afogar nas minhas águas salgadas e enterrar na minha areia essas imagens que não paravam de ir e voltar, como o mar. Mas ela não sumiu. Eu não a demoli. Está lá de pé, com plantas floridas nascidas nas rugas do concreto.
***
As grandes dores são mudas. Vi escrito no braço de um senhor sentado ao lado na cadeira do ônibus. Parecia antiga a tatuagem, estilo de cadeia, em que a pele enrugada absorveu e sugou toda a força da tinta azul, já quase verde. Fiquei pensando no tamanho de uma dor que te faz gritar até cansar, imprimindo na pele o berro por não ter mais voz. Eu poderia fazer uma tatuagem, e não seria de flor. Escreveria no braço: as grandes paixões são mudas. O silêncio diz mais que as palavras. Seis horas da manhã, o alarme já está na sétima ou oitava soneca. Não podemos, mas queremos muito ficar na cama ao invés de levantar. Em alguns segundos, pensamos em tudo que queríamos e não poderíamos fazer: os carinhos de bom dia, a transa que acorda o corpo, o banho junto, o café da manhã, o mel no queijo,preparada s pra tudo que a vida nos reserva na esquina seguinte.
– Eu te amo – poderia falar toda vez que abro o olho de manhã e vejo aquele rosto iluminado pela luz que invade o quarto, às vezes só uma metade fica iluminada enquanto a outra é sombra. Sempre bonita, a respiração alta e sofrida até o momento em que abre os olhos. Eles são mais claros e menores de manhã. É nessa luz que consigo enxergar os pequenos detalhes: parecem ter sido feitos com pincel fino, as minúsculas pintas que parecem surgir no pescoço e no peito e os pelos perdidos no queixo. Mas não falo, grito em silêncio, e acho que ela escuta. Eu falo muito, ela fala menos. Achei que não conseguiria estar com alguém que não fala, mas hoje prefiro mergulhar do que nadar na superfície.
Estamos sempre dizendo. Nessa manhã, ela abriu os olhos e olhou o céu como sempre. Castanhos com cor de tronco de árvore, os pelos das sobrancelhas despenteados, escutei os estalos do corpo com as primeiras alongadas do dia. Me olha, não sorri e não fala, só olha. Seus olhos são mudos como a minha paixão. Com os rostos grudados no colchão nos olhamos na distância mínima que a visão permite sem distorcer a imagem. Puxo o travesseiro por cima de nossas cabeças, e já não estamos mais nesse mundo. Agora somos só nós dois, numa dimensão particular entre o colchão e o travesseiro. Nossas pernas se tocam e nossos olhos também. Estamos longe, nas profundezas de uma e da outra.
Atenção no que o silêncio diz. A soneca dispara mais uma vez no celular, sentimos a volta antecipada ao mundo que não queríamos estar. Talvez se apaixonar seja isso também: olhar nos olhos de alguém e ter certeza de que aquela pessoa pode te levar pra outros mundos que não esse. Quando aterrissamos, eu disse ainda debaixo do travesseiro: se tivesse que te pedir em namoro, pediria aqui e agora. Não sei se essas coisas ainda acontecem ou funcionam. Ela me deu aquele abraço que nem o melhor ator do mundo conseguiria dar com tanta sinceridade. Nos agarramos e desgarramos no alarme da soneca seguinte. Pra encarar o mundo naquele dia tivemos que parar de nos olhar. Toda grande paixão muda, reserva uma grande dor muda. E ambas passam como o êxtase do canto de uma cigarra. Mas aquele senhor fez questão de não esquecer do dia em que escutou pela primeira vez uma cigarra cantar, e teve vontade de que ela nunca mais parasse. Depois que a cigarra para de cantar, só se escuta silêncio.