1. NÃO HÁ “REVOLUÇÕES FACEBOOK”, MAS UMA NOVA CIÊNCIA DE GOVERNO, A CIBERNÉTICA
Poucos conhecem a genealogia e, no entanto, vale a pena conhecê-la: o Twitter provém de um programa denominado TXTMob, inventado por ativistas norte-americanos para, através do celular, se organizarem durante as manifestações contra a convenção nacional do Partido Republicano de 2004. Esse aplicativo foi então utilizado por umas cinco mil pessoas, que partilhavam em tempo real informações sobre as ações em curso e os movimentos da polícia. O Twitter, lançado dois anos mais tarde, foi utilizado para fins similares, por exemplo, na Moldávia. As manifestações iranianas de 2009, por sua vez, popularizaram a ideia de que ele seria a ferramenta necessária para coordenar os insurgentes, em particular contra as ditaduras. Em 2011, quando as revoltas atingiram uma Inglaterra que pensávamos definitivamente impassível, os jornalistas fabularam, e com lógica, que os tweets haviam facilitado a propagação dos motins a partir de seu epicentro, Tottenham. Acontece que, devido às suas necessidades de comunicação, os insurgentes começaram a utilizar os BlackBerry, celulares seguros projetados para o alto escalão de bancos e de multinacionais, e dos quais os serviços secretos ingleses não tinham sequer as chaves de decodificação. Um grupo de hackers chegou a piratear o site da BlackBerry para dissuadi-la de cooperar com a polícia. Se dessa vez o Twitter permitiu uma auto-organização, foi mais a do grupo de cidadãos-varredores que resolveu limpar e reparar os danos causados pelos confrontos e saques. Essa iniciativa foi coordenada pela Crisis Commons: uma “rede global de voluntários que trabalha em conjunto para construir e utilizar ferramentas tecnológicas que ajudem a responder a desastres e que melhorem a resiliência e a resposta a crises.” Na época, um jornalzinho da esquerda francesa comparou tal iniciativa com a organização da Puerta del Sol durante o movimento dito “dos indignados”. O amálgama entre uma iniciativa que visa a acelerar o regresso à ordem e o fato de milhares de pessoas se organizarem para viver numa praça ocupada, apesar das constantes investidas da polícia, pode parecer absurdo. A não ser que se veja aqui apenas dois gestos espontâneos, conectados e cidadãos. Desde o 15-M, os “indignados” espanhóis, pelo menos uma parte não negligenciável deles, invocaram sua fé na utopia da cidadania conectada. Para eles, as redes sociais virtuais não haviam apenas acelerado a propagação do movimento de 2011, elas haviam, também e sobretudo, lançado as bases de um novo tipo de organização política, para a luta e para a sociedade: uma democracia conectada, participativa, transparente. É sempre deplorável, para “revolucionários”, partilhar uma ideia dessas com Jared Cohen, o conselheiro para antiterrorismo do governo norte-americano que contatou e pressionou o Twitter durante a “revolução iraniana” de 2009 para manter seu funcionamento apesar da censura. Recentemente, Jared Cohen escreveu com seu ex-patrão do Google, Eric Schmidt, um livro político paralisante, A nova era digital. Já nas primeiras páginas pode-se ler esta ótima frase para alimentar a confusão quanto às virtudes políticas das novas tecnologias de comunicação: “A internet é o maior experimento envolvendo anarquia da história.”
“Em Tripoli, Tottenham ou Wall Street, as pessoas protestaram contra a derrocada das políticas atuais e as magras possibilidades oferecidas pelo sistema eleitoral… Elas perderam a fé no governo e nas outras instituições centralizadas do poder… Não há nenhuma justificativa viável para que um sistema democrático limite a participação dos cidadãos ao simples ato de votar. Vivemos num mundo onde pessoas normais contribuem para a Wikipédia; organizam manifestações online no ciberespaço e no mundo físico, como as revoluções egípcia e tunisiana ou o movimento dos indignados na Espanha; e esmiúçam as mensagens diplomáticas reveladas pelo WikiLeaks. As mesmas tecnologias que nos permitem trabalhar à distância juntos criam a esperança de que nós poderemos nos governar melhor.” Não é uma “indignada” que fala, ou, se o é, será necessário especificar que ela acampou durante muito tempo num escritório da Casa Branca: Beth Noveck dirigia a iniciativa Open Government da administração Obama. Esse programa parte da constatação de que a função governamental consiste, daqui para a frente, em promover a relação entre cidadãos e em disponibilizar informações retidas no seio da máquina burocrática. Assim, para a prefeitura de Nova York, “a estrutura hierárquica que se baseia no fato de que o governo sabe o que é bom para você caducou. O novo modelo para este século se apoia na cocriação e na colaboração”.
