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O gigante da América

2005

Publicado originalmente em "Guilherme Vaz – uma fração do infinito", curadoria Franz Manata. EXST: Rio de Janeiro, 2016. Pgs 275-77.

Guilherme Vaz e Carlos Bedurap Zoró. Sem título, 1999.

Os grandes sertões e os impérios culturais

Talvez a grande obra de Antônio Carlos Gomes tenha sido o seu próprio nascimento. No meio das matas ainda inocentes da América, num arraial de São Carlos perdido no meio das matas, pousado sobre a plataforma selvagem do planalto paulista, caminhos e pousos de pioneiros bandeirantes e entradistas rústicos que iam na direção do rio Cuiabá. Outros tomavam o rumo norte atravessando o rio Grande para atingir o Pará e a cabeceira do território amazônico, outros para o noroeste, infletindo para o rio Araguaia, o rio dos caiapós, o rio Verdão, o rio Vermelho, outros mais longe ainda, para a Chapada dos Parecis e o rio Guaporé, na fronteira com a Bolívia, alguns chegando até os contrafortes dos Andes e mesmo até Potosí e Sucre, capital arcaica da Bolívia.

Todas essas trilhas e muitas outras passavam pelo seu berço. A fundação da província de Goiás lendária também passaria. O seu berço se encontrava no centro de uma crisálida de trilhas que demandavam as grandes florestas e a noite desconhecida da América. A noite profunda da América na qual os guaribas urravam nas matas infinitas e inacessíveis . Eram as épocas em que o mundo era iluminado com candeias e lamparinas , e os mais pobres com velas de sebo de boi e azeite de mamona nativa. Já se plantavam mangueiras no Brasil e os quintais eram imensos. . Imersos na noite se misturavam com a escuridão das matas. Aves como, o sabiá-da-mata-virgem, vinhas das florestas até os quintais, e espécies selvagens, as diversas jaguatiricas, beiravam os quintais e os homens. Hortas de taioba, mandiocais, milho, ervas medicinais e aromáticas vindas dos índios eram cultivadas. As parteiras socorriam as gestas com ervas e oravam pelo bom parto. Metade dessas ervas aprenderam com as índias. Eu vi um parto indígena, nunca vi nada mais plano na vida. Não é um parto com dor. Vi as ervas e as orações indígenas. Quando nasce uma criança do sexo masculino, eles colocam um nome feminino; quando nasce uma criança do sexo feminino, eles colocam o nome masculino. Só quando o curumim está forte eles revelam o nome. Defesa.

O céu do Império era muito mais luminoso que o céu da República. O Império era do campo e ainda não havia cidades para obliterar o esplendor das galáxias. Nesses arraiais o amanhecer era como a repetição do gênesis da criação. O oxigênio provindo das florestas azulava o ar, arco-íris de refração irrompiam nos ares e toda a criação sussurrava. O homem também sentia seu corpo nascendo e todas as suas faculdades sendo preenchidas vagarosamente como olhos d’água. A plenitude da atmosfera e da criação se esgueirava até o dia. Podemos ouvir claramente as memórias de Gomes, esse estremecimento inexplicável do amanhecer, surdo e arrepiante, nas florestas da América, na “alvorada” totalmente sinfônica e instrumental de O escravo, um dos momentos em que ele toca o cerne da natureza da música. É evidente que num mundo assim se queira descobrir mais e mais os enigmas que o rodeiam de parte a parte, por todos os lados: ele conheceu índios do planalto paulista com certeza e deve ter falado com eles. Ele conheceu o mundo negro e deve ter se saturado de impressões, observações, amigos negros e, sem dúvida, compaixão. Compaixão essa que ele comungava com os abolicionistas e a família imperial, no diametral oposto dos ricos das cidades, que, utilizando-se de um exército a soldo e estatal, vieram com a República, tirando os africanos da condição de escravos para a condição de miseráveis.

O céu do Império era mais estrelado. Os ricos dos campos também sabiam que para quebrar o campo que hoje sustenta o Brasil era necessário quebrar a escravidão, e mudar a população negra para as favelas, tornando-os possíveis consumidores e servos do comércio de rua. Denominaram isso de República.

ΔΔΔ

 

Ensaio sobre o compositor Carlos Gomes publicado no site do Centro Cultural do Banco do Brasil em 2005.

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