“Todos são iguais perante a lei e todos são iguais perante o mapa. As viaturas do mapa percorrem a cidade. As viaturas da polícia percorrem a cidade”
Nunca é noite no mapa (2016), é um curta-metragem realizado pelo cineasta pernambucano Ernesto de Carvalho. De forma surpreendente, o filme nos apresenta uma importante visão sobre a digitalização do mundo contemporâneo e as transformações dos espaços na era do capitalismo digital. Feito a partir de imagens do Google Maps, o filme parte de uma questão, a tentativa de definir uma coisa abstrata: o que é o mapa? Há um movimento de frames por uma cidade estática. Só o que se mexe é o mapa: as pessoas, carros e objetos estão todos parados. Na montagem e narração, há um contraste entre a suposta imparcialidade do mapa e sua profunda interrelação com sistemas de poder e produção de uma realidade específica. A viatura do mapa exposta é denúncia de que alguém faz o mapa, que existem interesses e ideologias orientando a representação dos espaços contemporâneos. Com trilha sonora de Ravi Shankar, o curta-metragem é um clássico contemporâneo do cinema brasileiro, e condensa questões cruciais da sociedade do progresso, que desmemoriza os lugares em prol do lucro indefinido.
Nunca é noite no mapa
Ernesto de Carvalho
2016, 6 min
Sinopse
Que diferença faz para o mapa, se ele te contem? Um encontro frontal com o mapa, nos leva a um passeio pelo circuitos da simbiose entre o mapa e as transformações dos espaços na era do capitalismo digital.
Prêmio de melhor curta-metragem no VII CachoeiraDoc
Prêmio de melhor montagem na 8a Semana dos Realizadores
Seleção Oficial Mostra Foco na 20a Mostra de Cinema de Tiradentes
Texto completo da narração
A cidade onde moro, vista de cima,
neste mapa aéreo, interpolado, solícito.
Eu estou em uma dessas ruas,
em uma dessas casas.
Eu estou dentro do mapa.
O mapa não se importa se eu estou dentro dele ou não;
mas eu estou, dentro do mapa.
O mapa é indiferente, livre.
O mapa não precisa de pernas, nem de asas.
O mapa não anda, nem voa, nem corre,
não sente desconforto, não tem opinião.
Nunca chove dentro do mapa e não há vento no mapa.
No mapa não há contramão nem velocidade.
Pro mapa não tem engarrafamento, nem direção.
O mapa é um olho desincumbido de um corpo,
e eu estou dentro do mapa, em algum lugar.
Mesmo que eu tente me esconder,
o mapa me encontra, e me contém.
Eu estou dentro do mapa.
Aí estou eu, dentro do mapa.
Eu estou dentro do mapa.
Esse sou eu, dentro do mapa.
Não tive tempo de colocar os sapatos e saí de casa descalço
pra fotografar o mapa.
E esse é o mapa.
O mapa é abstrato, o mapa é livre, imaterial.
O mapa não precisa de pernas, nem de asas…
O mapa não voa nem corre, não sente desconforto, e não tem opinião.
E eu estou dentro do mapa, para sempre.
Surpreso ao ver de perto o mapa
tomar a forma de uma viatura.
Flagrado no momento em que fui acometido de um súbito desejo
de tentar impedir que ela entrasse no beco lá de casa.
Tomado de curiosidade, e medo.
Como alguém que uma vez identificado, e flagrado num crime,
decide continuar, ao invés de oferecer-se à lei.
Foi aí que percebi a presença de um guarda.
Ele poderia achar que eu estava incomodando o mapa,
e poderia quem sabe interceder pelo mapa.
Imaginei que eles teriam alguma espécie de acordo
O guarda era como a própria viatura do mapa:
profissional, organizado, diligente.
O mapa sem dúvida percorreria milhares de ruas
sem se preocupar demais de não ter conseguido entrar direito no beco lá de casa.
Todos são iguais perante a lei
e todos são iguais perante o mapa.
As viaturas do mapa percorrem a cidade.
As viaturas da polícia percorrem a cidade.
Todos são iguais perante a lei,
Todos são iguais perante o mapa.
Sempre que a manifestação chega a esta altura da avenida,
já é de noite…
Em 2011 O mapa não podia entrar naquela rua de terra lá no fundo.
Em 2012 O mapa ainda não podia entrar lá.
Em 2013 também não.
Dois anos depois…
A viatura do mapa agora pode percorrer este espaço.
Ao lado dessas outras viaturas…
As viaturas da nova cidade…
viaturas que abrem o caminho para a viatura do mapa, as viaturas da polícia e todas as outras viaturas.
Há 200 metros de onde as máquinas passaram, aluga-se casas e quarto.
Aluga-se casas e quarto.
Aluga-se casas e quarto.
Aluga-se casas e quarto.
As viaturas da nova cidade passaram.
Há 2 mil quilômetros dali, passaram as viaturas da polícia, imparciais,
que garantiram a passagem das viaturas da nova cidade, olímpica,
e em seguida passou a viatura do mapa, indiferente.
Vai sair quem quiser, quem não quiser fica.
Vai sair quem quiser, quem não quiser fica.
Cidade bem policiada, cidade bem mapeada, canteiro de obras, bilheteria.
O mapa é imparcial, não tem opinião,
É exatamente como aquele agente de segurança privada:
não é representante do estado, nem da comunidade,
a sua única preocupação é o acordo que tem com a propriedade.
Pro mapa não há governo, pro mapa não há guerra civil,
não há golpe de estado, não há revolução.
Nunca é noite no mapa.