O conceito de Open Government Data foi, sem surpresa, elaborado não por políticos, mas por programadores – aliás, por fervorosos defensores do desenvolvimento de software open source – que invocaram a ambição dos pais fundadores dos Estados Unidos: que “cada cidadão tome parte no governo”. O governo, aqui, é reduzido a um papel de animador ou de facilitador, ou, em última análise, ao de “plataforma de coordenação da ação cidadã”. O paralelismo com as redes sociais é de todo assumido. “Como é que a cidade pode ser pensada da mesma forma que o ecossistema de API [interfaces de programação] do Facebook ou do Twitter?” e a pergunta que paira no gabinete do prefeito de Nova York. “Isso deve nos permitir produzir uma experiência de governo mais centrado no usuário, visto que o desafio não é só o consumo, mas a coprodução de serviços públicos e de democracia.” Mesmo que esses discursos sejam vistos como fantasias, como frutos de cérebros superaquecidos do Vale do Silício, isso confirma que a prática de governo se identifica cada vez menos com a soberania estatal. Na era das redes, governar significa assegurar a interconexão dos homens, dos objetos e das máquinas, assim como a livre circulação – isto é, transparente e controlável – da informação assim produzida. Algo que já se desenrola, em larga medida, fora dos aparelhos de Estado, ainda que estes tentem conservar o controle por todos os meios. O Facebook por certo é menos o modelo de uma nova forma de governo do que sua realidade já em ação. O fato de que revolucionários o tenham utilizado e ainda o utilizem para se encontrarem em massa na rua prova apenas que é possível utilizar o Facebook, em certos lugares, contra ele próprio, contra sua vocação essencialmente policial.
Quando os programadores se introduzem nos palácios presidenciais e nos gabinetes dos prefeitos das maiores cidades do mundo, como vêm fazendo, é menos para lá se instalarem do que para explicar as novas regras do jogo: a partir de agora, a administração governamental concorre com outros prestadores dos mesmos serviços que, para o azar dela, estão alguns passos a frente. Ao propor o uso de suas clouds para proteger os serviços do Estado das revoluções serviços como a ficha criminal, em breve disponível como aplicativo para smartphone – os autores de A nova era digital afirmam: “No futuro, as pessoas não farão backup apenas de seus dados, mas também de seu governo.” E, caso não tenhamos percebido bem quem é o boss agora, concluem: “Os governos podem entrar em colapso, e guerras podem destruir a infraestrutura física, mas as instituições virtuais vão sobreviver.” O que se esconde, com o Google, sob a aparência de uma interface inocente, de uma ferramenta de busca de rara eficácia, é um projeto explicitamente político. Uma empresa que cartografa o planeta Terra, enviando equipes para cada uma das ruas de cada uma das cidades, não pode ter objetivos estritamente comerciais. Jamais se cartografa aquilo que não se imagina tomar. “Don’t be evil!”: deixe-se levar.
É um pouco perturbador constatar que sob as barracas que cobriam o Zuccotti Park e nos escritórios das empresas de planejamento – isto é, um pouco mais alto nos céus de Nova York -, a resposta ao desastre é pensada nos mesmos termos: conexão, rede, auto-organização. É o sinal de que, ao mesmo tempo em que as novas tecnologias de comunicação foram colocadas em prática para tecer não apenas sua teia sobre a Terra, mas a própria textura do mundo em que vivemos, uma certa forma de pensar e de governar estava em vias de vencer. Ora, as bases dessa nova ciência de governo foram lançadas por esses mesmos engenheiros e cientistas que inventaram os meios técnicos de sua aplicação. A história é a seguinte: nos anos 1940, enquanto terminava seu trabalho no exército norte-americano, o matemático Norbert Wiener pretendeu fundar, ao mesmo tempo, uma nova ciência e uma nova definição do homem, de sua relação com o mundo, de sua relação consigo próprio. Claude Shannon, engenheiro na Bell e no MIT, cujos trabalhos sobre amostragem ou sobre medição da informação serviram para o desenvolvimento das telecomunicações, assumiu parte desse trabalho. Da mesma forma que o surpreendente Gregory Bateson, antropólogo na Harvard, empregado pelos serviços secretos norte-americanos no Sudeste Asiático durante a Segunda Guerra Mundial, amante refinado de LSD e fundador da escola de Palo Alto. Ou ainda o truculento John von Neumann, redator do First Draft of a Report on the EDVAC – considerado como o texto fundador das ciências da computação -, inventor da teoria dos jogos – contribuição determinante para a economia neoliberal -, partidário de um ataque nuclear preventivo contra a União Soviética e que, após determinar o ponto ótimo para largar a bomba sobre o Japão, não se cansou de prestar diversos serviços ao exército norte-americano e à então jovem CIA. Ou seja, exatamente aqueles que contribuíram de forma inegável para o desenvolvimento dos novos meios de comunicação e de processamento de dados após a Segunda Guerra Mundial, e que lançaram, assim, as bases dessa “ciência” que Wiener chamaria de “cibernética”. Um termo que Ampére tinha tido a boa ideia de definir, um século antes, como a “ciência do governo”. Temos, portanto, uma arte de governar cujo gesto fundador é quase esquecido, mas cujos conceitos se disseminaram subterraneamente, irrigando tanto a informática como a biologia, a inteligência artificial, a gestão ou as ciências cognitivas, ao mesmo tempo que se instalavam cabos, um após o outro, por toda a superfície do globo.
