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Especulações em torno do 3 e do 8 a partir de “Quarteto para o fim do Tempo”, de Olivier Messiaen (uma primeira escuta)

maio, 2024

pensando com Carole Gubernikoff

I

A ressonância do plural no singular é uma experiência do próprio som que, junto de si, traz diversos outros consigo. As palavras também carregam essa experiência, e muitos sentidos (às vezes antagônicos) convivem sob o mesmo signo.  No “Quarteto para o fim do Tempo”, escutamos nas reverberações de “fim do tempo” o “fim dos tempos” – que diz respeito tanto à te(le)ologia cristã, ao pensamento musical de Messiaen e ao contexto em que a obra é escrita.  Feita durante a prisão num campo de concentração na França, “Quarteto para o fim do Tempo” surgiu em meio às limitações e horrores da Segunda Guerra. Um oficial nazista, amante de música, ficou feliz ao saber que havia um compositor entre os prisioneiros.  Logo, providenciou papel e lápis: as possibilidades para a escrita. Encontrou, também feitos detentos, outros três músicos: um clarinetista, um violinista e um violoncelista – que, junto com Messiaen ao piano, formaram o quarteto que se apresentou para os encarcerados no dia 15 de janeiro de 1941. 

II 

O 1º movimento da obra, chamado “Liturgia de Cristal”, apresenta “o silêncio harmonioso do céu” na hora mais escura da madrugada, justamente a que antecede a aurora, a que antecipa o nascimento da luz. O silêncio, traduzido pelos pássaros que cantam, é como um anúncio de um dia que ainda não começou: ali ainda estão contidas todas as possibilidades de um vir a ser do dia. Nada nos diz, naquele momento, que surgirá o anjo do apocalipse, com uma mão no céu, um pé na terra e outro no mar, para anunciar o fim do tempo – esse, o 2º movimento, um “Vocalise para o anjo do fim do tempo”. O anúncio é seguido, no 3º movimento (chamado “Abismo dos Pássaros”) pela relação entre tempo (o abismo) e seu contrário (os pássaros). O primeiro, representado pela longa e extensa lassidão, o segundo, nosso desejo da luz e do sagrado.  

No apocalipse de São João, os quatro primeiros anjos tocam as trombetas e destroem a terra. Quando o quarto toca sua trombeta, contudo, há uma interrupção: uma águia lamenta pelos habitantes da terra, que ainda vão escutar as últimas 3 trombetas. Os últimos 3 “Ais”. Essa interrupção, um movimento que separa as partes, que nos prepara para uma nova etapa, é uma espécie de interlúdio. A separação entre o 4 – o quadrado, um número da estrutura, equilibrado – e o 3 – o triângulo, a ponte com o sagrado – se estrutura nesse 4º movimento (Intermezzo). 

O 5º movimento, “Louvor à eternidade de Jesus”, portanto, é também uma espécie de início – um começo do começo. É o verbo que tudo cria, que não encontra nenhuma força contrária a si mesmo. É isso que também indica Messiaen quando lembra das palavras do evangelho de São João. “No início era o verbo, e o verbo era Deus”. O verbo infinitivo (som dos sons), de onde provém todos os tempos mas que não tem tempo nenhum. A sublimação espiritual da eternidade de Jesus é interrompida pelo anúncio das trombetas do Apocalipse. As 7 trombetas que, quando tocadas, destroem o mundo são apresentadas no 6º movimento, a parte mais característica da obra do ponto de vista rítmico. 

 No 7º movimento, o número mais perfeito, um “turbilhão de arco-íris”. O arco-íris, um “símbolo de paz, sabedoria, e de toda vibração luminosa e sonora” – como diz Messiaen – se apresenta junto ao anjo do fim do tempo. É o êxtase após o arrebatamento, o momento da redenção que nos prepara para a vida eterna e que nos conduz a uma volta no círculo, a mais uma integração do caminho. O 8º movimento é o retorno da montanha após o êxtase, uma celebração à humanidade no mistério do espírito de Cristo. Uma volta à carne como espírito, à humanidade de jesus traduzida em um louvor à sua imortalidade. É o jesus-homem, o verbo feito carne.

III

Quarteto para o fim do tempo é dividido em 8 movimentos. O 8, em sua figura, é como  dois 3 espelhados, em um movimento que se completa e se estrutura em si mesmo. Isto é, o 8 é a circulação do número 3, ambos separados por um ponto nodal. Ambos divididos em duas partes iguais por um centro. O 3 aberto, o 8, fechado. Tanto o 8 quanto o 3 são números de início, de começo. O 3, o primeiro número (o filho), movimento dialético por excelência – dinâmico e tenso. O 8 depois do mais perfeito, o 7 –  a volta à fundamental, ou ao início da semana – e um número de equilíbrio e estabilidade.

Dessa maneira, numa primeira escuta, a relação entre 3 e o 8 se dá entre o movimento e êxtase. Digamos: a dialética e a eternidade. O tempo se movimentando e se gerando, no milagre da criação com o 3 – e a estabilidade circular e eterna do 8. Essa reverberação, portanto, de fim do tempo e fim dos tempos, aparece imbricada na discussão entre o eterno (8) e o tempo (3). Contudo, como 8 é esse 3 espelhado, em sua própria estrutura já se apresenta esse embate. É que a figura do 8 diz também de um infinito – e o infinito ainda está no tempo, ainda diz respeito à dimensão da duração: um finito que nunca cessa de aparecer e mudar.

A radicalidade da experiência do 3 e do 8 aparece como um fundamento estrutural-metafísico (poderíamos dizer assim?) dos ritmos não-retrogradáveis em Messiaen. Palíndromático como um 8, estruturado como 3. Os ritmos não-retrogradáveis são palíndromos específicos, divididos em duas partes iguais por um centro.  A estrutura básica, de duas figuras idênticas espelhadas, sustentadas por um eixo central – muito comum na iconografia católica. Um ritmo que, se lido da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, “a ordem dos valores permanece a mesma”. Assim, cria-se na música uma impressão de um tempo extático, como que suspenso. Na profissão da fé, Messiaen tenta nos apresentar a experiência do fim do tempo pela arte do tempo por excelência – numa tarefa hercúlea e impossível, que nos atenta a escuta para o milagre do sagrado. 

 

 

 

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