Nós não vivemos, após 2008, uma brusca e inesperada “crise econômica”, nós apenas assistimos a lenta falência da economia política enquanto arte de governar. A economia nunca foi nem uma realidade nem uma ciência. Ela nasceu no século XVII imediatamente como arte de governar as populações. Era preciso evitar a pobreza para evitar a revolta, daí a importância da questão dos “cereais”, e produzir riqueza para aumentar o poder do soberano. “A via mais segura para qualquer governo é se apoiar sobre os interesses dos homens”, dizia Hamilton. Uma vez elucidadas as leis “naturais” da economia, governar significava deixar seu mecanismo harmonioso funcionar livremente, mover os homens manobrando seus interesses. Harmonia, previsibilidade de comportamentos, futuro radiante, uma suposta racionalidade dos atores. Tudo isto implicava certa confiança, poder “dar crédito”. Mas são justamente esses fundamentos da velha prática governamental que a gestão através da crise permanente vem pulverizar. Nós não vivemos uma monumental “crise de confiança” mas o fim da confiança, a qual se tornou supérflua para o governo. Onde o controle e a transparência reinam, onde o comportamento dos sujeitos é antecipado em tempo real pelo tratamento algorítmico da massa de informações disponíveis sobre eles, não há mais necessidade de confiar neles nem de que eles tenham confiança: basta que eles sejam suficientemente vigiados. Como dizia Lenin, “a confiança é boa; o controle é melhor”.
A crise de confiança do Ocidente em si próprio, em seu saber, em sua linguagem, em sua razão, em seu liberalismo, em seu sujeito e no mundo, remonta, de fato, ao final do século XIX: ela estoura em todos os domínios com e em torno da Primeira Guerra Mundial. A cibernética se desenvolveu nessa ferida aberta da modernidade; ela se impôs como remédio à crise existencial e, portanto, governamental do Ocidente. Como considerava Wiener, “somos náufragos num planeta condenado. Todavia, mesmo num naufrágio, as regras de decoro e os valores humanos não desaparecem necessariamente, e cumpre-nos tirar o melhor proveito deles. Iremos ao fundo, sim, mas que seja pelo menos de uma maneira que possamos considerar a altura de nossa dignidade”. O governo cibernético é apocalíptico por natureza. Sua finalidade é impedir de forma local o movimento espontaneamente entrópico, caótico do mundo e assegurar “ilhotas de ordem”, de estabilidade, e – quem sabe? a perpétua autorregulação dos sistemas através da circulação desenfreada, transparente e controlável da informação. “A comunicação é o cimento da sociedade, e aqueles cujo trabalho consiste em manter desimpedidas as vias de comunicação são os mesmos de quem sobretudo depende a perpetuação ou a queda de nossa civilização”, acreditava saber Wiener. Como em todo período de transição, a passagem da antiga governamentalidade econômica à cibernética abre uma fase de instabilidade, uma claraboia histórica na qual é a governamentalidade enquanto tal que pode ser colocada em xeque.
2. GUERRA AO SMART!
Nos anos 1980, Terry Winograd, o mentor de Larry Page, um dos fundadores do Google, e Fernando Flores, antigo ministro da Economia de Salvador Allende, escreveram que a concepção da tecnologia de informação é “de ordem ontológica. Ela constitui uma intervenção sobre a base de nossa herança cultural, que cresce a partir dos modos de ser já existentes no mundo, e afeta de maneira profunda nossas maneiras de ser. […] Ela é necessariamente reflexiva e política.” Pode-se dizer o mesmo da cibernética. Oficialmente, ainda somos governados pelo velho paradigma ocidental dualista no qual há o sujeito e o mundo, o indivíduo e a sociedade, os homens e as máquinas, o espírito e o corpo, o vivo e o inerte; são distinções que o senso comum ainda tem como válidas. Na realidade, o capitalismo cibernetizado pratica uma ontologia, e portanto uma antropologia, cujas inovações reserva a seu séquito. O sujeito ocidental racional, consciente de seus interesses, que aspira ao domínio do mundo e que por isso é governável, dá lugar à concepção cibernética de um ser sem interioridade, de um selfless self, de um eu sem eu, emergente, climático, constituído por sua exterioridade, por suas relações. Um ser que, armado com o seu Apple Watch, acaba por se apreender de modo integral a partir de fora, a partir das estatísticas que cada um dos seus comportamentos engendra. Um Quantified Self que gostaria muito de controlar, medir e desesperadamente otimizar cada um de seus gestos, cada um de seus afetos. Para a cibernética mais avançada, já não há o homem e o seu meio ambiente, mas, antes, um ser-sistema, ele próprio inscrito num conjunto de sistemas complexos de informação, centros de processos de auto-organização; um ser que percebemos melhor a partir da via média do budismo indiano do que de Descartes. “Para o homem, estar vivo equivale a ser parte de um amplo sistema mundial de comunicação”, afirmava Wiener em 1948.
Tal como a economia política produziu um homo econômicas gerenciável no âmbito dos Estados industriais, a cibernética produz sua própria humanidade. Uma humanidade transparente, esvaziada pelos próprios fluxos que a atravessam, eletrizada pela informação, ligada ao mundo por uma quantidade sempre crescente de dispositivos. Uma humanidade inseparável de seu ambiente tecnológico, porque por ele constituída e por ele conduzida. Eis agora o objeto do governo, não mais o homem nem seus interesses, mas seu “ambiente social”. Um ambiente cujo modelo é a cidade inteligente. Inteligente porque produz, graças a seus sensores, a informação cujo processamento permite sua autogestão em tempo real. E inteligente porque produz e é produzida por habitantes inteligentes. A economia política reinava sobre os homens deixando-os livres para prosseguir em seus interesses; a cibernética os controla, deixando-os livres para comunicar. “Devemos reinventar os sistemas sociais num paradigma controlado”, resumia recentemente o professor do MIT, Alex Pentland, num artigo de 2011.
A visão mais petrificante e mais realista da metrópole do futuro não está nas brochuras que a IBM distribui aos municípios para lhes vender sistemas de controle dos fluxos de água, de eletricidade ou do tráfego viário. É antes essa que se desenvolveu a priori “contra” a visão orwelliana da cidade: “smart cities” coproduzidas por seus habitantes (ou, pelo menos, pelos mais conectados dentre eles). Outro professor do MIT, numa viagem pela Catalunha, ficou feliz ao ver a sua capital pouco a pouco se tornar uma “fab city”: “Sentado aqui, em pleno centro de Barcelona, vejo que uma nova cidade se inventa, na qual todo o mundo poderá ter acesso às ferramentas para que ela se torne completamente autônoma.” Os cidadãos já não são mais subalternos, mas sim smartpeople; “receptores e geradores de ideias, de serviços e de soluções”, como diz um deles. Nessa visão, a metrópole não se torna smart pela decisão e pela ação de um governo central, ela surge, tal como uma “ordem espontânea”, quando seus habitantes “encontram novos meios de fabricar, ligar e dar sentido a seus próprios dados”. Eis que nasce a metrópole resiliente, aquela que deverá resistir a qualquer desastre.
Por trás da promessa futurista de um mundo de homens e de objetos conectados integralmente quando carros, geladeiras, relógios, aspiradores e vibradores estiverem diretamente ligados entre si e à internet -, há o que já está aqui: o fato de que o mais polivalente dos sensores já está em funcionamento eu-próprio. “Eu” partilho minha geolocalização, meu estado de humor, minhas ideias, o relato do que vi hoje de incrível ou de incrivelmente banal. Eu corri; e imediatamente partilhei meu percurso, meu tempo, minha performance e sua autoavaliação. Posto permanentemente as fotos de minhas férias, de minhas noitadas, de minhas rebeliões, de meus colegas, daquilo que vou comer como daquilo que vou foder. Parece que não estou fazendo nada, mas no entanto produzo dados o tempo todo. Quer trabalhe quer não, minha vida cotidiana, enquanto estoque de informações, continua integralmente valorizável. Eu melhoro o algoritmo de modo contínuo.
“Graças às redes difusas de sensores, nós teremos o ponto de vista onisciente de Deus sobre nós mesmos. Pela primeira vez, podemos cartografar com precisão o comportamento de massa das pessoas no nível da vida cotidiana”, entusiasma-se um daqueles professores do MIT. Os grandes repositórios refrigerados de dados são a despensa do governo atual. Ao vasculhar as bases de dados produzidas e continuadamente atualizadas pela vida cotidiana dos humanos conectados, ele procura as correlações que permitam estabelecer não leis universais, nem mesmo os “porquês”, mas os “quandos” e os “quês”, previsões pontuais e situadas, oráculos. Gerir o imprevisível, governar o ingovernável e não mais tentar aboli-lo, essa é a ambição declarada da cibernética. A gestão do governo cibernético não é apenas, como no tempo da economia política, prever para orientar a ação, mas agir diretamente sobre o virtual, estruturar os possíveis. Há alguns anos, a polícia de Los Angeles implementou um novo programa de computador chamado “PredPol”. Ele calcula, a partir de um monte de estatísticas criminais, as probabilidades que este ou aquele delito seja cometido, bairro a bairro, rua a rua. É o próprio software que, a partir dessas probabilidades atualizadas em tempo real, comanda as patrulhas da polícia na cidade. Um guru cibernético escrevia, no jornal Le Monde, em 1948: “Poderemos sonhar com um tempo em que a máquina de governar virá suprir – para o bem ou para o mal., quem saberá? – a insuficiência patente nos dias de hoje das lideranças e dos aparelhos habituais da política.” Cada época sonha a seguinte, mesmo que o sonho de uma se torne o pesadelo cotidiano da outra.
O objeto da grande colheita de informações pessoais não é um rastreamento individualizado do conjunto da população. A insinuação na intimidade de cada um e de todos serve menos para produzir fichas individuais do que grandes bases estatísticas que ganham sentido pela quantidade. É mais econômico correlacionar as características comuns dos indivíduos numa multidão de “perfis”, com os prováveis devires que daí decorrem. Não interessa o indivíduo presente e inteiro, mas apenas aquilo que permite determinar suas linhas de fuga potenciais. O interessante de vigiar perfis genéricos, “acontecimentos” e Virtualidades é que entidades estatísticas não se revoltam; e que os indivíduos podem sempre alegar que não estão sendo vigiados, pelo menos não como pessoa. Enquanto a governamentalidade cibernética opera a partir de uma lógica de todo nova, seus sujeitos continuam a se pensar de acordo com o paradigma antigo. Cremos que nossos dados “pessoais” nos pertencem, como nosso carro ou nossos sapatos, e que não fazemos mais do que exercer nossa “liberdade individual” ao permitir que o Google, o Facebook, a Apple, a Amazon ou a polícia tenham acesso a eles, sem vermos que isso tem efeitos imediatos sobre aqueles que se recusam a tanto, e que de agora em diante serão tratados como suspeitos, potenciais desviantes. “Certamente,” preveem os autores de A nova era digital, “no futuro, como agora, haverá aqueles que resistirão à adoção e ao uso da tecnologia, aqueles que não vão querer ter perfis virtuais, sistemas de dados on-line ou smartphones. Entretanto, o governo poderá desconfiar de que as pessoas que optam por ficar isoladas por completo da rede tenham algo a esconder e, assim, uma propensão maior a violar as leis. Como medida de contraterrorismo esse governo desenvolverá o tipo de registro de “pessoas ocultas’ que descrevemos antes. Se você não tiver perfil em rede social ou assinatura de celular e em geral for difícil encontrar referências on-line a seu respeito, talvez você seja considerado um candidato à inclusão nesses registros. E provavelmente também ficará sujeito a um conjunto restritivo de novas normas que incluem rigorosa verificação nos aeroportos e até restrições de deslocamento”.
3. MISÉRIA DA CIBERNÉTICA
Os serviços de segurança estão em vias de considerar que um perfil de Facebook tem mais credibilidade do que o indivíduo supostamente por trás dele. Isso é um indicador da porosidade entre aquilo a que ainda chamamos o virtual e o real. A acelerada transformação do mundo real em dados torna cada vez menos pertinente pensar o mundo conectado como separado do mundo físico, o ciberespaço da realidade. “Vejam o Android, o Gmail, o Google Maps, o Google Search. É isso que nós fazemos. Nós fabricamos produtos sem os quais é impossível viver”, afirma-se na cidade de Mountain View. Há alguns anos, a onipresença de objetos conectados na vida cotidiana dos humanos desencadeia, no entanto, alguns reflexos de sobrevivência por parte dos últimos. Alguns donos de bar decidiram banir os Google Glass de seus estabelecimentos – o que os fez, aliás, realmente entrarem na moda. Florescem iniciativas que incitam a desconexão pontual (um dia por semana, um fim de semana, um mês) como forma de medir sua dependência dos objetos tecnológicos e reviver uma “autêntica” experiência do real. É evidente que a tentativa se revela vã. O simpático fim de semana à beira-mar com a família e sem smartphone é vivido, antes de tudo, enquanto experiência de desconexão; isso significa que ela é de imediato projetada no momento da reconexão, e de sua partilha na rede.
Em última análise, no entanto, a relação abstrata do homem ocidental ao se coisificar em todo um conjunto de dispositivos, em todo um universo de reproduções virtuais, reabriu paradoxalmente o caminho em direção à presença. Como nos desligamos de tudo, acabaremos por nos desligar de nosso próprio desligamento. A intoxicação tecnológica nos devolverá, no fim de contas, a capacidade de nos comovermos com a existência nua, sem pixel, de uma madressilva. Terá sido necessário que todos os tipos de telas se interpusessem entre nós e o mundo para nos restituir o incomparável brilho do mundo sensível, o maravilhamento face ao que está aqui. Terá sido necessário que centenas de “amigos” que estão pouco se importando conosco deem um like em nosso Facebook para melhor nos ridicularizarem mais tarde, para reencontrarmos o antigo gosto da amizade.
Por não conseguir produzir computadores capazes de se igualarem ao homem, tentou-se empobrecer a experiência humana a ponto de se confundir a vida com seu modelo digital. Será que é possível imaginar o deserto humano que foi necessário criar para tornar a existência nas redes sociais desejável? Da mesma forma, foi necessário que o viajante cedesse lugar ao turista para ser possível imaginar que este aceitaria pagar para percorrer o mundo via holograma a partir de sua sala de estar. Mas a menor experiência real fará explodir a miséria desse tipo de ilusionismo. É a miséria da cibernética que, por fim, abatem a própria cibernética. Para uma geração super-individualizada cuja sociabilidade primária tinha sido a das redes sociais, a greve estudantil do Quebec, em 2012, foi antes de mais nada a revelação fulminante da potência insurrecional do simples fato de se estar junto e de se colocar em marcha. Foi um encontro nunca antes visto, tão intenso que essas amizades insurgentes até se chocaram contra os cordões policiais. As armadilhas do poder nada podiam contra isso: pelo contrário, até se tornaram uma outra forma de se experimentar em conjunto. “O fim do Eu será a gênese da presença”, anunciava Giorgio Cesarano no seu Manuale di sopravvivenza.
A virtude dos hackers foi o fato de terem partido da materialidade do universo considerado virtual. Como disse um membro dos Telecomix, um grupo de hackers que se destaca ajudando os sírios a contornar o controle estatal das comunicações via internet: se o hacker está avançado em relação a seu tempo, é porque “ele não considerou essa nova ferramenta [internet] como um mundo virtual a parte, mas antes como uma extensão da realidade física”. O que é agora mais Hagrante, quando o movimento hacker se projeta para fora das telas ao abrir hackerspaces, nos quais se pode esmiuçar, construir, fazer funcionar tanto softwares como objetos. A extensão e a ramificação do Do It Yourself (DIY) na rede desencadeou uma gama de pretensões: trata-se de pôr as coisas para funcionar, a rua, a cidade, a sociedade e mesmo a vida. Certos progressistas doentios se apressaram em ver aí as premissas de uma nova economia, ou mesmo de uma nova civilização, dessa vez baseada na “partilha”. E, claro, a “criação”, valorizada na presente economia capitalista para lá dos antigos grilhões industriais. Os gestores são incitados a facilitar iniciativas livres, promover projetos inovadores, a criatividade, o gênio e, sem dúvida, o desvio – “a empresa do futuro deve proteger o desviante, visto que é ele que inova e que é capaz de criar racionalidade no desconhecido”, dizem. Hoje em dia, o valor não é procurado nas novas funcionalidades de uma mercadoria, nem mesmo em sua desejabilidade ou sentido, mas na experiência que oferece ao consumidor. Então por que não lhe oferecer, a esse consumidor, a experiência última de passar para o outro lado do processo de criação? Nessa perspectiva, os hackerspaces ou os Fab Labs se transformam nos espaços onde se podem realizar os “projetos” dos “consumidores-inovadores”, fazer emergir “novos locais de mercado”. Em São Francisco, a empresa Techshop pretende desenvolver um novo gênero de clubes de fitness nos quais, em troca de uma anuidade, as pessoas “se encontram todas as semanas para montar, criar e desenvolver os seus projetos”.
O fato de o exército norte-americano financiar lugares similares no âmbito do programa Cyber Fast Track da Darpa [Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa] não condena os hackerspaces enquanto tal. Da mesma forma que sua captura no seio do movimento “Maker” também não condena esses espaços, nos quais se pode conjuntamente construir, reparar ou desviar objetos industriais de seus usos primeiros, a integrar a enésima reestruturação do processo de produção capitalista. Os kits de construção de vilas, como os da Open Source Ecology, com suas cinquenta máquinas moduláveis – trator, fresadora, betoneira etc. – e módulos de habitação de autoconstrução também poderiam ter um outro destino que não o de servir para fundar uma “pequena civilização com todo o conforto moderno” ou para criar “economias integrais”, um “sistema financeiro” ou um “novo governo”, como ambiciona seu atual guru. A agricultura urbana, que se instala sobre os tetos dos edifícios ou nos vazios industriais – seguindo o exemplo das 1.3 mil hortas comunitárias de Detroit poderia ter outras ambições que não de participar da retomada econômica ou da “resiliência das zonas devastadas”. Os ataques, como os promovidos pelos Anonymous/Lulzsec contra a polícia, as sociedades bancárias, as multinacionais de serviços secretos ou de telecomunicações, poderiam muito bem extravasar o ciberespaço. Como diz um hacker ucraniano: “Quando você deve zelar por sua vida, você rapidamente para de imprimir coisas em 3D. Você arranja outro plano.”
4. TÉCNICAS CONTRA A TECNOLOGIA
Aqui surge a famosa “questão da técnica”, ponto cego no movimento revolucionário de hoje. Uma mente cujo nome podemos esquecer descrevia desta forma a tragédia francesa: “um país globalmente tecnófobo dominado por. uma elite globalmente tecnófila”; se a constatação não vale necessariamente para todo O país, em todo caso vale para os meios radicais. A maior parte dos marxistas e dos pós-marxistas juntam sua propensão atávica para a hegemonia a certo vínculo à técnica-que-liberta-o-homem, enquanto boa parte dos anarquistas e pós-anarquistas se acomodam sem dificuldade numa confortável posição de minoria, ou mesmo de minoria oprimida, colocando-se, de maneira geral, em posições hostis à “técnica”. Cada tendência dispõe até mesmo de sua caricatura: aos partidários negrianos do ciborgue, da revolução eletrônica pela multitude conectada, respondem os anti-industriais que transformaram a crítica do progresso e do “desastre da civilização tecnicista” num gênero literário bem rentável e numa ideologia de nicho, na qual nos mantemos quentes e aconchegados diante da incapacidade de vislumbrar uma possibilidade revolucionária qualquer. Tecnofilia e tecnofobia formam um par diabólico unido por esta mentira central: que uma coisa como a técnica existiria. Ao que parece, seria possível fazer a divisão, na existência humana, entre o que é técnica e o que não o é. Mas não: basta ver em que estado inacabado nasce a cria humana, e o tempo que ela leva para conseguir se mover no mundo ou para falar, para nos darmos conta de que sua relação com o mundo não é dada de modo algum, mas antes o resultado de uma enorme elaboração. A relação do homem com o mundo, por não estar sujeita a uma adequação natural, é essencialmente artificial, técnica, para falar grego. Cada mundo humano é uma determinada configuração de técnicas, de técnicas culinárias, arquiteturais, espirituais, informáticas, agrícolas, eróticas, guerreiras etc. E é exatamente por isso que não há essência humana genérica: porque só há técnicas particulares e cada técnica configura um mundo, materializando-se assim certa relação com este, uma determinada forma de vida. Não se “constrói”, portanto, uma forma de vida; não se faz mais do que incorporar técnicas, pelo exemplo, pelo exercício ou pela aprendizagem. É também por isso que nosso mundo familiar raramente nos surge como “técnica”: porque o conjunto dos artifícios que o articulam já faz parte de nós; são sobretudo aqueles que não conhecemos que nos parecem de uma estranha artificialidade. Também o caráter técnico de nosso mundo vivido só nos salta aos olhos em duas circunstâncias: na invenção e na “pane”. É apenas quando assistimos a uma descoberta ou quando um elemento familiar falta, quebra ou para de funcionar que a ilusão de viver num mundo natural cede face a evidência contrária.
Não podemos reduzir as técnicas a um conjunto de instrumentos equivalentes de que o Homem, esse ser genérico, se serviria de forma indiferenciada. Cada utensílio configura e incorpora uma determinada relação com o mundo e afeta aquele que o emprega. Os mundos assim forjados não são equivalentes, não mais do que os homens que os povoam. E não sendo equivalentes, também não são hierarquizáveis. Não há nada que permita estabelecer uns como mais “avançados” do que outros. Eles são simplesmente distintos, tendo cada um seu próprio devir e sua própria história. Para hierarquizar os mundos, é necessário introduzir neles um critério, um critério implícito que permita classificar as diferentes técnicas. Tal critério, no caso do progresso, é apenas a produtividade quantificável de técnicas, tomada independentemente de tudo o que eticamente carrega cada técnica, independentemente do que ela engendra como mundo sensível. É por isso que não há progresso senão o progresso capitalista, e é por isso que o capitalismo é a destruição continuada dos mundos. Da mesma forma, não é porque as técnicas produzem mundos e formas de vida que a essência do homem é a produção, como pensava Marx. É isto o que escapa simultaneamente a tecnófilos e a tecnófobos: a natureza ética de cada técnica.
Deve-se acrescentar o seguinte: o pesadelo desta época não está no fato de ela ser “a era da técnica”, mas sim a em da tecnologia. A tecnologia não é o arremate final das técnicas; trata-se, pelo contrário, da expropriação aos humanos de suas diferentes técnicas constitutivas. A tecnologia é a sistematização das técnicas mais eficazes e o consequente achatamento dos mundos e das relações com o mundo que cada uma delas movimenta. A tecnologia é um discurso sobre as técnicas que não cessa de se realizar. Da mesma forma que a ideologia da festa é a morte da festa real, que a ideologia do encontro é a própria impossibilidade do encontro, a tecnologia é a neutralização de todas as outras técnicas particulares. Nesse sentido, o capitalismo é essencialmente tecnológico: é a organização rentável, num sistema, das técnicas mais produtivas. Sua figura cardinal não é o economista, mas sim o engenheiro. O engenheiro é o especialista, e, portanto, o chefe dos expropriadores das técnicas, aquele que não se deixa afetar por nenhuma delas e propaga por todo o lado sua própria carência de mundo. É uma figura triste e servil. A solidariedade entre capitalismo e socialismo aí se tece: no culto do engenheiro. Foram engenheiros que elaboraram a maior parte dos modelos da economia neoclássica, assim como os programas informáticos de trading contemporâneos. Recordemos que a grande virtude de Brejnev foi ter sido engenheiro da indústria metalúrgica na Ucrânia.
A figura do hacker se opõe, ponto por ponto, a figura do engenheiro, quaisquer que sejam as tentativas artísticas, policiais ou empresariais de a neutralizar. Enquanto o engenheiro captura tudo o que funciona, e isso para que tudo funcione melhor a serviço do sistema, o hacker se pergunta “como é que isso funciona?” para encontrar as falhas, mas também para inventar outras utilizações, para experimentar. Experimentar significa, então, viver o que implica eticamente esta ou aquela técnica. o hacker vem arrancar as técnicas do sistema tecnológico, libertando-as. Se somos escravos da tecnologia, é justamente porque há todo um conjunto de artefatos de nossa existência cotidiana que temos como especificamente “técnicos” e que consideramos sempre como meras caixas-pretas das quais somos inocentes usuários. O uso de computadores para atacar a CIA comprova de modo suficiente que a cibernética não é a ciência dos computadores, da mesma forma como a astronomia não é a ciência dos telescópios. Compreender como funciona qualquer um dos aparelhos que nos rodeia significa um aumento de poder imediato, um poder que nos dá controle sobre aquilo que a partir de então já não surge mais como o ambiente que nos cerca, mas como um mundo disposto de certa maneira e sobre o qual podemos intervir. É este o ponto de vista hacker sobre o mundo.
Nestes últimos anos, o meio hacker percorreu um caminho político considerável, conseguindo identificar de maneira mais clara amigos e inimigos. Seu devir-revolucionário, no entanto, confronta-se com vários obstáculos de peso. Em 1986, “Doctor Crash” escreveu: “Quer você saiba, quer não, se você é hacker, é revolucionário. Não se preocupe, você está do lado certo.” Tal inocência talvez não seja mais permitida. No meio hacker, há uma ilusão originária segundo a qual se poderia opor a “liberdade de informação”, a “liberdade da internet” ou a “liberdade do indivíduo” àquilo que as pretende controlar. É um grave equívoco. A liberdade e a vigilância provêm da mesmo paradigma de governo. A extensão infinita dos processos de controle é, historicamente, o corolário de uma forma de poder que se realiza através da liberdade dos indivíduos. O governo liberal não é aquele que se exerce de modo direto sobre o corpo de seus sujeitos ou que espera deles uma obediência filial. É um poder totalmente em contração, que prefere ordenar o espaço e reinar sobre interesses, mais do que sobre corpos. Um poder que vela, vigia e age o menos possível, intervindo apenas quando o paradigma é ameaçado, sobre aquilo que vai demasiado longe. Apenas sujeitos livres, tomados em massa, são governados. A liberdade individual não é algo que possamos empunhar contra o governo, visto que ela constitui, de fato, o mecanismo sobre o qual ele se apoia, aquele que ele regula o mais delicadamente possível com o intuito de obter, no conjunto de todas essas liberdades, o efeito de massa esperado. Ordo ab chao. O governo é essa ordem à qual obedecemos “da mesma forma que comemos quando temos fome, ou que nos cobrimos quando temos frio”, é essa servidão que eu coproduzo no exato momento em que procuro minha felicidade, em que exerço minha “liberdade de expressão”. “A liberdade do mercado necessita de uma política ativa e extremamente vigilante”, especificava um dos fundadores do neoliberalismo. Para o indivíduo, só há” liberdade se ela for vigiada. É o que os libertarianistas, em seu infantilismo, jamais compreenderão, e é esta incompreensão que gera atração pela idiotice libertarianista em determinados hackers. De um ser autenticamente livre, não se diz sequer que é livre. Ele apenas é, existe, move-se conforme seu ser. Só se diz de um animal que ele está em liberdade quando cresce num meio já de todo controlado, esquadrinhado, civilizado: no parque das regras humanas onde se dá o safari. Friend e free, em inglês, Freund e frei, em alemão, provêm da mesma raiz indo-europeia, que remete à ideia de uma potência de algo em comum que cresce. Ser livre e ter laços são uma e mesma coisa. Eu sou livre porque tenho laços, porque faço parte de uma realidade mais vasta do que eu. Na Roma antiga, os filhos dos cidadãos eram os liberi: por meio deles, Roma crescia. E isso significa dizer que a liberdade individual do “eu faço o que eu quero” é uma piadinha e uma mentira. Se os hackers de fato querem combater o governo, eles devem renunciar a esse fetiche. A causa da liberdade individual é o que ainda os impede de constituir grupos suficientemente fortes para desencadear, a partir daí, uma série de ataques, uma verdadeira estratégia; e é também o que gera a inaptidão deles em formar laços com outra coisa que não si próprios, a incapacidade deles de se tornar uma força histórica. Um membro do Telecomix previne seus colegas nestes termos: “O que é certo é que o território onde vocês vivem é defendido por pessoas que vocês fariam bem em conhecer. Porque elas estão mudando o mundo e não vão esperar por vocês.”
Como cada novo encontro do Chaos Computer Club demonstra, um outro desafio, para o movimento hacker, e o de conseguir traçar uma linha de frente em seu próprio seio entre aqueles que trabalham por um governo melhor, quando não para o governo, e aqueles que trabalham para a sua destituição. Chegou a hora de tomar partido. É a essa questão primordial que Julian Assange alude quando diz: “Nós, os trabalhadores da alta tecnologia, somos uma classe, e já é hora de nos reconhecermos enquanto tal.” Recentemente, a França explorou essa perversão a ponto de abrir uma universidade para formar “hackers éticos”, supervisionada pela DCRI [Diretório nacional para segurança interna], a fim de formar pessoas para lutarem contra os verdadeiros hackers – aqueles que não renunciaram à ética hacker.
Esses dois problemas se conjugaram num caso que nos impressionou particularmente: o dos hackers do Anonymous/Lulzsec que, após serem pegos depois de tantos ataques, que tantos de nós aplaudimos, se viram, como Jeremy Hammond, praticamente sós face à repressão ao serem presos. No Natal de 2011, Lulzsec desfigurou o site da Stratfor, uma multinacional de “segurança privada”. Na página inicial, desfilava o texto d’A insurreição que vem em inglês, e setecentos mil dólares saíram das contas de clientes da Stratfor em direção a um conjunto de associações de caridade – presente de Natal. E nós não pudemos fazer nada, nem antes nem depois, para evitar suas prisões. Claro, quando se atacam alvos como esse, é mais seguro operar sozinho ou em pequenos grupos o que obviamente não impede que haja infiltrados -, mas é catastrófico que ataques tão políticos, tão relevantes para ação mundial de nosso partido, possam ser transformados pela polícia em um crime privado qualquer, passível de décadas de prisão, ou serem utilizados como meio de pressão para transformar este ou aquele “pirata da internet” em agente governamental.
Publicado originalmente como um capítulo do livro do Comitê Invisível
Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição. N-1 Edições, São Paulo. 2015
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